quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Papa Francisco - De costas para a Cúria


Papa Francisco - Capela Sistina

Prestes a completar cinco anos de pontificado, Francisco enfrenta uma batalha na missão de arejar a Igreja — e os inimigos estão dentro do próprio Vaticano

Como faz todos os anos desde 2013, quando assumiu o Trono de Pedro depois da renúncia de Bento XVI, o papa Francisco reuniu os cardeais na sala Clementina do Palácio Apostólico do Vaticano para os votos de Natal. Aos amados “irmãos e irmãs” — estavam ali também funcionárias da Cúria —, fez um pronunciamento duro em favor das reformas na Igreja, obsessão deflagrada nos primeiros minutos de seu pontificado. Rindo, lembrou uma frase “simpática e significativa” do arcebispo belga Frédéric-François-Xavier de Mérode (1820-1874), conselheiro do papa Pio IX: “Fazer as reformas em Roma é como limpar a esfinge do Egito com uma escova de dentes”. Testemunhas disseram ter percebido sorrisos amarelos, olhares de esguelha, ao que Francisco prosseguiu na peroração, como se precisasse explicar o que acabara de resumir na tirada espirituosa.

Fez alusão à “lógica desequilibrada e degenerada de conluios ou de pequenos clubes que representam um câncer que leva à autorreferencialidade” e emendou com um comentário ainda mais ácido: “Permiti-me aqui uma palavra sobre outro perigo: os traidores da confiança ou os que se aproveitam da maternidade da Igreja, isto é, as pessoas que são cuidadosamente selecionadas para dar maior vigor ao corpo e à reforma, mas — não compreendendo a alçada da sua responsabilidade — deixam-se corromper pela ambição ou pela glória vã e, quando delicadamente são afastadas, autodeclaram-se falsamente mártires do sistema, do ‘papa desinformado’, da ‘velha guarda’, em vez de recitar o mea culpa”.
Os cardeais Raymond Burke (à esq.) e Robert Sarah
ARTILHARIA – Os cardeais Raymond Burke (à esq.) e Robert Sarah: questionamentos à atual 
linha progressista da Igreja (Andrew Medichini/AP)

A contundência, dois tons acima do usual, e pouco natalina, não foi inesperada. Ao contrário. Francisco enfrenta uma batalha — e seus maiores inimigos estão dentro do próprio Vaticano. Ele luta para arejar a Igreja Católica e atrair mais fiéis, mas o fogo amigo é só boicote. A guerra é fria, as armas são palavras, mas ferem como lança. Em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, o vaticanista americano John Allen, reputado pelas informações dos bastidores e pela aguda clareza, afirmou: “Os papas costumam ser contestados pela esquerda da Igreja. Este, porém, é atacado pela direita, e isso faz a contestação adquirir grandes proporções”. O que significa ser alvejado pela direita, ou seja, pelos conservadores? Jorge Mario Bergoglio, o papa do fim do mundo, das favelas de Buenos Aires, do confronto com a ditadura militar argentina, tem um ideário muito nítido, traduzido em sua retórica, minuciosamente atrelada a temas delicados para o catolicismo.

Defendeu o acolhimento de homossexuais (“Se uma pessoa é gay, quem sou eu para julgá-la?”), de mães solteiras (“Essa mulher teve a coragem de continuar a gravidez”) e admitiu o divórcio (“Existem casos em que a separação é inevitável”). Fez muito mais, em sua toada modernizadora: desestimulou as missas em latim, destituiu prelados influentes sob a acusação de desvio de dinheiro, deu poder a laicos e condenou o clericalismo exacerbado. Mexeu num vespeiro milenar — ainda que não tenha sido o primeiro pontífice a fazê-lo, foi pioneiro em tempos de redes sociais, em que tudo corre muito mais rapidamente, inclusive a lentíssima movimentação da religião dos discípulos de Jesus.
MISERICÓRDIA – O papa deu sinais contraditórios ao velar o cardeal Bernard Law, acusado 
de encobrir casos de pedofilia (Max Rossi/Reuters)

Em nenhuma seara comportamental Francisco provocou mais ruído que na do divórcio, mais até do que com sua postura em relação à homossexualidade. Em um de seus recentes documentos, a exortação apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), de 2016, texto com poder de disseminar caminhos para o clero, Francisco imprimiu uma nova visão sobre a relação da Igreja com os divorciados em segunda união. Na doutrina católica, quem se separa e se casa novamente comete adultério e, portanto, não pode receber o sacramento da comunhão nas missas. No pontificado de João Paulo II, a Igreja reconheceu o acesso aos sacramentos da confissão e da eucaristia aos divorciados recasados no caso de viverem sob o mesmo teto como irmão e irmã. Em Amoris Laetitia, Francisco foi além, ao afirmar que a separação pode se tornar moralmente necessária quando se trata de defender o cônjuge mais frágil ou os filhos pequenos. E mais: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor”.

A reação foi imediata, mercurial. Por meio de uma carta aberta, um grupo de cardeais, liderado pelo influente americano Raymond Burke, pediu explicações ao pontífice com uma justificativa sem meias palavras: “É nossa intenção ajudar o papa a prevenir divisões e contraposições na Igreja, pedindo-lhe que dissipe todas as ambiguidades”. Em entrevista ao site católico americano LifeSiteNews, Robert Sarah, cardeal africano que defende ritos ultraformais, como a celebração das missas com padres “na mesma direção dos fiéis”, de costas para a plateia, o que era comum nas tradicionais missas em latim, chegou a afirmar em outra ocasião que “a unidade da Igreja está sendo ameaçada”. Em manifestação ainda mais vigorosa, um grupo de quarenta padres e teólogos assinou um manifesto no qual acusa Francisco de heresia. O primeiro parágrafo é direto: “Santo Padre, com profunda aflição, mas movidos pela fidelidade ao Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo amor à Igreja e ao papado, e pela devoção filial a Sua Pessoa, vemo-nos obrigados a dirigir a Sua Santidade uma correção, devido à propagação de heresias produzida pela exortação apostólica Amoris Laetitia e de outras palavras, atos e omissões de Sua Santidade”.
Concílio Vaticano II
HERANÇA – Francisco segue os princípios defendidos pelo Concílio Vaticano II, marco 
na modernização da Igreja (David Lees/Corbis/Getty Images)

Heresia é uma rejeição ou mera dúvida de um dogma da fé divina e católica, praticada por uma pessoa batizada. É uma designação gravíssima para um papa. Inúmeros pontífices cometeram atos hereges explicitamente, como ensina a história, mas poucos foram chamados como tal. Em 1331, o papa João XXII recebeu a alcunha quando numa série de sermões ensinou que “as almas benditas, depois de terem terminado o seu designado tempo no purgatório, não veriam a Deus até após o juízo final”. Pelos princípios católicos, o purgatório não é um tribunal, mas um tempo de purificação. Confrontado por cardeais, João XXII retratou-se anos depois, um dia antes de sua morte.

Francisco não se pronunciou ante as acusações, e dificilmente o fará. O papa não quer mudar a orientação da Igreja em relação ao matrimônio. Nem poderia. Diz o Evangelho de São Mateus: “O homem deixa seu pai e sua mãe para se unir a sua mulher e os dois se tornam uma só pessoa. Assim, já não são duas pessoas, mas uma só. Portanto, que ninguém separe o que Deus uniu”. O pontífice, no entanto, pode atualizá-la sem desrespeitar os princípios católicos. Diz Juarez de Castro, pároco da Igreja da Assunção de Nossa Senhora, em São Paulo: “Francisco interpreta a doutrina com o olhar da compaixão. Não se trata de endossar o divórcio, mas de valorizar a misericórdia”.

Francisco, apesar de sua língua ferina, prefere sempre o perdão a qualquer gesto que soe a confronto — embora, ressalve-se, seja muito hábil ao esgrimir com palavras, como fez no discurso pré-natalino a seus pares. Sua postura é quase sempre misericordiosa, atributo precioso aos católicos. No entanto, não é raro que um gesto de compaixão provoque estranheza aos olhos dos leigos. Em 21 de dezembro, ele foi ao funeral do cardeal americano Bernard Law, acusado de encobrir um dos maiores escândalos de pedofilia da Igreja Católica, entre os anos de 1984 e 2002, caso contado no filme Spotlight, vencedor do Oscar em 2016. É praxe a participação de um papa nas exéquias de um cardeal — mas, ao homenagear protocolarmente Law, Francisco deflagrou a discussão: afinal, não seria sua obrigação condenar a pedofilia, a qual Bento XVI se viu sem forças de combater, o que o levou à renúncia? Bergoglio não teria sido feito papa justamente para enfrentar situações como essa — além de exercer o controle mais severo das finanças da Cúria e combater o exagerado centralismo? Estar ao lado do corpo estendido de Law pode ter sido um passo em falso, mas seria praticamente impossível evitá-lo. Os avanços na Igreja, quando ocorrem, são morosos, feitos de sístoles e diástoles.

Houve contrações, como sístoles, durante o pontificado de João Paulo II, de 1978 a 2005, e do breve Bento XVI, de 2005 a 2013. O papa polonês não priorizou a chamada colegialidade, o compartilhamento das decisões da Igreja com cardeais e bispos. Ele as centralizou em reação ao fortalecimento de movimentos católicos ligados a bispos locais, como a Teologia da Libertação. O papa alemão alimentou uma Igreja mais fechada em si mesma, concentrada no aparato administrativo, burocrático e político da Santa Sé — atalho para malfeitos. O papa argentino, em processo de diástole, tomou caminho diferente do de seus antecessores, com olhar para o momento histórico de reforma da Igreja, que ele parece querer reanimar. Esse momento foi o Concílio Vaticano II, a assembleia religiosa realizada na década de 60, marco na modernização litúrgica e doutrinal da Igreja. Iniciado por João XXIII (1958-1963) e concluído por Paulo VI (1963-1978), o concílio buscava uma Igreja mais simples, mais próxima do rebanho — uma Igreja, enfim, com a cara de Francisco. Popular, talvez populista. Ele dispensa, sempre que lhe é permitido, o vidro do papamóvel para ficar mais exposto. Diz o cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo: “O papa se comunica muito bem, e sua mensagem e exemplo alcançam multidões”. Os frutos são concretos: no levantamento do Escritório Central de Estatística do Vaticano realizado em 2016, o terceiro ano de pontificado de Francisco, o número de católicos no mundo — depois de décadas em estagnação ou queda — passou de 1,11 bilhão para 1,27 bilhão (há 172 milhões no Brasil).

Francisco age com a convicção de sua formação jesuítica. O cardeal argentino foi membro de uma corporação fundada pelo ex-soldado Santo Inácio de Loyola (1491-1556), que inseriu princípios militares em sua governança interna, cujo principal compromisso é associar o espírito missionário na propagação e defesa da fé católica à obediência e disciplina férrea. Diz o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-­SP): “Enquanto os dois papas antecessores tinham a preocupação de pôr ordem na casa, Francisco radicalizou a postura reformista”

Tudo somado, um personagem como Francisco parece peça de ficção, inventado para uma Igreja em maus bocados. Ele já foi ficção, curiosamente. Em 1979, quase um ano depois da eleição de João Paulo II, um livro intitulado The Vicar of Christ (O Vigário de Cristo), do jurista americano Walter F. Murphy, apresentava um improvável candidato ao Trono de Pedro chamado Declan Walsh. Ele havia sido um herói de guerra da Coreia. No romance, que ficou treze semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times, o autor mostra a ascensão de Walsh como papa… Francisco. O pontífice, então, começa a fazer uso do ofício de forma extraordinária, lançando uma cruzada contra a fome, financiada pela venda de tesouros do Vaticano. Intervém em conflitos mundiais, a ponto de voar para Tel Aviv durante uma campanha de bombardeio árabe contra Israel. Estabelece planos para reverter gradualmente os ensinamentos da Igreja sobre a contracepção e o celibato clerical e manda cardeais conservadores para a vida monástica, quando flagrados em escancarada conspiração. Nada muito distante do que o papa Francisco faz hoje, não mesmo. E, no entanto, Bergoglio lida com a realidade, nada a seu redor é ficcional.

O papa passou dos 80 anos. Com dores no nervo ciático e problemas no joelho, locomove-se com dificuldade. Em entrevista no ano passado ao jornal espanhol El País, aventou a possibilidade de renunciar: “Quando sentir que não consigo mais, o grande mestre Bento já me ensinou como tenho de fazer”. À exceção dos eventos para fins de canonização (veja o quadro na pág. 57), reduziu o ritmo de viagens internacionais — foram apenas quatro em 2017, contra seis em 2016. Cuidadoso, por não querer que seu legado seja subtraído pela “lógica desequilibrada e degenerada de conluios ou de pequenos clubes”, desenhou o perfil da Igreja que sonha para o futuro. No atual quadro de cardeais eleitores em futuro conclave, quase a metade foi escolhida durante seu período em Roma. São líderes missionários com pulso forte, habituados a propagar e defender a fé católica em situações adversas. Assim como o papa Francisco, que não perde uma oportunidade de expor seu estilo.

Na homilia da tradicional Missa do Galo, na semana passada, o papa denunciou o drama dos refugiados e fez um chamado aos fiéis por caridade e hospitalidade. O pontífice lembrou que na noite em que os católicos celebram o nascimento de Jesus, segundo a Bíblia, Maria e José estavam em fuga devido a um decreto do rei Herodes. Eram refugiados, portanto. “Nos passos de José e Maria, escondem-se tantos outros passos. Vemos as pegadas de famílias inteiras que hoje são obrigadas a partir, a separar-se de seus entes queridos, expulsas de suas terras”, destacou Francisco, perante milhares de fiéis que lotaram a Basílica de São Pedro, no Vaticano. Francisco foi mais Francisco do que nunca: quase mundano, ao tratar de assunto de geopolítica internacional, agindo como chefe de Estado, incomodando os grupos da Cúria que desejam deixar tudo onde está e sempre esteve, porque a Igreja exige tradição. Para eles, Francisco terminaria seus dias de escova de dentes na mão, tentando inutilmente limpar a esfinge.

Quanto mais santos, melhor

Quanto mais santos, melhor
Em Massa –  Tapeçaria celebra os “mártires de Natal”: brasileiros na lista de canonização 
(Franco Origlia/Getty Images)

Quebras de protocolo, discursos fora do padrão e encrencas com conservadores são marcas do pontificado de Francisco, um papa especialmente empenhado em aproximar a Igreja Católica dos fiéis do século XXI. Em nome da reconquista do rebanho drenado pelas denominações evangélicas, Francisco está batendo um curioso recorde: em menos de cinco anos, é o maior fazedor de santos da história do catolicismo. São mais de 870 canonizações, uma média de mais de 200 novos santos por ano, superando de longe o papa João Paulo II, responsável por colocar 482 nos altares católicos. O tímido alemão Joseph Ratzinger, em oito anos, acrescentou 45.

É bem verdade que seu primeiro ato de santificação foi copioso: dois meses após se sentar no Trono de Pedro, Francisco canonizou de uma tacada só os 800 “mártires de Otranto”, moradores de um vilarejo italiano abatidos em 1480, em um ataque muçulmano.

Em outubro deste ano, engrossou consideravelmente a lista dos santos latinos ao elevar ao altar, de uma só vez, trinta brasileiros — um grupo de mártires que em 1645 foi dizimado por invasores holandeses no Rio Grande do Norte. Mesmo contando-se os santificados por número de processos, coletivos ou não, Francisco arrasa: finalizou 41 até agora, em menos de cinco anos, contra 105 de João Paulo II em 26 anos no trono. O volume não é a única peculiaridade das canonizações deste papa: muitos dos santos nasceram ou são venerados fora do celeiro habitual, a Europa. Além do Brasil, que só tinha um nativo — Santo Antônio de Sant’Ana Galvão, canonizado em 2007 —, ganharam santos neste pontificado o asiático Sri Lanka, o México e os EUA. “Francisco entendeu que a energia da Igreja já não vive em Roma. Vive nas Américas, na Ásia e na África”, disse a VEJA o historiador americano Christopher Bellitto, especialista em catolicismo contemporâneo.

A trilha das santificações descomplicadas foi aberta por outro papa preocupado com a perda de fiéis, João Paulo II — por sinal, santificado por Francisco, em um dos processos mais rápidos da história. Durante seu pontificado, as beatificações, etapa anterior à canonização, passaram a tramitar e ser celebradas localmente, bastando que na cerimônia estivesse presente o prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, e não mais o pontífice em pessoa. Ocupante da prefeitura durante o papado de João Paulo II, o cardeal português José Saraiva Martins, em entrevista a VEJA, chamou a mudança de uma “pequena revolução”. “A beatificação tem uma dimensão decisiva para as igrejas locais. É uma forma de permitir que a população homenageie seus heróis”, explicou o cardeal.

Com Francisco, as canonizações foram ainda mais facilitadas. Neste ano, às formas convencionais para chegar a santo — martírio ou vida virtuosa comprovada por ao menos dois milagres —, Francisco acrescentou a categoria oblatio vitae, do latim “oferecer a vida”. Nela se encaixam aqueles que morreram por outra pessoa — caso do padre polonês Maximilian Kolbe, que se sacrificou no campo de concentração de Auschwitz para salvar um judeu. A nova regra abre brecha para uma possibilidade antes impensável: a canonização de santos não católicos. Para Bellitto, trata-se de um futuro possível, até provável, mas distante. “Embora a Igreja ensine há mais de cinquenta anos que a salvação não se restringe ao catolicismo, não acredito nesse efeito a curto prazo”, diz. Mais uma tarefa para o irrefreável Francisco.
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Reportagem por Maria Clara Vieira
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2017, edição nº 2563
Fonte:  https://veja.abril.com.br/revista-veja/de-costas-para-a-curia/

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