sexta-feira, 4 de maio de 2018

Bola de Sebo

Eliana Cardoso*
 

Você vê o sexo de aluguel como servidão ou liberação? Contradições abundam em um ofício de esplendores e misérias: a puta vende o corpo e, ao mesmo tempo, suprime o próprio prazer. Oferece a própria carne reprimindo a emoção. Deixa-se penetrar, mas se mantém impenetrável.

A profissão é velha, mas começo minha história a partir de 1820, com a expansão dos bordéis franceses. A Revolução Industrial, que afetou a França muitas décadas depois da Inglaterra, criou um novo proletariado feminino mal pago e logo atraído para o mercado do sexo.

Por volta de 1828, Alexandre Parent-Duchâtelet montou na França um sistema de prostituição regulamentada. Médico e especialista em higiene pública, fascinado por excrementos, decidiu renovar tanto o sistema de esgotos quanto o de prostituição em Paris. Transformou as antigas casas de tolerância em "maisons closes" e exigiu que as prostitutas fossem registradas na polícia. Parent-Duchâtelet baseava sua missão na ideia de Santo Agostinho de que as profissionais do sexo são um mal necessário e ajudam a manter a ordem social.

Já em 1836, contando com a contribuição para a harmonia social de 30 mil prostitutas registradas em Paris, Parent-Duchâtelet achou por bem criar uma classificação rigorosa das meninas trabalhadoras. Dividiu-as em: "fille en carte" (prostituta registrada num bordel), "fille en numéro" (a sortuda que recebia uma porcentagem do pagamento de seus clientes) e a "insoumise" (a mulher da rua que recebia uns trocados ou pagamento em espécie, como comida, por exemplo).

Sinal do caos moderno, a "garota de programa" dos nossos tempos tornou-se uma classificação tão abrangente que pode encaixar tanto as categorias acima quanto outra considerada mais perigosa por Parent-Duchâtelet, à qual pertencia a "femme de spectacle", cortesã de luxo ou "cocote", "mangeuse d' hommes" ou "grande horizontale". Seu perigo derivava de sua subversiva mobilidade social, que poderia transformar coxas leitosas em fermento de desorganização hierárquica.

Com o tempo o comércio do sexo e suas imagens mudaram. O admirador do glamour opulento das cortesãs (pintadas como deusas ou ninfas no reino exótico de um harém oriental) recebeu um choque em 1863 com a "Olympia" de Édouard Manet. Ali está uma bela jovem nua, com chinelos de seda bordada, uma pulseira de ouro e uma elegante gargantilha preta em volta do pescoço. Em vez de ambientes intangíveis e olhares oblíquos, Olympia, uma mulher de carne e osso, está na cama casualmente desarrumada e olha com impudência diretamente para o expectador. A seus pés está um gato preto. Vale lembrar que "chatte" é boceta em francês. Olympia exala sexo.

Na época em que Manet pintou Olympia, Paris estava sendo transformada de um labirinto de bairros pobres e sujos em metrópole moderna com avenidas largas. Para a rua vieram prostitutas e artistas. Mais e mais "insoumises" recusaram as restrições dos bordéis. Um novo realismo retratou as misérias do sexo pago e a presença constante do teatro na pintura da puta sinaliza que a prostituição é uma forma de drama. O que se compra não é apenas um corpo, mas uma fantasia de romance.

A partir do fim do século XIX, o nascente movimento feminista organizou uma campanha para proibir a prostituição na França. A lei de Marthe Richard de 1946 baniu os bordéis e centralizou o antigo sistema de registro na polícia, tornando mais difícil para as prostitutas escapar do estigma de seu ofício. Um erro. Uma década e meia depois de aprovada a lei, a polícia estimava que o número das profissionais do sexo não registradas chegava a 100 mil em Paris. A pior consequência da lei foi aumentar a importância dos cafetões e, mais tarde, dos cartéis controlados pela máfia.

Feministas modernas defenderiam os direitos das trabalhadoras do sexo. Afinal, a prostituição é uma forma como outras de expressão da sexualidade e dois adultos devem ser livres para ter uma relação sexual temporária em que o dinheiro substitui outros compromissos.

Questão mais grave trata de quão saudável seria o meretrício como forma de ganhar a vida. Há também mortes trágicas com as quais se preocupar, muitas vezes provocadas pelo amante traiçoeiro, justamente aquele que foi escolhido para o gozo.

Na literatura, exemplo clássico é o suicídio de Ester em "Esplendores e Misérias das Cortesãs" de Balzac. Carlos Herrera (o ex-condenado Vautrin, agora disfarçado de padre) livra Ester da vida de prostituta e a transforma em mulher aparentemente virtuosa. Herrera, mais corrupto e ganancioso do que o mais fraudulento dono de bordel, se interessa por Esther e seu amante, Lucien de Rubempré. Usando táticas diabólicas, Herrera convence a generosa Esther de se vender para um rico banqueiro a fim de aumentar a fortuna de Lucien.

E já que passamos à literatura, coração, vale mencionar o herói de "A Rebours", assombrado pela visão de uma mulher horrivelmente doente chamada "La Syphilis". Em suas fantasmagorias sádicas, Huysmans faz da prostituta sifilítica o emblema da decomposição do mundo e oferece um retrato da fóbica repulsa masculina pelo corpo feminino.

A imagem mais perturbadora de mulheres se exibindo para o prazer dos homens é "Les Demoiselles d'Avignon". Picasso mostra cinco mulheres nuas fazendo poses angulosas como cacos de vidro quebrado e rostos parecidos a máscaras tribais africanas. Na obra-prima desprovida de glamour, de moralismo ou de realismo documental, surge a selvageria que nos espreita no meio da civilização, imagem de beleza aterradora e eterno fascínio.

Completamente oposta é a representação da prostituta no quadro de Paul Émille Boutigny, hoje no museu de Carcassonne, que ilustra o conto de Guy de Maupassant, "Bola de Sebo". Ao contrário até mesmo das imagens em que existe apenas um grau de ambiguidade num olhar atrevido ou numa maquiagem pesada, a representação de "Bola de Sebo" mostra uma mulher modesta e coberta como uma camponesa.

Vamos ao conto. Durante a guerra franco-prussiana, no inverno de 1870, viajando de Rouen para o porto de Havre, um grupo formado por nobres, burgueses e duas freiras dividem o espaço de uma diligência com uma prostituta chamada Bola de Sebo. Uma tempestade de neve atrasa a viagem e Bola de Sebo, que tinha sido a única a levar mantimentos, generosamente divide sua refeição com os passageiros famintos, que comem, mas não falam com ela.

Uma parada num albergue e um oficial prussiano impede a partida do grupo, porque quer comer Bola de Sebo. Ela se recusa. Os companheiros de viagem insistem que ela se sujeite, pois já que era seu ofício, ela não tinha o direito de escolher o freguês. E construindo sua história, Maupassant desconstrói o edifício da hipocrisia sexual, social, religiosa, financeira e política de sua sociedade. Até as freiras se mostram cínicas, argumentando que uma ação condenável se torna meritória pela ideia que inspira.

O humor negro de Maupassant minudencia o caráter daqueles que, para fugir em segurança, forçam Bola de Sebo, patriótica e digna, a ceder ao inimigo. O detalhe irônico que expõe a natureza mais profunda do comportamento do grupo é a excitação que se segue à discussão de como persuadir a prostituta a fazer sexo com o oficial: naquela noite ninguém dormiu.

O quadro de Paul Èmile Boutigny mostra o dia seguinte. A diligência atrelada em frente ao albergue, a neve ofuscante, os pombos, o cocheiro já sentado na boleia. Os passageiros vestidos de preto e cartola de seda aguardam Bola de Sebo. Ela surge, a cabeça baixa e coberta, o vestido longo entre o bege e o marrom desbotado, uma cesta no braço, a expressão triste.

A viagem prossegue e Cornudet, o único que se mantivera à parte nos dias anteriores, tem uma epifania e força os passageiros a ouvir incessantemente a marseillaise: "Amour sacré de la patrie/ Conduis, soutiens nos bras vengeurs,/ Liberté, liberté chérie/ Combat avec tes défenseurs". Bola de Sebo chora.
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* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: eliana.anastasia@gmail.com
Fonte:  http://www.valor.com.br/cultura/5500935/bola-de-sebo 04/05/2018

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