segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Quem ainda crê que ser ateu implica querer comer criancinhas?

Luiz Felipe Pondé*


Ricardo Cammarota

O tema do ateísmo me interessa pouco. Tampouco me interessam as entediantes "provas" da existência de Deus. Grande parte dos ateus que conheço é chata e sofre de dois dos seguintes sintomas: 

O primeiro é a raiva de Deus. Evidentemente, trata-se de "daddy issues" (problemas com papai). A fúria com a qual alguns ateus se movem trai seu ressentimento escondido. 

O segundo é a tentativa, risível, de atestar que, apesar de ateus, são bons cidadãos. Se o primeiro sintoma revela um traço de insegurança, este aqui trai seu ridículo. 

Quem ainda crê, pelo amor de Deus, que ser ateu implica querer comer criancinhas? 

Sei. Você me dirá que existem pessoas que, sim, pensam que ateus "matam mais". Você tem razão em dizer isso, mas quem pensa assim é tão risível quanto um ateu que quer provar seu compromisso com "um mundo melhor". 

Ateus assim, quando possuem mais repertório, além de sua referência "discovery", buscam o filósofo alemão Immanuel Kant (1724 - 1804) como lastro: o bem é racional, não religioso. Logo, posso ser ateu e ser ético.

Verdade evidente, mas só quem tem uma percepção infantil do comportamento humano se esconde atrás de um enunciado filosófico como garantia de sua própria sanidade. 

O ateísmo é a forma mais simples de filosofia. Ainda mais quando se afirma que "Deus é amor". O mundo é mau, logo, se "Deus é amor", ele não existe. Esse argumento em filosofia é conhecido como "argumento a partir do mal" contra a existência de Deus. A fé é infinitamente mais complexa do que a descrença. Dizer que religião é uma bengala é coisa de iniciantes em matéria de religião. 

Mas é possível ser ateu e ter espiritualidade? Sei. Você dirá que evidentemente sim porque ateus podem ser pessoas "legais". Pessoais "legais" não merecem confiança, direi eu em resposta a você. Isso se você supuser que pessoas "espiritualizadas" são pessoas legais. Eu não tenho tanta certeza, principalmente agora que você pode ser "espiritualizado" graças ao Face. 

Independentemente dessas questões risíveis, creio, sim, ser possível um ateu ter vida espiritual, claro, se você não associar "vida espiritual" a vida religiosa institucional. 

A questão que normalmente soa estranha é que a espiritualidade parece nos levar diretamente a Deus ou similares. Mas isso não é, necessariamente, uma verdade evidente. 

O darwinista Edward O. Wilson, no seu livro "The Meaning of Human Existence" (o significado da existência humana), da editora W. W. Norton & Company, de 2014, defende que existe, sim, uma espiritualidade ateia e esta está intimamente associada à indagação acerca do significado último da existência humana. 

A indagação está presente, principalmente, em momentos em que o significado parece desaparecer, como no momento de grandes perdas na vida. Não é à toa que a sociologia da religião mostra que conversões espirituais ocorrem, majoritariamente, em momentos de grandes perdas na vida. 

O fato é que a espiritualidade, em geral, lida diretamente com indagações como essa. As religiões respondem a questões como essa, costumeiramente, oferecendo práticas (leituras, rituais, liturgias e narrativas cosmológicas) que respondem à indagação acerca do sentido da vida e do sofrimento. A espiritualidade estaria ligada a questões de sentido da existência, mas não, necessariamente, dependentes de crenças em divindades. 

Para Wilson, quando um ateu se indaga acerca do sentido último da existência, ele está pensando em nossa condição humana num cenário de solidão cósmica (não é à toa que tanta gente busca em ETs um "resto" religioso qualquer) e contingência absoluta. 

Não há um sentido último da existência humana a não ser enfrentar essa contingência absoluta a partir dos meios (frágeis, sim) de que dispomos para enfrentar um universo que nos devora a cada minuto. Esse sentido passa pela busca de compreender (cientificamente) este universo e lidar com ele. 

O darwinismo nos ensina que a existência é uma batalha sem fim cujo sucesso não é garantido. O darwinismo carrega em si uma cosmologia trágica. Enfim, arrancamos o sentido das pedras. 
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*  Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência.
p(tagline). @lf_ponde
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/01/1947264-quem-ainda-cre-que-ser-ateu-implica-querer-comer-criancinhas.shtml

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