domingo, 6 de agosto de 2017

Coisas com as quais nunca me conformo

Juremir Machado da Silva*
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Sei que como todo homem da minha idade caminho para o anacronismo.

A cada dia me torno obsoleto. Sou como uma rosa que nunca teve razão de ser e que a cada segundo perde seu perfume e se desfolha sem remissão. Resta em mim uma capacidade ridícula de não me conformar. Com o quê? Com a vida que passa sem se explicar e sem explicitar seu sentido, com a indiferença dos jovens em relação ao passado, com o tratamento destinado aos velhos, com a ideologia tecnicista que coloca dispositivos criados por homens acima dos interesses humanos, com a desigualdade que condena pelo nascimento tantos a uma existência infeliz sem que eles nada tenham feito por merecer, salvo nascer no lugar “errado”, do ventre “errado”, errantes.

Não me conformo comigo e com o mundo. Não me conformo de não ter aprendido a tomar chimarrão – o gosto me é insuportável – para ficar horas mateando com a Cláudia, com meus avós e meus pais faziam entre eles em manhãs geladas ou em crepúsculos alaranjados na campanha, proseando ou vivendo em silêncio a cumplicidade de uma travessia feita de pequenos e de grandes saltos na escuridão incerta do futuro ou na luminosidade ofuscante do presente com seus holofotes enganosos. Quando fui fazer doutorado na Sorbonne, tive um medo infantil de não ser aceito na hora da inscrição.  Cláudia me tranquilizou com humor:

– Eu te boto sentado lá na sala de aula e não deixo te tirarem.

Eu não me conformo em ver amigos morrerem, companheiros partirem, políticos traírem seus eleitores, governantes roubarem, filhos não respeitarem os pais, pais não entenderem os filhos, livros não serem lidos. Não me conformo ao ver sair o sorteio: câncer para um, infarto para outro, Alzheimer para tantos. Não me conformo com as misérias do mundo, tanta sabedoria, tanta inteligência, tanta ciência, tanta tecnologia, tanta genialidade e paradoxalmente tamanha incapacidade de dar saúde, educação, comida, emprego e oportunidades reais a todos. Eu não me conformo com a minha covardia, com o que sinto e não digo, com o que digo e não sinto, com a hipocrisia que faz condenar a corrupção de uns e tolerar a roubalheira de outros, com os jeitinhos eternos, os carteiraços cotidianos, os privilégios, os “entendimentos” distintos das leis conforme os “pacientes” da justiça.

Não me conformo com o racismo, com a homofobia, com o moralismo que tolhe e tenta impor regras categóricas onde deve prevalecer a tolerância, a liberdade individual e o direito à diferença. Não me conformo com a rapacidade que “ergue e destrói coisas belas”. Não me conformo com a violência, a ganância, a perversidade e a injustiça. Não me conformo com a minha incapacidade para dar respostas rápidas e espirituosas quando me dizem coisas falsamente gentis ou verdadeiramente afrontosas que me repugnam ou indignam. Não me conformo com o desinteresse geral pela poesia, com o triunfo do divertimento banal, com a glória vã de pseudocelebridades, com tantas vidas tiradas por balas perdidas, com a condenação de crianças a uma vida sem futuro, com a hegemonia do dinheiro sobre todas as coisas.

Eu não me conformo com certas estatísticas e com as ações que as determinam: “Nove entre dez dos mortos pela polícia no Rio de Janeiro são negros ou pardos”. Não me conformo com fanatismo em futebol, terrorismo religioso, facciosismo político, panelinhas culturais. Eu não me conformo com minha falta de jeito para sambar, meu desafinamento para cantar, minha incompetência para tocar um instrumento. Não me conformo com a dor dos inocentes, a mágoa dos injustiçados, a tristeza dos abandonados. Não me conformo por não ver mais as estrelas coalhadas no céu de Palomas, não sentir no rosto a brisa suave das manhãs de setembro nos campos da minha infância, não ter dito não com firmeza quando me dobrei, tergiversei e me abaixei.

Resta em mim essa inconformidade com o tempo, meu tempo, esse inconformismo com a sorte, meu destino, essa desconformidade com a morte, que sempre se aproxima, essa perplexidade face à beleza do universo, que se expressa nas mínimas coisas, por exemplo, no sorriso desta criança que desconheço e que me fita enquanto escrevo sob o sol da imaginação. Eu não me conformo com os golpes de Estados, com os Estados que minguam, o estado das coisas, as coisas em estado terminal. Não me conformo com a crise do humanismo, não me conformo com nossa síndrome de super-homens, não me conformo com a equiparação de homens e coisas, não me conformo com a destruição da natureza.

Não me conformo com a minha pequenez diante de tudo e com a minha falta de grandeza face ao pouco que eu poderia afetar. Na solidão povoada do dia a dia, no formigueiro isolacionista da pequena cidade grande, não me conformo com o tempo perdido deixando o tempo passar sem prestar atenção ao cortejo das estações. Sobretudo, profundamente, não me conformo com meu medo de não temer e de viver. Não me conformo com esta mão que treme quando deveria apertar e amar.
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* Sociólogo. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10110/coisas-com-as-quais-nunca-me-conformo/
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