terça-feira, 12 de setembro de 2017

Distopias ensinam a não desprezar o inesperado, mesmo que seja Trump

ALYSSA ROSENBERG*
Mulheres vestidas como as aias do livro "O Conto da Aia" protestam contra os cortes no Planned Parenthood, em Washington, em julho

Joshua Roberts - 27.jul.2017/Reuters
Mulheres vestidas como as aias do livro "O Conto da Aia" protestam contra os cortes no Planned Parenthood, em Washington, em julho

Em uma introdução a uma nova edição de "O Conto da Aia", a escritora canadense Margaret Atwood descreveu seu romance como uma "antiprevisão" feita na esperança de que, "se esse futuro puder ser descrito em detalhes, talvez não chegue a acontecer. Mas tampouco é possível confiar que o que desejamos vá se realizar".

Essa frase ficou em minha cabeça enquanto se aproximava o lançamento da magnífica adaptação para a TV que a Hulu fez do livro, "The Handmaid's Tale" –e enquanto a história vem sendo saudada como símbolo de nosso momento político por todos, desde conservadores que acusam o livro, publicado há 32 anos, de ser propaganda anti-Trump até vozes de protesto que adotaram as imagens do romance para manifestar sua oposição às propostas de restrições ao aborto aprovadas pelo Senado do Texas.

Se usarmos "O Conto da Aia" ou qualquer outra ficção distópica como indicativo do que pode acontecer a seguir, será que estamos perdendo de vista o que essa ficção quer dizer de fato?
Não quero dizer que seja equivocado falar de possíveis comparações entre a teocracia repressora do mundo imaginado por Atwood e a administração Trump, especialmente como uma maneira de falar da profundidade das águas políticas em que nos encontramos.

James Poniewozik escreveu no jornal "The New York Times" que "The Handmaid's Tale", em que os EUA se transformam após um golpe teocrático que se segue a um ataque terrorista, trata do modo como "as pessoas decidem acreditar que o anormal é normal, até que um dia elas olham em volta e percebem que aqueles são os maus velhos tempos".

Minha amiga Megan McArdle contestou essa ideia no Bloomberg, lembrando aos leitores que Trump "não controla o Congresso ou os tribunais e que não tem o apoio de grandes movimentos de massa como os que conduziram outros governos distópicos ao poder, quer fossem fascistas ou comunistas, quer fossem teocráticos".

Além desse conceito potente, existem pontos de comparação entre um mundo totalmente distópico em que os homens tomam decisões vitais sobre a saúde e a liberdade reprodutiva das mulheres e o nosso mundo, apenas preocupante. (Numa mesa-redonda que moderei no Smithsonian, Atwood me disse que a obra de ficção distópica mais relevante para o momento atual é "1984", de George Orwell.)

A ideia de uma "antiprevisão" apresentada pela autora, contudo, nos recorda que é possível percorrer caminhos distintos e chegar ao mesmo destino. Sim, as posições do vice-presidente Mike Pence sobre igualdade de gêneros e liberdade reprodutiva têm semelhanças com o patriarcado que governa os ex-Estados Unidos da América, atual República de Gilead, no romance de Atwood.

Os americanos, porém, não votaram em Pence para presidente –apenas tiveram de se haver com ele, assim como com cortes nas verbas federais para a organização Planned Parenthood [paternidade planejada, importante instituição de planejamento familiar nos EUA].

Quem elegemos foi Donald Trump, homem de fé escassa, pouca fidelidade a rituais ou interesse neles e nenhuma visão forte sobre como fazer frente aos desafios graves que se colocam para este país, alguém que conquistou os eleitores não com promessas de um puritanismo austero, mas de um espetáculo agressivo e bombástico de grandeza nacional.

OPRESSÃO
 
É possível chegar a uma distopia feminista tratando as mulheres como se fôssemos sedutoras perigosas e insaciáveis, cuja sexualidade precisa ser mantida sob controle rígido. Talvez também seja possível chegar a isso tratando-nos como enfeites a serem agarrados, reposicionados e substituídos ao bel-prazer [dos homens].

Vocês podem nos oprimir porque nos atribuem poder demais e o tipo errado de importância ou porque não nos atribuem poder algum.

A ficção distópica –ou qualquer ficção, na realidade– não deve ser julgada pelo grau em que serve como proteção contra transformações concretas e radicais na sociedade americana. Basta pedir que uma história seja interessante e bem executada e que os personagens sejam memoráveis e densos.

A ficção não pode salvar o mundo, mas pode descrever forças importantes em ação na nossa política e cultura que possivelmente não sejam captadas nos dados de pesquisas e na cobertura do jornalismo político convencional. A questão é se reconhecemos essas descrições quando nos deparamos com elas e o que fazemos em resposta.

OUTRAS OBRAS
 
Durante a campanha presidencial de 2016, críticos –entre os quais me incluo enfaticamente– escreveram um artigo atrás do outro sobre obras de arte que diagnosticaram ou descreveram as próprias forças que ajudaram a conduzir Trump à Presidência, muitas criadas nos anos entre o breve flerte de Trump com uma candidatura à indicação presidencial pelo partido Libertário, em 2000, e sua entrada real no campo republicano, em 2015.

O filme "Idiocracia" (2006), de Mike Judge, mostrou um populacho embriagado com e iludido por produtos corporativos e espetáculos de entretenimento como luta livre profissional e corridas de "monster trucks".

"Sem Dor, sem Ganho" (2013), de Michael Bay, captou um tipo específico de sentimento americano de direito adquirido e a desconexão entre a riqueza e as conquistas, por um lado, e o trabalho árduo que pode produzir as duas coisas, do outro.

E o notável e notavelmente falho "Southland Tales: O Fim do Mundo" (2006), de Richard Kelly, mostrou um Estados Unidos no qual, após uma série de ataques nucleares, os cidadãos foram impelidos a aceitar um sistema nacional de identificação e monitoramento e se anestesiam com canções pop de estrelas pornô, além de se deixarem seduzir por empreendedores desonestos.

Francamente, não sei se consumir esse tipo de ficção distópica, que claramente abrange "O Conto da Aia", equivale a fazer pressão sobre uma ferida, como sugeriu minha colega do jornal "The Washington Post" Monica Hesse –uma maneira de sentir nossos piores medos na carne e nos preparar psicologicamente para enfrentá-los.

Também é possível que usemos essas histórias, por mais ligadas à realidade que seus autores possam ter tentado fazê-las, como maneira de afastar nossos temores e reafirmar a nós mesmos que somos imunes a eles.

Quando o futuro se revela "muito mais futurista do que [os cientistas] previram originalmente", como diz um personagem de "Southland Tales", ou quando a realidade começa a desafiar as leis da plausibilidade fictícia, como fez uma parte tão grande da improvável candidatura presidencial de Trump, como devemos encarar a ficção distópica e a nós mesmos?

Talvez devamos simplesmente aprender a não menosprezar o inesperado. O mundo é um lugar estranho, mesmo que não seja estranho precisamente das maneiras que Margaret Atwood, Mike Judge ou Richard Kelly imaginaram.
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* ALYSSA ROSENBERG escreve um blog sobre cultura pop na seção "Opinions" do "Washington Post". DO "WASHINGTON POST"

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