quinta-feira, 31 de agosto de 2017

MARCIA TIBURI: O fascismo e o ridículo andam juntos

O fascismo e o ridículo andam juntos
Foto: Simone Marinho/Ed Record/Divulgação

Por Marcelo Menna Barreto
 
Para a filósofa e professora Marcia Tiburi, a propaganda nazista está na linha direta que leva ao surgimento da sociedade do espetáculo numa espécie de círculo vicioso. Portanto, segundo ela, a intimidade entre fascismo e ridículo político é evidente. A gaúcha de Vacaria, mestra e doutora pela UFRGS, não é uma filósofa qualquer. É filósofa, romancista e ensaísta. Mas hoje, ela prefere mesmo ser chamada de professora. Principalmente depois que a categoria começou a ser atacada pela turma da “escola sem partido”. Uma professora que atendeu o Extra Classe no meio de uma maratona que incluiu suas aulas no Rio de Janeiro, uma ida a São Paulo, uma palestra em Florianópolis e uma aula sobre Juan Rulfo, em Curitiba.  Sem  nunca deixar a simpatia de lado, a professora Marcia, mesmo tendo que reler Pedro Páramo inteiro para o último compromisso que listamos, em hipótese alguma deixou o Extra Classe sem respostas, falando um pouco mais do seus últimos trabalhos.  Depois do sucesso do seu livro Como conversar com um fascista (Record 2015)  ela  lança pela mesma editora o Ridículo Político, outro ensaio que, parafraseando alguns membros do nosso diligente Ministério Público, está no timing correto, analisando a política e o fazer política em nossa atualidade.  

Extra Classe – Usando uma palavrinha da moda no mundo das artes, em que o Ridículo Político ‘dialoga’ com o seu livro anterior Como conversar com um fascista?
Márcia Tiburi – De fato, os livros podem ser lidos tendo em vista o diálogo entre eles. Em Como conversar com um fascista, eu tentei mostrar que o ódio não é um afeto natural, mas que ele se prolifera pelos discursos e que esse discurso se tornou um capital. As pessoas não imaginam como são “afetadas” pelas falas dos outros e pelos discursos vigentes. As pessoas “odeiam” tanto, em grande medida porque há muito estímulo ao ódio. Não há ódio sem linguagem, sem expressão de ódio, sem exposição de ódio. Mas odiar é mais do que um afeto, é também um jogo de linguagem. Um jogo em que quem pode mais chora menos. Odiar virou moda em uma época em que o desvalor se torna um valor.  A mesma coisa acontece com o ridículo. Ele é algo negativo que se torna valor, no sentido de capital mesmo. Em nossa época, aqueles que não se importam em cair no ridículo podem tirar vantagem dele. Muitos aprendem a fazer uso do que é vergonhoso como vantagem política. Em Ridículo Político eu tento colocar a atenção na estranha capitalização que vem acontecendo por meio do discurso preconceituoso e das cenas vexatórias. O que antes causava vergonha, transformou-se em mérito. E isso constitui uma profunda mutação na cultura política. O papelão é a moeda da política transformada em publicidade na era do espetáculo.

EC – Sabemos que a retórica fascista é vazia pois não apresenta ideias ou argumentos que fujam ao senso comum, mostrando-se alheia a qualquer limite ou reflexão. Neste contexto, o fascismo além de perigosos também é um ridículo político?
Marcia – O fascismo sempre teve algo de espetacular. Hitler, e Mussolini em certa medida, não seria ninguém sem a propaganda que ele ajudou a criar. Eles fazem parte da pré-história do que ainda chamamos de fascismo, a postura que nega o outro em um sentido cognitivo, ético e político. O discurso fascista vive de clichês e de um certo modo de aparecer. Um fascista quer aparecer mesmo que não tenha nada a dizer. Ele sabe que o mero aparecer rende capitalização na cultura do espetáculo. A propaganda nazista está na linha direta que leva ao surgimento da sociedade do espetáculo numa espécie de círculo vicioso. A intimidade entre fascismo e ridículo político é realmente evidente, sobretudo se pensarmos no poder de capitalização, de influência que os discurso preconceituosos, de ódio, os clichês expostos sem vergonha, tem sobre as pessoas e a sociedade como um todo.
EC – Já no prólogo do seu novo livro, mesmo brincando, você diz “Se o leitor espera divertir-se, deixe-o agora ou cale-se para sempre”. Não tens medo, de cara, de perder o seu leitor (risos)?


O fascismo e o ridículo andam juntos 
Foto: Divulgação
 
Marcia – Eu confio na inteligência de quem lê o meu livro. O título de “Como conversar com um fascista” já era uma ironia que, por sorte, muita gente percebeu. Foucault disse em algum lugar que desejava a maldade do leitor. Como professora de filosofia, eu posso dizer o mesmo, não me interessa um leitor conformado. Nesse sentido, a ironia é uma boa maldade. O contrário da má fé que vemos hoje naqueles que fingem que não entendem e da fraqueza cognitiva daqueles que não entendem mesmo. Há pessoas que não gostam do meu livro e nem o leram. Não argumentam, e muitas vezes o xingam, ou xingam a mim. E isso não apenas entre aqueles que hoje praticam abertamente o discurso de ódio. Eu soube de um professor de uma importante universidade que não leu o livro e falou muito mal dele, e de mim, inclusive confessando em aula que ao entrar nas livrarias, escondia o meu livro atrás de outros. E era um professor alinhado com a esquerda. Cito esse caso, para que vejamos que o avanço da tendência fascista vai muito mais longe do que se imagina. Infelizmente, uma postura como essa apenas comprova concretamente as minhas teses. O próprio sucesso e o ódio que há contra o livro dão a ele certa centralidade na cena brasileira desse momento. 
 
EC – Você fala do hábito de não tratar com seriedade as coisas políticas. Isso, na sua opinião, vem, no Brasil, com o certo desalento com tudo o que está acontecendo ou deixa de ser um fenômeno conjuntural e permeia a história?
Marcia – Talvez seja possível buscar essa falta de seriedade na história no sentido de que as pessoas talvez não tenham se preocupado muito com o poder no momento em que deveriam ter feito isso. Mas seria conjecturar no vazio desde que não temos como escrever uma história do descaso. A história é a história do descaso, mas não temos acesso a ele. A meu ver, esse descaso, cujo conteúdo não conseguimos acessar, vem se aprofundando. Deixamos de lado, aquilo que não conseguimos resolver. Não se trata, portanto, de falta de seriedade em função de um gosto pela piada. Mas de uma incapacidade de nos relacionarmos com a coisa política. E, nesse sentido, de cuidar da coisa política. Eu me refiro, portanto, mais à falta de seriedade que surge na eminência de perigos que podemos avaliar. Porque pensamos que a vida se resolve em termos de economia, deixamos de lado a política. Mas essa visão nos foi vendida, não é autêntica. Ela nos foi vendida pelo neoliberalismo.

EC – Você afirma que perceber a relação entre a política e a estética é algo cada vez mais urgente. Sem a óbvia resposta, leiam o livro por favor (risos) poderia nos dar uma pincelada sobre o isto?
Marcia – Às vezes eu realmente tenho que sugerir isso, pois é incrível a quantidade de pessoas que falam sem demonstrar ter lido. Me impressiona que um livro possa incomodar tanto. Não é, evidentemente, o caso diante de sua pergunta que me pede para expor um pouco mais o meu ponto de partida. Em termos muito simples, quando falo de estética e política, estou me referindo tanto ao teatro da política, do aparecer em política, quanto ao universo daquilo que podemos chamar de sensibilidade psicossocial, os afetos que fazem parte do cotidiano político, não apenas do macropoder, mas do micropoder, do simples cidadão. A meu ver, se não compreendermos essa esfera não saberemos muita coisa sobre política. Atualmente, as pessoas falam demais sobre política sem conhecimento de causa e isso não tem ajudado a produzir mais discernimento.

O fascismo e o ridículo andam juntos 
Foto: Simone Marinho/Ed. Record/Divulgação
 
“Odiar virou moda em uma época
em que o desvalor se torna um valor.
A mesma coisa acontece com o ridículo.
Ele é algo negativo que se
torna valor,
no sentido de capital”

EC – Se para você política não é algo que se destrói, mas algo que se transforma, em que se transformou a política no Brasil?
Marcia – Você já ouviu neurocientistas dizerem que o cérebro é plástico? Ou seja, que ele se molda, que ele se adapta? Pois podemos dizer que a política tem a mesma qualidade plástica. Ela se molda, ela se adapta, ela é absolutamente moldável. Infelizmente, atualmente ela tem sido apenas manipulável para os fins de interesses privados contra os fins públicos que importam a um país e a uma sociedade democrática. Podemos dizer que a política vem sendo manipulada na direção da publicidade. Nossos representantes se apresentam como bufões e canastrões de um mau teatro com um péssimo enredo. No entanto, não devemos perder as esperanças, pois a política pode ser transformada em outra coisa, vai depender do nosso desejo. Aí mora um problema imenso, mas é esse o que deveria ser resolvido. Pois se não houver desejo não haverá entendimento, compreensão e transformação concreta do estado atual da política.

EC – Com a vitória de Trump nos EUA e a ameaça de quase chegada ao poder de Marine Le Pen, da Frente Nacional (de extrema direita) na França, como você avalia a política contemporânea no mundo. O ridículo também está presente?
 Marcia – De fato, não estou falando de um fenômeno brasileiro apenas. A questão é global, em todos os sentidos. Não foram os brasileiros que inventaram isso, mas o Brasil nesse momento, serve de exemplo. A Itália de Berlusconi, os EUA de Trump impressionam, mas podemos buscar a aparição do fenômeno em vários outros lugares. Trata-se de uma tendência dominante que tanto demonstra a falta de criatividade em política, como um perigo de destruição generalizada dos valores políticos conhecidos ate aqui.

“Um fascista quer aparecer mesmo que não tenha nada a dizer. Ele sabe que o mero aparecer rende capitalização 
na cultura do espetáculo.”


O fascismo e o ridículo andam juntos 
 Foto: Divulgação
 
EC – Você diz que ninguém quer ocupar a posição ridícula, apesar de falar da instrumentalização do ridículo na política. No Brasil nós temos os famosos candidatos folclóricos, alguns, inclusive, com votações expressivas como o caso de Enéas Carneiro,  candidato três vezes à presidência da República (1989, 1994, 1998) que com o sua agilidade de raciocínio e fala, além do famoso bordão “Meu nome é Enéas!, foi eleito Deputado  pelo estado de São Paulo, com a maior votação já registrada no país para a Câmara Federal (mais de 1,57 milhão de votos). Votação, aliás, que quase foi batida por Tiririca, também de São Paulo, que com o seu bordão “Pior que está não fica”. Eles estão em que pé? Marcia – Esse é justamente o paradoxo do ridículo político, ninguém quer ser menosprezado por meio do ridículo, já que o ridículo implica uma desvalorização. Ninguém quer essa marca, mas aquele que ela assinala, adquire um valor. Isso não acontece ao natural, digamos assim. Os exemplos trazidos por você são todos perfeitos. Nenhum desses cidadãos se promoveu politicamente por meio do reconhecimento de algo como “competência” ou capacidade. Nenhum deles representava nada de admirável, de nobre ou sublime, digamos assim, muito menos de belo e verdadeiro, para usar termos antigos que em momentos diversos da história humana designaram valores estéticos e morais. Todos foram votados porque apareceram como personagens histriônicos, imagens, “personas”, no sentido de máscaras mesmo, com textos específicos, bordões, clichês, falas prontas. Quem cresce e aparece é porque se torna personagem, “figura”. Podemos citar candidatos eleitos em diversas cidades e estados pelo país afora. Os agentes populistas mais canastrões estão por aí exercendo seus governos de fachada. O que eu quero dizer com isso, não é que a política perdeu o estilo, pois há personagens também no passado, mas que o “estilo” do momento acoberta uma tremenda inconsistência política. Me refiro ao conhecimento, à capacidade mesma de governar visando a complexidade de um país. Quando ouvimos o discurso baseado em clichês, não estamos só diante de um ignorante que se elegeu, mas estamos diante de um caso de ignorância que foi capturada para efeito do poder. A ignorância tornou-se capital político, percebe?

EC – Você cita um exemplo de ridículo político no caso de um deputado que teria sido cantor sertanejo, com apresentações bem “sensuais”, que tornou-se pastor e propôs uma lei para proibir a masturbação. Sendo benevolente com a sua excelência, que pode alegar que suas dancinhas ocorriam antes da sua conversão, como você classificaria a maioria dos deputados da Frente contra a Corrupção que apoia as ditas 10 medidas do Ministério Público que votaram recentemente contra o afastamento de Temer para responder processo no STF?
Marcia – Digamos que, neste momento, os personagens das cenas que denominei sob o conceito de Ridículo Político, poderiam criar um partido novo. O Partido do Ridículo Político no qual se filiariam os políticos ridículos. Eu trabalho com essa distinção. Não podemos falar de um ridículo próprio a pessoas que desconhecemos, mas podemos elaborar essa categoria para dar conta das cenas em que ocorre essa inversão de valores. A saber, o que era vergonhoso se torna valioso, o que era papelão, tornou-se capital. Nessa linha, o que era considerado no passado como falta de ética tornou-se hábito. O que era imoral, tornou-se costume e, à medida que naturalizado, menos evidente. É como se não percebêssemos mais o ridículo, porque estamos todos mergulhados nele.

“O papelão é a moeda da política transformada
em publicidade na era do espetáculo”

EC – Quando você diz que o ridículo parece algo que não está acontecendo e, por isso, dá  a sensação de algo absurdo, como a política que oculta a política ao dizer-se não política, estás sendo bem direta para alguns que nas últimas eleições usaram como elemento de sua propaganda o “Eu não sou político, sou gestor”. Aliás, você entende que o marketing, a propaganda, ajudou muito nesse processo de ridicularização da política. Até que ponto alguém que se elege com um discurso desses, o da negação da política, deixa de ter uma atitude cínica e cai no ridículo?
Marcia – Fui absolutamente direta. Citei exemplos. Não há nenhum problema em relação a isso, pois não estou xingando ninguém de ridículo, como alguns podem pensar. Estou falando da capitalização a partir de um estilo em um contexto em que o “aparecer” é capital, o da sociedade do espetáculo. É a mutação da cultura política na época da sociedade do espetáculo o que me interessa avaliar. O estilo, aliás, ao qual me refiro deve ser entendido como modo de aparecer, de encenar, de realizar a performance que é parte do “fazer política”. Não há campanha sem performance e não há aparecer na cena pública sem performance. Mas existem performances mais espontâneas e outras menos espontâneas. As dos políticos são, em geral, programadas. É raro o político que não precisa “fazer tipo” disso ou daquilo. O que eu estou dizendo a transformação da política em publicidade leva a esse estilo. Quando o aparecer importa mais do que o ser, vemos essas cenas aberrantes. O cinismo não é o posto do ridículo, ele é a sua continuação. O populismo de hoje em certos personagens é orquestrado milimetricamente. Criam-se políticos como se criam cantores de sertanejo universitário ou bandas de forró fake. Há uma indústria cultural da política. Sua característica é vender o “gestor” neoliberal. Esse que promete sustentar a economia sem ideologia e está necessariamente ou enganando ou mentindo.
O fascismo e o ridículo andam juntos 
Foto: Simone Marinho/Ed Record/Divulgação

EC  – Para você, um ridículo especial que lhe serviu de estímulo para teorizar a relação entre estética e política foi o ocorrido no dia 17 de abril de 2016, quando a Câmara votou pelo impeachment de Dilma Rousseff. Sem dúvidas, o Brasil inteiro experimentou um certo mal-estar diante das declarações de votos mais bizarras. Segundo você,  uma sensação estranha, uma vontade de rir que era impossibilitada por um tipo de vergonha que analisas no livro, a vergonha alheia. Mas, se a vergonha alheia é o ato de sentir vergonha pelo próximo, você acha mesmo que houve esse sentimento ou o sentimento que seu livro também aborda, o nojo, uma categoria que entendes estar no limiar da estética?
Marcia – Uma coisa não exclui a outra. O nojo da política está dado, é vivido diariamente como uma ambiguidade entre querer, desejar e perder e, por isso, recalcar o próprio desejo. Já aquele sentimento de vergonha alheia veio à tona naquele momento, pois aqueles que esperavam alguma coisa melhor da política, viram que daquele mato não sairia coelho, digamos assim. Quero dizer que, sentimos vergonha alheia diante daqueles que não sentem vergonha. Por que diante de quem tem vergonha sentimos compaixão, pena, ficamos tocados com alguém que se envergonha. Mas a vergonha alheia é uma sensação péssima que temos diante de uma desordem, digamos assim, diante de uma contradição gritante. No caso, vimos os representantes da nação se portando como imbecis despreparados para o cargo que ocupam. Em termos coloquiais, impressionava a falta de noção, a boçalidade, o patético.  A democracia estava em jogo e eles falavam e agiam como mentecaptos. Ao mesmo tempo, aqueles que odiavam Dilma Rousseff talvez tenham visto ali que os que a expulsavam ignominiosamente de seu lugar de presidente da República eram piores do que ela. E nessa medida, quem realmente pode estar contente com o que sobrou disso tudo? Será que os que, nas ruas, pediram o impeachment, não foram traídos por seu próprio desejo?
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Fonte:  http://www.extraclasse.org.br/exclusivoweb/2017/08/o-fascismo-e-o-ridiculo-andam-juntos/

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Bergoglio foi barbeiro de Jorge Luis Borges

 http://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2017/08/29_08_2017_franciscoborgessemana.jpg
 Bergoglio e Borges. A histórica foto entre o então professor e o escritor (Fonte: Semana)

A história da foto do Papa Francisco com Jorge Luis Borges parece retirada de um conto borgiano. Assim ocorreu este curioso encontro entre dois dos argentinos 
mais importantes da história.

A reportagem é de Cristina Pérez, publicada por Semana, 24-08-2017. A tradução é do Cepat.

É impossível não se assombrar diante da fotografia do encontro entre Jorge Bergoglio e Jorge Luis Borges. Reconstruímos a história da imagem que contém, talvez, o que Borges chamaria de “a memória do passado e a previsão do futuro, vale dizer, o tempo”.

A imagem, tomada em agosto de 1965, mostra o professor jesuíta Jorge Bergoglio – a quem seus alunos chamavam de Carucha, por sua “cara de bebê” – enquanto acolhe o já renomado Borges, na sala de visitas do Colégio Imaculada Conceição, da província argentina de Santa Fé. Seu rosto, com aspecto gentil, mostra-se comprazido ao dar as boas-vindas ao intelectual que aceitou dar algumas aulas de literatura gauchesca, convidado pelo religioso de 29 anos, que ainda não havia sido ordenado sacerdote.

No meio de ambos, outro professor de letras inclina a cabeça, evitando a câmera. “Eu tenho a cabeça inclinada por discrição. Escuta-me - ressalta -, esta foto faz 50 anos! Bergoglio era o professor de letras naquele momento... não era o papa! Eu não sabia que precisava recordar aquele momento para refrescá-lo tanto tempo depois”, responde Jorge González Manent, que chama a si próprio ‘o terceiro Jorge da foto’, enquanto tenta buscar em sua memória detalhes da única imagem existente conhecida até agora entre estes homens, tomada por um fotógrafo do jornal El Litoral.

A busca dos protagonistas de então nos leva às memórias profundas de alunos do quarto e quinto ano daquela época. Um deles é Rogelio Pfirter, diplomata argentino de vasta trajetória, nomeado em fins de 2015 embaixador do país no Vaticano. “Parece um jogo borgiano do azar se tornar o embaixador de um professor do secundário, que se tornou papa. Essa é uma simbologia que me emociona”, admite Pfirter. “O tempo nos fez andar por diferentes caminhos e nos unir ao final. Ter contado com estes dois homens juntos é uma experiência que meus companheiros e eu levamos gravada como algo excepcional”.

E o excepcional remonta àqueles dias, após o curso ditado por Borges, conforme relata o próprio Bergoglio, já como cardeal de Buenos Aires, ao escrever o prólogo do livro De la edad feliz, no qual outro dos alunos, o hoje jornalista Jorge Milia, evoca essas vivências. “Como exercício literário, pedia a eles para que escrevessem contos. Impressionou-me sua capacidade narrativa. Dos contos escritos, selecionei alguns e Borges os escutou. Ele também ficou impactado e incentivou a publicação. Além disso, quis escrever o prólogo”, recorda Bergoglio, no texto datado em 1º de maio de 2016, que parece dialogar com aquele prólogo de Borges ao introduzir o livro dos alunos, chamado Cuentos originales, que hoje adquire um indubitável tom profético.

“Este prólogo não somente pertence a este livro, mas a cada uma das ainda indefinidas séries possíveis de obras que os jovens aqui congregados podem, no futuro, redigir. É verossímil que algum dos oito escritores, que aqui se iniciam, chegue à fama e, então, os bibliófilos buscarão este breve volume à procura de tal ou qual assinatura, que não me atrevo a profetizar”, escreve Borges, no dia 7 de outubro de 1965.

Entre as joias daquelas lembranças, destaca-se uma anedota desconhecida que, entre sorrisos, Jorge González Manent nos apontou e que apresenta um inimaginável momento de intimidade entre o hoje papa e o escritor: “Lembro-me que íamos buscá-lo no hotel. Um dia, Bergoglio sobe para chamá-lo no quarto e demora mais do que se supõe para ir a um terceiro piso. Quando chegam, dissimuladamente, faço-lhe o gesto de ‘o que aconteceu?’ E, dissimuladamente, Jorge me diz: ‘O velho me pediu que o barbeasse’”. Em algum lugar, é possível que Borges sorri pensando que teve o papa como barbeiro.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/571116-borges-teve-ao-papa-como-barbeiro

A educação como caminho para a tolerância

Resultado de imagem para educação como caminho para a tolerância Jornal do comércio

Em um país cujos principais debates giram em torno de questões políticas, seria de se esperar que a maioria dos cidadãos tivesse condições intelectuais de discuti-las com propriedade. No entanto, para deleite dos envolvidos, o investimento em educação é cada vez mais magro, e não seria ousado demais presumir que o objetivo é justamente manter boa parte da população alijada da verdadeira capacidade de discussão.
Inflados pelos acontecimentos cada vez mais surpreendentes, os brasileiros partem para um bate-boca infindável, que raramente traz algum resultado além de dores de cabeça e estresse, podendo, inclusive, acabar em violência. Uma opinião contrária se torna praticamente uma afronta pessoal e, com os ânimos cada vez mais aflorados, é difícil voltar à razão.
Sem educação - e educação de fato, com debate e reflexão, que vai além da mera transmissão de conteúdo -, não há avanço. Como diria o norte-americano John Dewey (1859-1952), um dos principais estudiosos do tema, "a educação é um processo social, é desenvolvimento. Não é a preparação para a vida, é a própria vida". Sem um processo educacional, o ser humano repete discursos que não entende e prega verdades que não conhece. Em um contexto de atitudes polêmicas e reações extremas, essa realidade se torna perigosa.
Na última reportagem da série Civilização extrema: o perigo de uma sociedade intolerante, publicada durante o mês de agosto no Jornal da Lei, especialistas apontam que a solução para esse cenário passa, obrigatoriamente, pela educação; e que, sem ela, a queda para um processo de total ruptura democrática ficará ainda mais inevitável.

Educação para o convívio é saída para extremismo

Não importa o tema - violência, corrupção, aumento na criminalidade -, a educação sempre surge como um possível remédio, capaz de curar uma população doente. Seja a educação de crianças e jovens, ou a de adultos para a conscientização em determinado tema, é notável que pouco se avança quando parte predominante da sociedade possui alto nível de ignorância. No caso do Brasil, o constante esquivo, por parte do governo, em investir em educação faz com que seja aventada a possibilidade de que, para o sistema político, a ignorância do povo, seja, de fato, uma dádiva. Sem educação, instrução e orientação, a população se vê votando às cegas, com base em conceitos de senso comum e em opiniões sem embasamento teórico.
Em um cenário polarizado, amplificado pelas redes sociais, nas quais discursos de ódio são proferidos sem qualquer responsabilização, a ausência de uma educação para a cidadania se torna ainda mais preocupante. O indivíduo, sem condição de argumentar, seja por falta de conhecimento ou interesse, parte para a agressão, esperando que sua opinião se sobressaia perante a de tantos outros que, da mesma forma que ele, fazem o mesmo. O cenário se torna um ciclo vicioso de difícil interrupção.
O Papel da escola
A cada nova geração, a sociedade precisa construir quase tudo de novo. E isso deve ser feito pelos meios mais rápidos, agregando ao indivíduo, que acaba de nascer, uma natureza capaz de vida moral e social. Esse pensamento do sociólogo, antropólogo e cientista político francês Émile Durkheim (1858-1917) resume o papel da educação em um instituto que não se limita a desenvolver o organismo, mas cria um ser novo.
E, para criar um ser novo, não basta transmissão de conhecimento, sem questionamentos ou debates. Na base curricular nacional, que determina os conteúdos que serão ensinados aos alunos dos ensinos Básico, Fundamental e Médio, não constam explicações e reflexões a respeito de uma formação política e social. Cresce, entre alguns professores, a ideia de que o papel da escola é ensinar conteúdos como Matemática, Ciências e Línguas. No Japão, por exemplo, em 2015, uma normativa do governo determinou que as universidades servissem "áreas que contemplem as necessidades da sociedade" e, assim, deixassem de oferecer cursos das áreas de humanas, focando as formações tecnológicas.
A visão da escola/academia como mera fonte de mão de obra é criticada pelo professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Marcelo Andrade de Souza. Para ele, que é autor do livro "Tolerar é pouco? Pluralismo, mínimos éticos e práticas pedagógicas" (Editora Mauad, 2009), a escola tem dupla função. Além de transmitir conteúdo, precisa ajudar a construir uma cidadania mais tolerante, aberta às diferenças. "Muitas vezes, os professores pensam que trabalhar com temas de preconceito, de racismo, de discriminação, seria função da família. É um engano frequente, pois não há ensino de conteúdo sem transmissão de valores", argumenta.
A consideração de Souza se sustenta na posição que Durkheim expressou há mais de um século. Segundo o acadêmico francês, a educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social. A ideia é destinar à criança certos estados físicos, intelectuais e morais reclamados pela sociedade política, desenvolvendo-os.
Um dos maiores expoentes da reflexão sobre educação, o filósofo e pedagogo norte-americano John Dewey (1859-1952), defende que, na medida em que a escola desempenha um papel decisivo na formação do caráter das crianças de uma sociedade, também pode transformá-la fundamentalmente. Ao encontro dessa ideia, o sociólogo Marcos Rolim acredita que, uma vez que o papel da família tem mais a ver com a formação psicológica do indivíduo, a escola tem muito a fazer. Embora não seja garantia de formação de um cidadão exemplar, a educação escolar facilita a leitura dos fatos, considerando pontos de vista. "Teria de desenvolver uma educação voltada para o pensamento, para a reflexão, que, por natureza, é crítica. O sujeito que pensa dificilmente aplaude sem sequer questionar", explica, destacando a importância da "habilidade de questionar", que vai de encontro a um alinhamento automático, que produz intolerância e, no limite, ódio.
Por isso, a discussão de ideologias e de valores se torna fundamental em uma sala de aula. Para o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Clóvis de Barros Filho, seria necessário insistir na discussão a respeito da pluralidade e do respeito às diversidades. Ele destaca que, ao mostrar que os valores são complexos, o professor dá ao aluno a lucidez necessária para, diante de uma manifestação ideológica exacerbada, problematizar sua pertinência por meio da análise dos valores combatidos e ausentes.
Há mais de 100 anos, Dewey já reconhecia sinais da necessidade de uma reforma educacional capaz de democratizar radicalmente a sociedade. O educador acreditava que, para transformar as escolas em agentes de reforma, seria preciso reconstruí-las por completo.
A percepção de que o papel do ensino escolar se limita à transmissão de conteúdo não é exclusividade brasileira. O professor catedrático do Instituto da Educação da Universidade do Minho, em Portugal, Licínio Lima explica que o entendimento de que a escola deve se concentrar apenas na transmissão de conhecimentos e competências, de forma a preparar para a vida, se perpetuou há muito tempo. Quem defende essa atuação restrita presume que a formação de cidadãos democráticos seria um fenômeno de doutrinação política que não cabe à escola.
"É uma posição inaceitável em termos democráticos, desde logo por confundir educação para e pela democracia com doutrinação política", argumenta. Para ele, o principal limite assumido por uma educação crítica é justamente a recusa de qualquer processo de doutrinação. "A democracia, muito mais do que um processo ou um método, é uma forma de vida que se prepara também por meio da contribuição da escola."
O processo educacional não se resume aos métodos pedagógicos. Educação é o resultado da interação de diversas áreas do conhecimento. A neurociência tem um papel fundamental, por exemplo, ao mostrar a quem ensina como o aluno aprende, quais são os processos cerebrais envolvidos na obtenção de conhecimento.
A psicologia também é profundamente relacionada com a educação. O psicanalista Alfredo Jerusalinsky corrobora a opinião dos educadores a respeito da guinada tecnicista que o ensino tem dado. Para ele, a escolaridade tem se tornado competitiva ao ponto de países eliminarem matérias sem relação com técnica e tecnologia, como Filosofia, Literatura e Artes. "A Matemática, a lógica pura, a Física, a Química, não fazem laços sociais. Permitem o domínio da natureza, mas não permitem estabelecer relações com o outro", pondera. Para ele, a tecnologia pode prestar um serviço quando aproxima os seres humanos, como no caso da comunicação, mas "essa aproximação não pode estar cingida meramente à informação", explica o estudioso, que é doutor em Desenvolvimento Humano e Educação.
Além de um possível despreparo por parte dos docentes e do ceticismo por parte da sociedade, o sistema educacional não trabalha questões de democracia e cidadania. Os colégios, ainda presos a um método de ensino que prioriza a acumulação de conhecimentos em larga escala, e que é indiferente às diferenças, não conseguem viabilizar projetos elaborados pelos poucos professores que decidem se aventurar por esse caminho.
O sociólogo Marcos Rolim teve experiência como docente no Centro Universitário Metodista (IPA) e como professor visitante da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Ele conta que, mesmo em ambiente acadêmico, percebia que os alunos estavam programados para um tipo de aula que consistia exclusivamente na memorização para a prova. "Os alunos chegam à universidade sem essa prática de autonomia do pensamento. Nossa matriz educacional continua estimulando a memória e a reprodução de conteúdo, quando isso é o menos importante", considera.

Formação para a cidadania exige debates amplos em sala de aula

FREDY VIEIRA/JC

O receio de que uma doutrinação política tome conta do espaço escolar deu origem, no Brasil, a um conjunto de leis que incorporam o movimento Escola Sem Partido, encabeçado principalmente por representantes de partidos conservadores. Os apoiadores defendem a necessidade dessas leis como uma forma de evitar a ideologização do ensino em sala de aula. Críticos, no entanto, afirmam que a iniciativa é uma tentativa de "amordaçar" os professores e de impedir o debate político em âmbito escolar.
Para o doutor em Educação Marcelo Andrade de Souza, não há dúvidas de que o movimento serve de amparo a uma ideologia. "Não é uma escola sem partido, é uma escola com outro partido, o do conservadorismo e da postura retrógrada", enfatiza.
A discussão sobre a proposta da Escola Sem Partido encontra barreiras constitucionais, uma vez que a Constituição Federal diz que é função da escola formar um cidadão pleno para participar na cidadania. E, sem embate de opiniões, não existe participação. Do ponto de vista moral e ético, o indivíduo tem uma escala de valores e sempre escalona, tomando decisões com base nessa hierarquia. Por isso, uma neutralidade política seria impossível de ser alcançada. Considerando que o docente é, também, um indivíduo com uma trajetória própria, é difícil esperar neutralidade e isenção.
No prefácio do livro "Pedagogia do oprimido" (Editora Paz e Terra, 2002), de Paulo Freire, o professor gaúcho Ernani Maria Fiori (1914-1985) diz que o diálogo fomenta a essencial intersubjetividade humana, uma vez que é relacional e que, nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Seu oposto, o monólogo, seria, então, o fechamento da consciência. Proibir o debate e o diálogo em sala de aula provoca, portanto, esse isolamento, dando lugar a razões absolutas. Cabe ao professor oferecer condições intelectivas de reflexão progressivamente autônomas, possibilitando que o aluno ganhe independência e maturidade intelectual para pensar por conta própria.
Apesar de reconhecer a participação da família na criação de um indivíduo comprometido com a cidadania, a professora de Filosofia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Dulce Critelli explica que as responsabilidades são diferentes. "Enquanto a família implica um pequeno número de pessoas, a escola abriga um número imenso de crianças vindas de famílias com credos, situações econômicas, informações, valores diversos e diferentes", observa. Mais do que a família, a escola precisa se vigiar nas posturas e nos ensinamentos, uma vez que tem de ser o lugar da pluralidade e da diversidade, e não de posturas dogmáticas e ideológicas. Nesse contexto, o professor deve expressar suas opiniões, mas precisa tomar cuidado para que não sejam apresentadas como verdades incontestáveis, e sim como mais uma opinião entre outras. A escola, portanto, não pode agir de forma extremista, separatista ou acusatória, abrindo-se à diversidade, de modo a acolher, refletir e estabelecer acordos a partir das diferenças.
Educação para o convívio
A educação é, em suma, responsável pela aquisição de tudo aquilo que o ser humano não tem ao nascer e de tudo que precisa para ser adulto. Isso quem diz é o filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que acreditava que o indivíduo nasce fraco, desprovido de tudo e necessitado de assistência. Cabe ao processo educacional, portanto, rechear de conhecimento e de valores aquele cidadão e ajudá-lo a construir bases para a vida adulta.
Em seu livro, Souza define o conceito de ética mínima como "o limite por baixo do qual só estaremos se ferirmos o ideal de dignidade humana, do ser humano como absolutamente valioso e como fim incondicionado". O ideal, para o professor, seria educar o cidadão a fim de que ocorra uma valorização das diferenças. A ética mínima seria, portanto, o ponto de partida, abaixo do qual o indivíduo não quer estar. "É o mínimo que devemos exigir para a convivência social. Quando tenho um caso de racismo, não estou só desrespeitando o outro como diferente, estou ferindo um mínimo ético", explica. Desta forma, a tolerância, como objetivo final, é pouco: não deve ser um ponto de chegada, nem um horizonte. 
O professor da Universidade de Minho, em Portugal, Licínio Lima também vê a tolerância como um fim insuficiente. Com o acirramento de ideias e ideologias cada vez mais forte, a tendência é a segregação, a separação entre aqueles que se consideram diferentes. No âmbito escolar, isso se reflete na retirada de alunos, pelas classes mais altas, das escolas públicas, fazendo com que estas sejam renegadas ao isolamento e ao empobrecimento. "É mais difícil educar para a diversidade em uma organização que é muito mais homogênea que a sociedade, por efeito de seleção social à entrada. O problema central não é o da promoção de tolerância e do pluralismo, mas, especialmente, o da falta de convivência entre diferentes que não se encontram, sequer, na mesma instituição educativa", pondera o doutor em Educação. O ideal de uma escola pública democrática é, portanto, uma escola interclassista, que inclua todos e sirva a todos com elevada qualidade.
A prática, ou seja, a exposição de alunos a experiências democráticas, é a única maneira de ensinar e de aprender democracia. Por meio de um sistema de valores e regras, construído com os alunos, e não apenas para eles, a convivência escolar se torna uma contribuição importante à autonomia democrática e à compreensão do que é uma cidadania ativa e responsável.

Política nacional pode estabelecer padrão de ensino

CADERNO DIA DA INDÚSTRIA 2009

LINHA DE MONTAGEM E PRODUTOS DA EMPRESA MERCUR DE SANTA CRUZ DO SUL.
CADERNO DIA DA INDÚSTRIA 2009 LINHA DE MONTAGEM E PRODUTOS DA EMPRESA 
MERCUR DE SANTA CRUZ DO SUL.

/FREDY VIEIRA/JC

Para solucionar esse vácuo, os especialistas propõem a instauração de uma política de âmbito nacional, que defina um projeto a ser aplicado no Brasil. No entanto, as diferenças e especificidades regionais devem ser contempladas. Afinal, como dizia Paulo Freire (1921-1997), se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco a sociedade muda.
Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), diretrizes curriculares com parâmetros nacionais vinham se aprofundando no tema da diversidade. Existia, dentro do Ministério da Educação, a Secretaria Especial de Alfabetização e Diversidade, ligada à diversidade e à inclusão, descontinuada recentemente. Eram produzidas orientações nacionais, como educação de quilombolas e indígenas, com participação de pesquisadores renomados responsáveis pela produção de material didático. Houve casos como a aprovação da Lei nº 10.639/2003, que tornava obrigatório o ensino de História e Literatura Africana.
Para o professor Marcelo Andrade de Souza, é real a necessidade da criação de um projeto nacional que respeite a liberdade das escolas em adaptarem essas temáticas. "Avançamos na temática negra, pois havia maior consenso de que era preciso valorizar as reivindicações e a história negra. A temática de gênero e de sexualidade avançou menos, e o projeto Escola Sem Homofobia não foi adiante", lamenta.
Esse projeto, criado em 2004 pelo governo federal, tinha intenção de combater a violência e o preconceito contra a população LGBT. Parte da proposta continha uma atualização na formação de educadores, que estariam aptos a tratar questões relacionadas ao gênero e à sexualidade em sala de aula. A pressão de setores conservadores da sociedade causou a retirada de circulação, em 2011, do material da campanha, que ficou conhecido pejorativamente como "kit gay". O governo tratou de suspender a iniciativa, desperdiçando o cerca de R$ 1,9 milhão investido na elaboração dos materiais. "Perdemos uma batalha, mas precisamos continuar a guerra por uma sociedade que valorize as diferenças", acrescenta Souza.
Salvo exceções, o sistema educacional brasileiro não possui projetos ou iniciativas com força suficiente para que o cenário de alienação cidadã possa sofrer alguma alteração no ambiente escolar. "É fundamental que a escola se preocupe com esse tipo de exacerbação dos conflitos. O mais complicado é fazer com que o aluno pense por conta própria", reflete o professor Clóvis de Barros Filho, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Ele acredita que, sem a implementação de uma nova política pedagógica, voltada para a pluralidade e para o respeito das diversidades, a educação se afasta da formação de cidadãos lúcidos, preparados para o debate e para a aceitação de ideias divergentes às suas.
A utopia da sociedade plural
O cenário de radicalismo social está posto e apresentado a todos. Não é preciso ser um pesquisador ou estudioso para percebê-lo e, mais do que isso, notar o quanto ele é perigoso. A história já mostrou até onde um indivíduo e uma sociedade intolerantes podem chegar. Seja por uma iniciativa individual, seja levado pela massa ou motivado por crenças religiosas, o extremismo é o sintoma mais grave de uma sociedade doente.
A cura não é simples. Ela sequer é certa e definitiva. O tratamento é longo, e os remédios são muitos, sendo a educação, possivelmente, o mais eficiente de todos. O paciente não irá sair da UTI e ir para casa em um estalar de dedos. É preciso ter paciência e perseverança. Recaídas podem ocorrer. Mas é preciso seguir. Desistir não pode ser um verbo conjugado nesse processo. Interesses terão de ser enfrentados; poderes, questionados. O caminho para uma sociedade plural, respeitadora e fomentadora das diferenças é longo e tortuoso.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) contou uma história que sintetiza perfeitamente a necessidade de avançar, a despeito de todas as dificuldades. Participando de uma palestra a estudantes na Colômbia junto com o diretor de cinema argentino Fernando Birri, lhes foi perguntado para que servia a utopia. A resposta poética de Birri foi a seguinte: "a utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que não a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se afasta dez passos. Quanto mais eu buscá-la, menos eu a encontrarei, pois ela vai se afastando na medida em que me aproximo. Então para que serve a utopia? Pois ela serve para isso, para nos fazer caminhar".
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Reportagem:Juliano Tatsch e Susy Scarton 
Arte: Thiago Machado. 
Edição: Daniel Sanes, Juliano Tatsch e Paula Sória Quedi 
Edição Para Internet: Paulo Serpa Antunes.
Fonte:
http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/08/cadernos/jornal_da_lei/578423-a-educacao-como-caminho-para-a-tolerancia.html

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

DITADURA DA NOVIDADE

 Juremir Machado da Silva*
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PINTURA CUBISTA: Picasso / Factory in horta de Ebbo
 
Quem não se sente, vez ou outra, dilacerado sem que nada esteja acontecendo ou talvez justamente por isso? Quem não se sente rasgado por dentro, corroído por uma insatisfação sem motivo, disposto a largar tudo, mulher e filhos, emprego e projetos, conta bancária e Netflix, para viver novas e improváveis emoções? Quem não se vê no espelho deformado como um quadro cubista, a imagem estilhaçada, o corpo esquartejado, a alma partida? Quem não se vê e não se culpa por essas ideias malsãs, esses delírios imorais, essas viagens imóveis?

Num minuto, eterno como a desesperança, a pessoa quer enterrar o cotidiano, cortar laços essenciais, mudar o que lutou para construir, desatar o nó amarrado ao longo de uma vida de sonhos e de combates. No outro, contraditório como todo ser humano que não se blindou contra as batidas do coração e o fluxo sanguíneo, agarra-se ao seu pequeno grande mundo como quem se apega ao último fiapo de luz na escuridão do futuro. Há os que rompem e se arrependem, há os que jamais rompem e se arrependem, há os que nunca se arrependem, esses talvez sejam os mais perigosos, esse talvez seja o maior perigo dentro de nós. Vivemos em sociedades que estimulam o desejo de ruptura e cultuam a novidade.

Estamos preparados para isso? Somos diariamente chicoteados com as emoções alheias mais hiperdimensionadas. Ou delegamos às celebridades a vivência do que nos escapará como um devaneio ou nos jogamos no abismo das expectativas em tom de pesadelo. Ou sabiamente aprendemos a não viver sem desejos, mas também a não nos deixar dominar por desejos que escravizam com preço em lugar de valores. A doença da nossa época é a depressão. Como não se deprimir num mundo que exige de nós agilidade, desempenho, mudança permanente e sucesso total? Como não titubear diante de uma máquina de comparações impiedosas? Entramos de fato na era da obsolescência programada e descobrimos que o ser humano é o mais perecível dos “objetos”.

Quem não acorda no meio da noite acossado por perguntas que antes pareciam meramente retóricas e assustam como espectros impressionantemente realistas e palpáveis: por quanto tempo ainda vou servir? Já sou ultrapassado? Tenho condições de me atualizar? Quando serei descartado? Quando os jovens arautos da antiga modernidade, essa ideologia do novo, me declararão superado e me enviarão para o depósito dos seres inservíveis como um 386 ou um Classic da Apple?

Quem não rumina saídas, retiradas estratégicas, projetos de autonomia, um sítio, uma pousada, uma casa na praia, um café e até uma livraria?

Quem não se sente como um dependente vivendo um dia depois do outro na esperança de nunca recair? Quem não se sente como um belo vaso rachado, uma porcelana cuja pintura vai perdendo a intensidade, uma aquarela cuja paisagem vai se tornando uma simples evocação? Eu me sinto assim certos dias sem sol ou sem manchetes de derrubar governo. Tenho arroubos de metamorfose, surtos de mutação, anseios de transformação. Vou do inseto de Kafka a borboletas azuis. Num átimo.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10177/ditadura-da-novidade/
Imagem da Internet

Marcelo Knobel: 'Situação financeira enfrentada pela Unicamp é dramática', afirma reitor

Campinas, SP, Brasil, 23-08-2017: Marcelo Knobel, reitor da UNICAMP. (foto Gabriel Cabral/Folhapress)
 
Marcelo Knobel, reitor da Unicamp, quer reorganizar finanças da universidade  

Reitor aos 49 anos daquela que foi escolhida recentemente como a melhor universidade da América Latina, Marcelo Knobel não usa meias palavras. Em sua opinião, a crise financeira 
vivida pela Unicamp é "dramática".
O teto salarial de R$ 21 mil das universidades
estaduais paulistas, afirma, é um "risco seríssimo" 
à capacidade das instituições de atrair 
os melhores profissionais. 
E, por fim, o ensino superior no Brasil é muito 
"engessado" e precisa de currículos flexíveis.




Ele diz ainda que mudanças no vestibular são bem-vindas e defende as cotas para negros e estudantes de escola pública. Em maio deste ano, a universidade aprovou um projeto de cotas mais ambicioso do que o previsto nas universidades federais, e que será decidido em novembro. 

Knobel prevê que a Unicamp tenha metade dos alunos de escola pública. O objetivo é que essa proporção seja atingida por curso e turno. Neste ano, pela primeira vez isso ocorreu entre os ingressantes. Prevê ainda a meta de 37,5% de alunos autodeclarados pretos, pardos e indígenas em relação ao total de alunos (e não só à metade reservada à escola pública, como ocorre nas federais). 

Físico, Knobel inicia a gestão em um momento difícil para as três universidades estaduais paulistas. Com receita vinculada à arrecadação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), as três viram os recursos minguarem com a crise econômica no país. Os gastos com funcionários, porém, continuaram a subir. A Unicamp deve terminar o ano com deficit de mais de R$ 200 milhões. 

*
Folha - Como o sr. quer que seja lembrada sua administração na Unicamp?
Marcelo Knobel - Há muitas coisas que quero fazer. Posso citar algumas. Quero ser lembrado pela recuperação financeira da Unicamp em um momento muito crítico para a universidade pública. Faremos um esforço pelo equilíbrio financeiro. Pretendo abrir um debate para melhorar o currículo e, seguindo a tradição da universidade, incentivar a inovação.

Qual é a situação financeira da universidade hoje?
A situação é dramática. Temos um deficit de mais de R$ 200 milhões e não podemos nem queremos fazer demissões. Vamos tomar medidas para melhorar a gestão e reorganizar algumas áreas.

O que pode ser reorganizado?
A Unicamp, como as outras universidades estaduais paulistas, cresceu muito, rapidamente, respondendo a algumas demandas de expansão. Alguns processos, porém, não se modernizaram na mesma velocidade. Há alguns setores mais inchados do que outros. Hoje temos 650 contratos ativos. É preciso pensar em mecanismos de acompanhamento deles, ver quais podem ser renegociados ou não etc.

É possível reduzir a dependência do ICMS?
As três universidades públicas paulistas fizeram um esforço importante de ampliação da oferta de vagas no início dos anos 2000, com a promessa de um adicional de recursos que nunca veio. Uma tema urgente a resolver é o do hospital. A Unicamp tem um complexo hospitalar, atendemos uma população da ordem de 5 milhões de pessoas de toda as cidades da região.

Mas, como os recursos do SUS (Sistema Único de Saúde) estão congelados, estamos usando recursos do orçamento da universidade para bancar, o que compromete gravemente nossa situação [a previsão é que sejam gastos

R$ 308 milhões do orçamento com o Hospital das Clínicas neste ano]. Estamos negociando com o governo do Estado. É preciso que se encontre uma equação sustentável.

Nesse cenário, a Unicamp tem conseguido contratar e segurar bons professores?
Isso é algo que nos preocupa muito, tanto em relação aos professores como em relação aos funcionários. É difícil falar sobre isso em um país com tantas desigualdades, mas esse tema precisa ser enfrentado. Quem chega a ser professor já está no topo da pirâmide social. E, hoje, o teto salarial nas universidades é o subsídio do governador, que está em R$ 21 mil.

Líquido, esse teto fica em cerca de R$ 14 mil, abaixo não só do que acontece no setor privado, mas também da perspectiva de carreira das federais [que têm como teto o salário do ministro do STF, de R$ 33 mil] e muito abaixo do que acontece no mundo. Por que um jovem talento escolherá qualquer uma das três universidades paulistas?

Esse problema de atratividade já é perceptível hoje?
Já temos alguns casos de concursos sem nenhum candidato, de gente que se demitiu –especialmente em algumas áreas, como medicina. Falar que na universidade são pagos supersalários é falácia. O risco que temos com a questão do teto é seríssimo. A universidade pública como lugar de excelência está em risco.

O teto é vinculado aos ganhos do governador. Ele tem que aumentar o salário dele então?
É uma saída. Outra é uma proposta de emenda constitucional que está em tramitação na Assembleia Legislativa e prevê um aumento gradual do teto [trata-se da PEC 5/2016, que coloca como limite o teto dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 30 mil].

Esse tipo de discussão com a sociedade não é fácil em um momento como o atual.
Precisamos mostrar com clareza o que teria acontecido se uma universidade como a Unicamp não tivesse sido criada. Para citar um exemplo, entre muitos: há 14 anos, criamos nossa agência de inovação e monitoramos as iniciativas criadas a partir dela.

Desde então, já são 500 [empresas] "filhas" da Unicamp, que geram R$ 3 bilhões por ano. Isso sem falar na formação de recursos humanos que vão atuar em todas as áreas. Se pensarmos no hospital, a não existência da Unicamp significaria um colapso no sistema de saúde.

O sr. citou que hoje há ameaças à universidade pública. Além da questão financeira, quais são elas?
Cada vez mais vemos na opinião pública contestações da autonomia universitária, que tem de existir sem que a universidade se feche à sociedade. Também temos ouvido vozes favoráveis ao pagamento de mensalidade [nas instituições públicas].

Por que o sr. é contra a cobrança de mensalidade?
Penso que é papel do Estado manter universidades por meio do pagamento de impostos. É falsa a ideia de que não se paga nada. Mas a ideia de retorno tem que fugir da lógica meramente financeira. Cursos como filosofia e física tendem a não existir numa lógica meramente mercantilista.

A Unicamp decidiu implantar um sistema ambicioso de cotas. Por quê?
A universidade é financiada pela sociedade, portanto ela precisa estar representada aqui. A diversidade é um princípio fundamental. Criamos alguns mecanismos, como a bonificação para alunos de escolas públicas, mas eles não eram suficientes para contemplar a população de pretos e pardos. Não vai ser a única mudança no vestibular.

Além das cotas, devemos abrir parte das vagas pelo Sisu, para gente do país inteiro poder se inscrever, e estudamos adotar outras medidas, como dar uma pontuação extra para medalhistas de Olimpíadas de matemática, de física etc. Há uma comissão estudando isso. Queremos mais estrangeiros, mais pretos e pardos, mais indígenas, mais pessoas com deficiência.

É fácil entender por que a diversidade é importante para a sociedade. E para a universidade, por que ela é importante?
A universidade é o lugar das ideias, das discussões. Quanto mais ideias, mais gente com diferentes vivências e opiniões, melhor. Diversidade é fundamental para a ciência. O debate plural, com respeito, é muito bem-vindo.

O sr. falou em mudar o currículo. O que gostaria de fazer?
Gostaria que fôssemos no sentido de ter uma formação mais ampla, com menos horas em sala de aula e mais em projetos e trabalho em equipe. Poderíamos pensar num núcleo básico comum de disciplinas, que não precisa estar necessariamente no início do curso, poderia ser transversal, ao longo da formação.

A ideia é pensar um currículo mais flexível, em que o aluno possa mudar com mais facilidade de um curso para outro, ou mesmo de uma universidade para outra. O ensino superior brasileiro é muito rígido. Essa é uma discussão que eu gostaria muito de abrir.

Marcelo Knobel, 49

Nascimento
Buenos Aires, em 1968
Formação
Bacharel em Física, é doutor em ciências pela Unicamp.
Possui, também, pós-doutorado pelo Istituto Elettrotecnico Nazionale Galileo Ferraris, na Itália, e pelo Instituto de Magnetismo Aplicado, na Espanha
Carreira
- Reitor da Unicamp
- Professor titular do Departamento de Física
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Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/08/1913597-situacao-financeira-enfrentada-pela-unicamp-e-dramatica-afirma-reitor.shtml
Reportagem por  ANGELA PINHO - ENVIADA ESPECIAL A CAMPINAS
Foto: Gabriel Cabral/Folhapress

O mercado da ética crescerá, e juízes e advogados farão rios de dinheiro

Luiz Felipe Pondé*
Ricardo Cammarota - Coluna Pondé - Ilustração para edição de segunda-feira, dia 28 de agosto de 2017

Ricardo Cammarota/Folhapress

Muito se discute sobre ética nos últimos tempos. Da escola à política, do mundo corporativo à arte. Não pretendo aqui resolver esse debate, mas há uma questão nele que me parece essencial apontar: o futuro da ética é a judicialização da vida. A ética "real", pouco a pouco, se torna um "mercado da ética", que enriquece advogados, juízes, procuradores, promotores e "assessores". 

Com a modernização, o modo de contenção do comportamento via "pressão local do grupo", cedeu aos vínculos distantes e instrumentais. A vida produtiva moderna, associada à arrancada "progressista" em direção a um mundo redefinido por propostas sociais, políticas e, muitas vezes, psicológicas, arruinaram o valor da tradição moral como contenção de comportamentos. 

A própria expressão, tão comum na boca dos jovens, "a moral imposta pela sociedade", sinaliza para a ruína dessa moral, uma vez que é sentida como "imposta". Ou a moral é internalizada ou ela é um nada. Uma "segunda natureza", como diria Aristóteles (384-322 a.C.). 

A ideia aristotélica de uma ética prática das virtudes, elegante, mas inviável numa sociedade de vínculos impessoais, distantes e instrumentais, sofre com a indiferença concreta que temos pela opinião dos outros -afora parentes muito importantes pra nós ou pessoas que podem nos causar danos muito imediatos. Essa é, exatamente, a "liberdade" sobre a qual tanto se fala que ganhamos com a modernidade: a ilusão de que podemos mandar o mundo pra aquele lugar... 

A posição kantiana de imperativos categóricos morais do tipo "aja de modo tal que sua ação possa ser erguida em norma universal de comportamento", na prática, pavimenta a estrada para a judicialização. Basta ver os manuais de "compliance" que florescem pelo mundo corporativo -voltaremos a isso logo. 

O utilitarismo e seu império do bem-estar, seguramente, funcionam como "ethos" de um mundo pautado pela busca da felicidade material em todos os níveis, inclusive no da matéria do corpo e sua saúde. O utilitarismo pauta políticas públicas e corporativas, mas não me parece ser ele a base da judicialização. Esta base vem dos imperativos de Immanuel Kant (1724-1804). Vejamos. 

Kant percebeu a dissolução dos modos tradicionais de contenção do comportamento em curso em sua época, em finais do século 18. 

Tentou encontrar um modo "racional" e, portanto, universal, para a ética. Mas, este modo "deontológico" (dever ser) se revelou não como uma maioridade racional introjetada da norma, como ele pensava, mas sim como o crescimento do aparelho jurídico de constrangimento do comportamento. Dito de forma direta: desde manuais de "compliance" contra passivos éticos no mundo corporativo até o aumento da indústria dos processos. Enfim, a judicialização do cotidiano. 

Essa judicialização significa que a única forma eficaz de constranger os comportamentos é via a força da lei. Esta é, sempre, encarceramento ou pagamentos de somas financeiras como consequência de processos abertos. Juízes arrancam seu dinheiro num clique. A indústria de sentenças cresce. Como mandamos o mundo pra aquele lugar, resta o mercado da ética. 

Este mercado crescerá cada vez mais. Advogados farão rios de dinheiro. A máquina judiciária estatal crescerá junto com isso. Concursos para juízes e para o Ministério Público (cuidando de nós, cidadãos "hipossuficientes") garantirá inúmeras vidas financeiramente. 

À medida que a sociedade se torna cada vez mais impessoal (apesar da baboseira de "capitalismo consciente" que falam por aí), a única forma restante será o mercado ético associado à ampliação das vagas no poder Judiciário. 

Um dos efeitos nefastos desse mercado é a paranoia que segue toda sociedade judicializada. O medo do risco de ser processado faz o trabalho sujo da prevenção contra o passivo ético que tende a crescer. As empresas serão obrigadas a redefinir suas culturas internas, as escolas a inviabilizar qualquer forma de "sofrimento" dos alunos, enfim, o medo, alimento ancestral da norma, reinará livre sobre os cidadãos "livres" da modernidade tardia. 
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*Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. 
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/08/1913572-o-mercado-da-etica-crescera-e-juizes-e-advogados-farao-rios-de-dinheiro.shtml

domingo, 27 de agosto de 2017

Leonardo Padura: 'Não existe um mercado de livro em Cuba'.

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Entrevista/Leonardo Padura
 
Um dos escritores cubanos mais conhecidos no mundo, autor de “O homem que amava os cachorros” e dos quatro romances de “Estações Havana”, publicado no Brasil pela Boitempo, “Passado perfeito”, “Ventos de quaresma”, “Máscaras” e “Paisagem de outono”, Leonardo Padura, 61 anos, esteve em Porto Alegre como palestrante 
do ciclo Fronteiras do Pensamento. 
Descontraído, deu entrevista ao Caderno de Sábado.
(Juremir Machado da Silva)

Caderno de Sábado – O senhor falou recentemente sobre o poder da literatura. Existem ainda livros perigosos e que podem mudar o mundo?
Leonardo Padura – Não sei se conseguem mudar o mundo. Os grandes livros que fizeram isso não foram os de ficção. Foram a Bíblia, o Corão ou O Capital. Mas existem livros que mudam bastante a mente das pessoas. Obras que afetam os conhecimentos históricos ou dos sentimentos. Alguns livros podem ser perigosos para bem ou mal. Alguns são muito superficiais, mas têm capacidade de penetração como os best-sellers de Dan Brown ou “50 tons de cinza”. Outros fazem pensar. Quando li pela primeira vez “1984”, de George Orwell, fiquei profundamente comovido. Há uns oito anos, quando li “Vida e destino”, de Vassili Grossman, também me emocionei. Há, entendo eu, livros que podem ajudar a mudar as pessoas, transformar os seus leitores.

CS – Vivemos uma época de transição tecnológica. Qual será o futuro do texto escrito e dessas histórias capazes de mudar as pessoas?
Padura – Nas feiras de livros do mundo inteiro os escritores que mais fazem sucesso são os youtubers. É gente jovem que escreve para internet. Não sei esses jovens leitores se transformarão em leitores adultos. Quando eu era criança se começava a ler por clássicos que transmitiam um sentido ético da vida: “O conde de Monte Cristo”, “O Corsário negro”, as histórias de Jules Verne, mais tarde a “Odisseia”. Tudo isso contribuía para a nossa formação. São muitas as transformações em curso. Pessoalmente passei a ter problema para conservar uma imensa biblioteca com livros que talvez não volte a ler. Há cinco ou seis anos as editoras de impressos tiveram o pior momento. Já houve uma recuperação. Pelos próximos 20 anos haverá convivência entre o livro tradicional e o digital. Por fim, o digital vencerá por razões econômicas, culturais, logísticas. A questão é: o que vai acontecer com o mercado do livro? Se ele deixar de funcionar como agora será que valerá à pena investir cinco anos num romance? Só escreverão os professores universitários com verbas para pesquisas sobre coisas do tipo as qualidades térmicas do vidro fundido com raios ultravioletas? Quem escreverá com profundidade sobre o que Flaubert chamava de “alma das coisas”? Não estamos vivendo uma mudança de século, mas uma mudança de era. O desaparecimento do socialismo na Europa prendeu a atenção das pessoas e não se percebeu realmente a dimensão revolucionária da entrada na era digital. Muitas atividades humanas já mudaram ou desapareceram. Será lamentável se a arte de contar histórias, que nos acompanha há 30 séculos, desaparecer. Ela não pode se resumir a mais um game. Na época de Homero os homens se reuniam para ouvir um poeta cego contar a história da tomada de Troia. Somos o resultado dessa cultura e estamos dando um salto abismal.

CS – O senhor disse que numa investigação de romance policial não basta resolver o problema. É preciso também esclarecer uma situação. O que busca esclarecer com seus livros que mesclam ficção e história?
Padura – Tudo o que consiga, situações de fundo histórico, social, existencial. No meu novo livro, “A transparência do mal”, que acabei de enviar para a editora na Espanha, a preocupação de meu personagem Mario Conde, que é a minha, é de caráter existencial: como viver depois dos sessenta anos de idade? Como enfrentar o envelhecimento? Como a fé é capaz de fazer milagres? Como está a vida social e econômica em Cuba? O romance policial permite todo tipo de reflexão.

CS – Mario Conde é o seu alterego?
Padura – Conde faz o papel de meus olhos. Por meio dele, vejo o mundo que me cerca. Por estar muito perto de mim, sem ser meu alterego, ele me possibilita entender certas coisas mesmo sem as explicar.

CS – Um escritor que mescla ficção e história está na pós-verdade?
Padura – Não. O escritor faz um pacto com o leitor: conta-lhe uma mentira como se fosse verdade. O leitor lê como verdade sabendo que é mentira. Mas essa mentira pode ser também parte da verdade. É um jogo limpo. A pós-verdade é um jogo sujo. Dá-se por certo o que não é.

CS – O que busca esclarecer sobre a situação atual de Cuba?
Padura – Cuba não consegue encontrar um caminho econômico para se organizar. O Estado continua a ser o grande controlador da economia. Isso tem sido improdutivo e ineficiente. Um pequeno setor privado começa a mostrar produtividade e eficiência. O Estado trata de limitar e controlar suas ações. Por outro lado, as relações com os Estados Unidos voltaram, do ponto de vista retórico, com Donald Trump, ao estágio anterior a Obama. Nada mudou na economia. Não se recuou nem se avançou em relação ao fim do embargo econômico, que seria importante. O trabalhador privado em Cuba ganha cinco vezes mais que o público. Criou-se uma separação, uma distinção enorme no tecido social. Tudo isso num momento em que se supõe que Raúl Castro deixará o poder. Já anunciou que em 2018 não será mais presidente do país. Resta saber se vai continuar como secretário do Partido Comunista, que é quem manda.

CS – Como ainda é ser escritor em Cuba?
Padura – Ser escritor em Cuba é um ato de fé. Um escritor em Cuba precisa ter editoras fora do país que o publiquem. Ou precisa trabalhar em outras coisas para ganhar o seu sustento. Os direitos autorais pagos em Cuba não são suficientes para alguém viver. Cada vez se publica menos. Os escritores cubanos conhecidos são muito poucos. Não existe um mercado do livro em Cuba. Ainda será preciso criá-lo.

CS – Como está a questão da liberdade?
Padura –  A questão da liberdade ainda não está resolvida. Existe um espaço maior para a opinião. Mas não é total. Privilegia-se quem está mais perto do poder. Opiniões divergentes são rechaçadas, condenadas, castigadas. A imprensa pertence ao Estado. Há mais liberdade nos blogs. Um pouquinho de diversificação. Temos de ampliar esses espaços.

CS – A literatura brasileira chega em Cuba?
Padura — Muito pouco. Casa de las Americas se encarregava disso. Agora só restam os prêmios, que nem sempre coroam obras de primeira qualidade. Rubem Fonseca é um dos últimos brasileiros mais conhecidos.

CS – O senhor vive há 61 anos na mesma casa. Nunca pensou em sair?
Padura – Não. Em algum momento dos anos mais difíceis todo cubano pensou em partir. Eu só queria escrever. Precisava de tempo. Se pudesse ter comida melhor, um carro, ótimo. Se tivesse saído de Cuba, teria de trabalhar em outra coisa para viver. Fiquei para escrever.
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Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10171/caderno-de-sabado-entrevista-leonardo-padura/
Jornal Impresso: Caderno  de Sábado , 26 de agosto de 2017, pg. 1

As mães medeias


Analdino Rodrigues Paulino*

Alienação parental - Pintura do francês Charles-André van Loo mostra Medeia, Jasão
 e as crianças ao chão (Bridgeman/Fotoarena)

Apesar da Lei da Guarda Compartilhada, a Justiça costuma dar às mulheres a responsabilidade sobre os filhos — e muitas usam isso para afastá-los dos pais

Na tragédia grega Medeia, de Eurípides, escrita em 431 a.C., uma mulher carregada a um só tempo de ódio e de amor decidiu vingar-se do marido, Jasão, que a abandonara por outra. Para afastar os filhos definitivamente do pai, ela matou as duas crianças do casal.

Medeia foi o primeiro registro do que hoje se conhece como alienação parental. O adjetivo refere-se à palavra parente, pois geralmente é um familiar que dificulta o acesso de um dos genitores — o pai ou a mãe — aos filhos. Pela experiência que temos dentro da Associação de Pais e Mães Separados (Apase), contudo, são os homens, assim como Jasão, os que mais se queixam da alienação parental. Muitos foram separados de seus filhos pela ex-mulher e precisam mendigar e lutar incansavelmente para conseguir uma razoável convivência com suas crianças e seus adolescentes. Eles são vítimas das “Medeias” brasileiras.

O fato de os pais separados sofrerem mais com essa privação não é uma decorrência de que as mães sejam piores do que eles. Essa disparidade ocorre por uma questão estatística. Na maior parte das separações, são elas que ficam com a guarda unilateral dos filhos. É algo que já não deveria acontecer. Desde 2014, a lei estabelece que, quando não há acordo entre a mãe e o pai, deve-se optar pela guarda compartilhada. Com esse expediente, ambos os genitores devem dividir entre si as responsabilidades, o tempo e a atenção com as crianças.

A despeito da legislação, nosso Judiciário é conservador e tem dificuldade em aplicá-la. Embora homens e mulheres sejam iguais perante a lei, isso geralmente não é levado em conta após a separação. Em muitos casos, os juízes usam apenas o livre-arbítrio para tomar suas decisões. Em 2015, um ano depois de a lei ser aprovada, o IBGE concluiu que 86% das guardas eram unilaterais e dadas às mães. As compartilhadas representavam apenas 13%. O que restava disso tudo — ou seja, apenas 1% — eram os casos em que a guarda ficava com o pai, com os avós, com os tios ou com outras pessoas. Os pais, portanto, raramente ganhavam a guarda unilateral. Em todo o território nacional, Brasília era a cidade com a maior proporção de guarda compartilhada: 25%. São Paulo, onde o Judiciário é mais conservador, tinha um dos menores índices: 9,5%.

Favorecidas por nossos juízes, as mulheres, então, têm mais chance de usar o poder que recebem de uma forma despótica. Além de tentarem barrar o acesso do ex-­marido aos filhos e apagar sua figura, elas também podem querer dominar a relação com as crianças ou com os adolescentes. Não é raro que um pacto de lealdade seja estabelecido entre a mãe e os filhos. Mesmo que aproveite os momentos que tem com o pai, a criança pode querer esconder essa satisfação da mãe. Pode até mesmo dizer a ela que foram negativos os passeios e os dias passados com ele. Com o tempo, também pode acontecer de os filhos começarem a contribuir com a mãe nos atos de alienação parental, o que costuma destruir os vínculos com o pai de tal maneira que eles dificilmente poderão ser recompostos no futuro. À medida que a alienação parental evolui, cresce também a violência contra os pequenos. No limite, essa realidade pode assumir sua forma mais perversa, quando a mãe faz uma falsa acusação de abuso sexual contra o pai.

A acusação de abuso sexual é, sem dúvida, a mais grave que alguém pode receber. Seja qual for o caso, é imperativo que ele seja investigado e que a justiça seja feita. Na nossa avaliação, porém, um número desproporcional dessas denúncias é falso, já que o objetivo é apenas isolar o pai. Segundo um levantamento feito em 2012 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, as falsas denúncias de abuso sexual chegavam a 80% dos registros nas varas de família da capital do estado. Mesmo nos casos em que a acusação contra o pai é falsa, os prejuízos são enormes. Essas investigações tomam tempo. Quando o pai é finalmente inocentado, sua relação com o filho acaba comprometida pela perda dos vínculos, sobretudo o afeto e a confiança. As feridas ficam para sempre.

Entre os problemas perceptíveis em crianças e adolescentes que passam pela alienação parental estão a apatia, a introversão, a diminuição do interesse na escola e a dificuldade de relacionamento com amigos e colegas. Nos casos mais graves, as crianças podem fugir de casa, fazer sexo precocemente, envolver-se com drogas ou entrar na prostituição. Também há relatos de autoflagelação e tentativas de suicídio. Não bastasse tudo isso, ao chegar à idade adulta, a maioria das pessoas que suportaram a alienação parental na infância ou na adolescência acaba por envolver os próprios filhos em comportamentos similares, promovendo um triste círculo vicioso.

No Brasil, um terço dos casais se separa e novas famílias são formadas. Cerca de 35% de todos os divórcios são litigiosos e danosos aos filhos. São 80 000 mães atirando-se contra 80 000 pais, e vice-versa, por ano. Ainda que uma lei de 2010 tenha sido criada para evitar a alienação parental, a norma não tem conseguido estancar a sangria e promover o bem-estar e o equilíbrio entre muitas crianças e adolescentes. Pais e mães separados precisam entender que não devem envolver os filhos nas rixas de casal. Eles não podem ser usados como moeda de troca em infindáveis lutas judiciais em que só há perdedores. Os filhos continuarão sendo dos dois, que manterão a responsabilidade e o dever de criá-­los a quatro mãos.
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* Analdino Rodrigues Paulino é presidente da ONG Associação de Pais e Mães Separados (Apase)
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2017, edição nº 2545 pg.78 e 79
Fonte:  http://veja.abril.com.br/revista-veja/as-maes-medeias/