sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

OS DOIS NATAIS


José de Souza Martins*
 Carvall
Nos dias de hoje, ninguém se dá conta das consequências da chegada da árvore de Natal e de Papai Noel ao Brasil. Chegada como coisas, encaixotadas. Vieram em troca do dinheiro que dava em árvore nos cafezais do Rio, de Minas e de São Paulo, nas últimas décadas do século XIX. Vieram como coisas supérfluas (uma caixa de árvores de Natal e outra de quinquilharias, diz o manifesto de um navio alemão, em dezembro de 1890). Mediações de um novo enredo social gerado pelo esvaziamento do que éramos para sermos o inacabado do que nunca conseguiríamos ser. O enredo do faz de conta, das ilusões que se compra em loja, sonho empacotado e perecível.

Fantasias propriamente brasileiras deram revestimento nativo ao bom velho e à árvore. Adaptações. Aqui, tempo de dar presentes para crianças e mesmo adultos não era o dia de Natal, e sim o dia dos Santos Reis, os magos que fizeram a longa viagem para oferecer ao menino da manjedoura incenso, ouro e mirra.

As informações daquela época indicam que os brasileiros não sabiam onde encaixar a árvore, primeiro, e o simpático barbudo, depois. Havia uma certa tendência em favor do dia 1º de janeiro, muitos insistiam no dia 6 de janeiro e alguns começavam a se agarrar ao 25 de dezembro, que afinal venceu. O dia dos Santos Reis foi sendo esquecido, e hoje são poucos os que o celebram.

A dádiva feita em casa, como expressão religiosa de amor e fraternidade, perdeu para o presente comprado em loja. A dádiva natalina era uma forma de comunhão. Vizinhos e parentes trocavam comida: quitandas, arroz-doce, rabanadas, pastéis e até assados, doces para as crianças.

Com a República e o desembarque do Papai Noel imaginário em nossas vidas, o sentido comunitário e propriamente familiar dessas festas encolheu. O presente-mercadoria materializou as relações e reduziu os relacionamentos sociais aos vínculos de indivíduos, não de pessoas.

No padrão que desaparecia não era econômica a motivação das famílias na distribuição de regalos. Dependiam da economia doméstica, de pessoas que tinham cara e nome. Já no novo padrão natalino era o perfil de um Papai Noel interesseiro que entrava furtivamente nas casas, altas horas da véspera de Natal ou do Ano Novo. Assim, fingia modéstia e generosidade. O que excluía do imaginário papanoelino a imensa maioria das pessoas, as precariamente situadas à margem da economia monetária. Ao agir em nome da mercadoria e do dinheiro, Papai Noel introduzia um elemento igualitário nas relações festivas do Natal, sem dúvida. Mas era igualdade abstrata, condição da desigualdade econômica.

Há evidências de um esforço da sociedade brasileira no sentido de reinventar as festas natalinas no novo marco de sua mercantilização, minimizando as perdas simbólicas e rituais. Ainda assim, Papai Noel, à luz da consciência religiosa da sociedade tradicional, tornou-se expressão das iniquidades próprias da modernidade. Crianças ricas eram melhor ouvidas do que as pobres.

A "Revista do Jardim da Infância", da Escola Caetano de Campos, em São Paulo, publicou às vésperas do Natal de 1892 um conto do poeta Gomes Leal em que quatro pequeninas fadas, à meia-noite de 31 de dezembro, aparecem para uma menina pobre, trazendo nas mãos minúsculos presentes. A avó, então, lhe explica, "as filhas dos ricos devem ser as pequenas fadas dos pobrezinhos”.

Em 1912, a poetisa parnasiana Francisca Júlia da Silva publica o poema "Duas Bonecas". Uma boneca rica de cera e uma boneca pobre de louça conversam na vitrina de uma loja de brinquedos. A de cera expressa todo seu desprezo pela de louça, o desprezo da boneca rica pela boneca pobre, no confronto óbvio de mercadorias de preço distinto, com qualidade distintas: "Gênero de pouco peso,/ Artigo que vale nada... /Aí tens agora explicada /A causa do meu desprezo".

Papai Noel mudou radicalmente a concepção da alegria infantil dos inocentes. Mas, nas contradições profundas de uma sociedade como a nossa, de riqueza muito concentrada, subjugada por meios moralmente condenáveis, longe do que é próprio do capitalismo, é ele um ser bifronte e ambíguo. Sua suposta bondade revela a crianças e adultos um mundo de maldades e injustiças. Prisioneiro de um mundo de rapina, não tem como superá-las.

O verdadeiro Natal, o da manjedoura, quase sufocado na pequenez restritiva de uma visão de mundo confinada no simplismo da compra e da venda, é o Natal do contraponto crítico no mundo das mercadorias. Não há sociedade que não dependa de fantasias para se firmar e se reproduzir. O problema é saber quais são os desarranjos que as fantasias promovem. Não se trata de optar entre um e outro, mas de ver o falso através do confronto com o verdadeiro.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).

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