sexta-feira, 18 de maio de 2018

AONDE VAI O TREM DA HISTÓRIA?


Eliana Cardoso*
 Cris Bierrenbach

Os jornais atualizam sua versão online a cada minuto. A televisão transmite notícias em tempo real 24 horas por dia. O Facebook, o Twiter e outras plataformas sociais oferecem comentários sobre o que acabou de ocorrer todo o tempo. Mesmo consciente do excesso de repetições, a sobrecarga de informações provoca no leitor a sensação de impotência e o medo de perder o trem.

Linda Colley, professora da Universidade de Princeton, - em "Can History Help?", um "podcast" disponível no site da London Review of Books - diz que a História oferece a saída para a ansiedade: desvia a atenção de notícias mutantes para o significado do passado. Mudanças realmente transformadoras ocorrem lentamente, ensina.

Com certeza alguns eventos transformadores parecem instantâneos. Embora usando uma tecnologia que levou décadas para se desenvolver, os pilotos que lançaram a bomba atômica em Hiroshima transformaram, em minutos, a natureza e a atitude em relação à guerra.

No entanto, a maioria das mudanças importantes leva séculos. Depois de perder cerca de 50% de sua população para a peste negra no século XIV, a Europa viu o aumento dos salários dos sobreviventes produzir a crescente demanda de bens de consumo que contribuiu para o comércio e as viagens ultramarinas nos séculos XV, XVI e XVII.

Muitas alterações se tornam visíveis em dez anos. E a transformação que algumas sociedades alcançaram em menos de 75 anos - em países nórdicos e na Coreia do Sul, por exemplo - oferece um poderoso corretivo ao populismo. Vale olhar para os países que se reinventaram com sucesso: podemos aprender com os outros.

Quais são os gatilhos de mudanças dramáticas? Surtos selvagens de doença, alterações significativas no clima, avanços na tecnologia, crises econômicas, grandes mudanças nas crenças religiosas...

Paradoxalmente, mudanças traumáticas na história da humanidade podem, às vezes, ter consequências boas. O mais recorrente gatilho que gera mudança social é a guerra. Esse monstro destruidor de Estados e povos, que nada pode justificar, algumas vezes acarreta reconfigurações benéficas.

Em 1914, nenhuma mulher na Inglaterra votava nas eleições nacionais. A Primeira Guerra Mundial não foi a única razão para a mudança que estendeu o voto às mulheres, mas foi um fator importante. Do mesmo modo, a Segunda Guerra Mundial transformou a política de bem-estar social na Europa e a distribuição de renda melhorou. O impacto das grandes guerras fora da Europa foi importante: o enfraquecimento do poder e das finanças dos impérios marítimos permitiu o avanço da descolonização.

Algumas mudanças não representam avanço, mas restauração do passado. Andrew J. Nathan, professor de ciência política na Universidade de Columbia e autor de "China´s Search for Security", argumenta que Xi Jinping está tornando a China contemporânea mais parecida com a China da época de Mao.
Em 2023, Xi Jinping concluirá seu segundo mandato como presidente da China. Desde que Deng Xiaoping revisou a constituição do país há mais de 35 anos, dois mandatos consecutivos eram o máximo que um presidente podia servir. Xi, entretanto, não tem planos de se aposentar. Em março, o Congresso Nacional do Povo aprovou a emenda constitucional que aboliu os limites de mandato para a presidência. Esse passo causou desespero entre os liberais chineses e alarme entre os comentaristas internacionais. Tem ironia aí. Se Deng fez o que Mao temia que seu sucessor fizesse - acabar com a revolução permanente-, Xi está fazendo o que Deng temia - restaurar o governo de um homem só.

A importância simbólica da abolição dos limites do mandato do presidente consiste no repúdio explícito de Xi ao sistema de sucessão que Deng desenvolveu. Xi já consolidou o controle do partido, tornando-se mais poderoso do que qualquer líder chinês anterior. Xi derrubou seu rival mais poderoso, Bo Xilai, e usou a campanha anticorrupção para se livrar dos inimigos. Minou a autoridade de seu primeiro-ministro e rompeu redes de clientelismo locais. Embora não seja retratado como um deus, como Mao, é reconhecido como gerente sábio e atuante. Suas palavras não são "armas mágicas" como as de Mao, mas são as diretrizes que devem ser seguidas.

Em seu relato da história da República Popular da China, Xi suaviza a narrativa: apaga pontos baixos, como o Grande Salto e a Revolução Cultural, e enfatiza a criação pós-Deng do quase-mercado em crescimento. Deng permitia o reconhecimento dos crimes de Mao - dizendo que suas medidas combinavam 30% de erros com 70% de conquistas. Xi, ao contrário, acabou com as críticas e transformou a história dos últimos setenta anos em progresso triunfal.

Xi também restaurou rituais tradicionais, como o estudo coletivo de documentos do partido e autocríticas. Tornou a promoção cada vez mais dependente da lealdade e reorganizou as forças armadas.

Grande parte da atenção de Xi se dirige à reforma econômica. Ele repete o slogan de que "o mercado desempenhará o papel decisivo na alocação de recursos", mas ao mesmo tempo sinaliza que o Estado continuará guiando o mercado e apoiando empresas estatais "campeãs".

O governo é popular: amplos setores da população experimentaram melhorias dramáticas em suas vidas materiais. Xi baseou-se nos esforços de seus predecessores para expandir o sistema de bem-estar social, melhorar os cuidados com a saúde, aumentar a renda dos habitantes rurais e permitir que alguns residentes rurais obtivessem autorizações de residência urbana.

Advogados de direitos humanos, ativistas feministas, acadêmicos, jornalistas, bem como algumas autoridades do partido viram suas liberdades drasticamente restringidas. Endureceram-se os regimes de vigilância no Tibete e em Xinjiang sob um leal secretário do partido. Intelectuais e minorias vêm a China de Xi como uma versão à la século XXI da China de Mao.

É nesta China que o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, foi buscar apoio para sua proposta de desnuclearização. Em apenas três semanas de março, Kim Jong-un, depois de seis anos sem viajar e de hostilizar os países ao redor do mundo, abriu conversações com a China, a Coreia do Sul e os EUA.

Para o sucesso de novos acordos, a China precisa continuar apoiando as sanções norte-americanas. Mas a China não deseja o colapso da Coreia do Norte, pois teme possíveis consequências da queda de seu governo, como o acesso descontrolado a armas nucleares e biológicas e uma enxurrada de refugiados na sua fronteira. Além disso, com a Coréia do Sul dominando a reunificação, a China teria o aliado dos EUA com armas nucleares como vizinho. Washington e Pequim nunca discutiram uma visão de longo prazo aceitável para ambos.
Por outro lado, o presidente da Coréia do Norte tem se revelado um exímio jogador. Durante o encontro entre as duas Coreias, neste mês, ele se mostrou surpreendentemente espontâneo. Recomendou ao presidente da Coreia do Sul que na visita ao norte usasse o avião, porque as estradas de seu país estavam em péssimo estado. Distribuiu sorrisos e abraçou oficiais do país com o qual ainda está tecnicamente em guerra. O homem que até então era visto como um demônio impulsivo e irracional se revelou calmo, razoável e acessível. Se antes de sua visita, apenas 10% dos coreanos do Sul diziam que confiavam nele, este número subiu para 80% depois da visita.
Kim Jong-un é precavido. Levou até o papel higiênico na mala para ter certeza que não deixaria para trás nada que pudesse ser investigado para detectar alguma doença, por exemplo. Seus serviçais limpavam imediatamente tudo que ele tocava para que nem mesmo uma impressão digital fosse esquecida.

Alguns apostam que Kim-Jong-un quer ser uma espécie de líder chinês, introduzindo na Coréia do Norte reformas econômicas como as que transformaram o Império do Meio. Outros dizem que ele tentará enganar Trump no encontro de 21 de junho. Não sei adivinhar, coração, para onde nos leva o trem da história.
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* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente.

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