segunda-feira, 31 de julho de 2017

Descolados e bacanas adotam vira-latas e pedem hóstia 'gluten free'

Luiz Felipe Pondé*





"Sim, o mundo contemporâneo é ridículo de doer. Com suas modinhas e terminologias chiques."

A tipologia humana contemporânea chama a atenção pelo ridículo. Descolados e bacanas são pessoas que têm hábitos, afetos e disposições de alma mais avançados do que os "colados" e os "canas".

Estes são gente que não consegue acompanhar os progressos sociais e se perdem diante das novas formas de economia, de sociabilidade e de direitos afetivos. Vejamos alguns exemplos dessa tipologia dos descolados e bacanas. Se você não se enquadrar, não chore. Ser um "colado" ou "cana" um dia poderá ascender à condição vintage, semelhante ao vinil ou ao filtro de barro.

A busca de uma alimentação saudável é um traço de descolados e bacanas. Um modo rápido e preciso de identificá-los é usar a palavra "McDonald's" perto deles. Se a pessoa começar a gritar de horror ou demonstrar desprezo, você está diante de um descolado e bacana. Se você não entender o horror e o desprezo dele pelo McDonald's, você é um "colado" e um "cana".

Essa busca pela alimentação segura bateu na porta de Jesus, coitado. A demanda dos católicos descolados e bacanas é que o corpo de Cristo venha sem glúten. Uma hóstia "gluten free". O papa, seguramente uma pessoa desocupada, teve que se preocupar com o corpo de Cristo sem glúten. A commoditização da religião, ou seja, a transformação da religião em produto, um dia chegaria a isso: que Jesus emagreça seus fiéis.

Um segundo tipo de descolado e bacana é aquele pai que fica lambendo o filho pra todo mundo achar que ele é um "novo homem". Esse "novo homem" é, na verdade, um mito pra cobrir a desarticulação crescente das relações entre homem e mulher. Homens cuidam de filhos há décadas, mas agora pai que cuida de filho virou homem descolado e bacana, com direito a licença-paternidade de 40 dias, dada por empresas descoladas e bacanas.

Além de tornar o emprego ainda mais caro (coisa que a lei trabalhista faz, inviabilizando o emprego no país), a sorte dessas empresas é que as pessoas cada vez mais se separam antes de ter filhos. As que não se separam, por sua vez, ou tem um filho só ou um cachorro. Logo, fica barato posar de empresa descolada e bacana. Queria ver se a moçada fosse corajosa como os antigos e tivesse cinco filhos por casal. Com o crescimento da cultura pet, logo empresas descoladas e bacanas darão licença de uma semana quando o cachorro do casal ficar doente. E esse "direito" será uma exigência do capitalismo consciente. Aliás, descolados e bacanas adotam cachorros vira-latas para comprovar seu engajamento contra a desigualdade social animal.

Um terceiro tipo de gente descolada e bacana é o praticante de formas solidárias de economia. Este talvez seja o tipo mais descolado e bacana dos descritos até aqui nessa tipologia de bolso que ofereço a você, a fim de que aprenda a se mover neste mundo contemporâneo tão avançado em que vivemos.
Uma nova "proposta" (expressões como "proposta" e "projeto" são essenciais se você quer ser uma pessoa descolada e bacana) é oferecer sua casa "de graça" para pessoas morarem com você. Calma! Se o leitor for alguém minimamente inteligente, desconfiará dessa proposta. Algumas dessas propostas ainda vêm temperadas com um discurso de "empoderamento" das mulheres que colaborariam umas com as outras. Explico.

Imagine que uma mãe single ofereça um quarto na casa dela para outra mulher em troca de ela cuidar do maravilhoso e criativo filho pequeno dessa mãe single. Entendeu? Sim, trabalho escravo empacotado pra presente.

Gourmetizado dentro de um discurso de "solidariedade feminina" e economia colaborativa. Na prática, você trabalharia em troca de casa e comida. Essa proposta é ainda mais ridícula do que aquela em que você, jovem, recebe a "graça" de trabalhar de graça pra um marca famosa que combate a fome na África em troca de experiência e para enriquecer seu "book". Na China eles são mais solidários do que isso, você ganharia pelo menos um dólar.

Sim, o mundo contemporâneo é ridículo de doer. Com suas modinhas e terminologias chiques. Coitada da esquerda que abraça essas pautas criativas. Saudades do Lênin?
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. 
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/07/1905751-descolados-e-bacanas-adotam-vira-latas-e-pedem-hostia-gluten-free.shtml
Foto de Ricardo Cammarota- /Editoria de Arte/Folhapress

domingo, 30 de julho de 2017

Uma defesa do 'crime' de rabiscar em livros

Gilles Lapouge*
ctv-lqv-livros-online 
 
Tela do pintor surrealista francês André Martins de Barros

De Maquiavel e Montaigne a Jane Austen e Walt Whitman, muitos personagens históricos tinham o hábito de anotar seus livros

Não leio. Rabisco os livros. Eu os danifico. Coloco pontos de exclamação à margem. Sublinho palavras, risco os parágrafos. Acrescento “minha contribuição” à poesia que me deixa inebriado. Faço com que minha voz seja ouvida. Escrevo “bravo”, “exagerado” ou mesmo “magnífico”. Nos silêncios da narrativa engendro aventuras que o escritor não imaginou, mas seus heróis amariam viver. Às vezes critico o autor. Quando empresto um dos meus livros a um amigo, ele fica horrorizado: arruinei o “objeto sagrado”.

Sacrilégio! Desnaturei o poema. Mereço passar meu inferno fechado em uma biblioteca, vigiado por um diabo especializado em literatura que irá me repreender toda vez que aponto meu lápis para macular a beleza imarcescível de uma página. Onde estou com a cabeça? Ousarei acrescentar um grafite na Capela Sistina de Michelangelo? Irei ao Museu Rodin levando comigo um pequeno martelo para extrair alguns fragmentos de mármore com o fim de “melhorar” O Beijo, ou a estátua de Balzac?
Mas hoje me sinto mais confiante. Soube pelo jornal The New York Times que a New Library de Chicago publicou um livro reproduzindo comentários e anotações feitas a lápis em seus livros por leitores como o presidente Lincoln, Alexander Pope, Jane Austen, Walt Whitman ou David Thoreau. 
Um dos mais brilhares escritores políticos, o italiano Maquiavel, compartilhava comigo esse “vício”. Cobria seus livros de comentários marginais, apogiaturas, parênteses ou sinais incompreensíveis. 

Também fiz uma pequena pesquisa e encontrei muitos “rabiscadores” de livros. O francês Montaigne, na Renascença, escreveu em seu próprio livro, Ensaios, inúmeros comentários ou objeções a ponto de no final compor um novo livro. O grande Petrarca escreveu no seu livro Confissões de Santo Agostinho tantas notas e comentários que serviram para um curso de filosofia, O Livre Arbítrio

Meus “rabiscadores” preferidos são os mais tímidos. Aqueles que se contentam em acrescentar uma interjeição à margem, um comentário breve, ou simplesmente sinais de pontuação: pontos de exclamação, ou de interrogação. Eles não querem acrescentar ao texto original um novo texto. Sua ambição é outra: eles tatuam o livro, como algumas pessoas tatuam sua pele. Eles o esfolam, o dramatizam. Eles se apropriam do livro.  

Do mesmo modo que os poetas brasileiros “antropofágicos”, eles comem as letras, as mastigam, as digerem, e é um romance desconhecido que surge no final das suas obscuras fermentações. Outros, mais ingênuos, se satisfazem em “fazer amor” com o livro.

Por mais minúsculas, modestas ou misteriosas que sejam essas impressões furtivas deixadas por um desconhecido em seu livro de cabeceira, essas anotações, esses escólios, esses riscos ou essas interjeições acrescentam uma frase ao discurso original e essa frase é bela: “Para o melhor ou pior, é o comentarista que tem a última palavra”, disse Nabokov. 

Mesmo traços simples, verticais, horizontais ou em diagonal, podem falar. Há uma dezena de anos, minha irmã mais velha que eu amava muito faleceu. E eu me encarreguei de ordenar algumas centenas de livros que ela possuía. Passava rapidamente os olhos neles. Ouvia o silêncio, a morte.  

Abri um cujo título era L’Echelle de Soie, de um autor conhecido nos anos 1960, mas um pouco esquecido nos dias de hoje, Jean- Louis Curtis. À medida que repassava aquelas páginas, percebi que não lia o romance de Curtis, mas os traços feitos por minha irmã nos brancos da página, sobre um adjetivo ou num trecho de uma frase, ou mesmo à margem. Vi assim se produzir diante dos meus olhos, com fragmentos de textos assinalados por minha irmã, do outro lado da morte, outro romance. 

Guiado pelos traços feitos a lápis, nas margens do livro, eu lia: “Cada pessoa é um enigma para todos e para ela própria. E ela morre sem ter revelado nem compreendido seu próprio segredo”. E mais longe, “talvez nada seja preferível a essa tentativa incansável e sempre frustrada pela qual se busca fundir em um núcleo de vida as duas solidões de um casal”. Algumas passagens mais: “Eu me perguntei por qual encadeamento de encantos e malefícios pude amar Anne e sofrer por causa dela”. 

Eu perguntei a mim mesmo então porque minha irmã havia extraído aquelas frases, aqueles pequenos fragmentos de texto. 

Ligando aqueles fragmentos, interjeições, palavras sublinhadas, aqueles pontos de exclamação, reconstitui, me parece, uma história de amor infeliz que eu sabia que minha irmã tinha vivido quando era jovem e sobre a qual jamais contou a ninguém. E eis que nesse momento ela me fazia um relato desses anos dolorosos. 

Senti-me indiscreto. E me dizia que os segredos jamais devem ser arrancados à força, mesmo se a morte permite que eles se façam ouvir. A morte em suma me propiciou abrir as gavetas de um armário proibido.  

Recusei-me a ir mais longe e ver outras confidências. E ao mesmo tempo me perguntei por que foi preciso que a morte chegasse para que paisagens proibidas fossem exibidas? Por que foi necessário se fazer o silêncio da morte para o silêncio fazer um pouco de ruído? 
/ Tradução de Terezinha Martino
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* Escritor e jornalista francês.
Fonte:  http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,uma-defesa-do-crime-de-rabiscar-em-livros,70001911329

Boaventura de Sousa Santos: Em defesa da Venezuela


"Sem intervenção externa, estou seguro de que a Venezuela saberia encontrar uma solução 
não violenta e democrática", defende Boaventura.
/ KPBS Online/ Flickr

O autor analisa o que está em jogo na atual crise política do país e critica a postura dos meios de comunicação

A Venezuela vive um dos momentos mais críticos de sua história. Acompanho de maneira crítica e solidária a Revolução Bolivariana desde o início. As conquistas sociais das últimas décadas são indiscutíveis. Para comprovar, basta consultar o último relatório da ONU de 2016 sobre a evolução do Índice de Desenvolvimento Humano.

Diz o relatório: “O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Venezuela de 2015 foi de 0.767 - o que colocou o país na categoria de alto desenvolvimento humano - posicionando-o no 71º lugar entre 188 países e territórios. Tal classificação é compartilhada com a Turquia. De 1990 a 2015, o IDH da Venezuela aumentou de 0.634 a 0.767, um aumento de 20,9%. Entre 1990 e 2015, a expectativa de vida no nascimento aumentou para 4,6 anos, o período médio de escolaridade aumentou para 4,8 anos e o período de escolaridade média geral aumentou para 3,8 anos.

A renda nacional bruta per capita aumentou cerca de 5,4% entre 1990 e 2015”. Nota-se que estes progressos foram obtidos na democracia, interrompida somente durante a tentativa de golpe de Estado em 2002 e protagonizada pela oposição com o apoio ativo dos Estados Unidos.

A morte prematura de Hugo Chávez em 2013 e a queda do preço do petróleo em 2014 causaram uma comoção profunda nos processos de transformação social que estava em curso. A liderança carismática de Chávez não possuía um sucessor, a vitória de Nicolás Maduro nas eleições seguintes se deu com uma pequena margem de diferença, o novo presidente não estava preparado para as complexas tarefas do governo e a oposição (muito dividida internamente) percebeu que seu momento tinha chegado. Novamente foi apoiada pelos Estados Unidos, sobretudo quando, em 2015, e novamente em 2017, o presidente Obama considerou a Venezuela como uma “ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos”, uma declaração que foi considerada exagerada, se não ridícula, mas que, como explicou posteriormente, tinha uma lógica (de acordo com o ponto de vista dos Estados Unidos, claro).

A situação passou a piorar, até que, em dezembro de 2015, a oposição conquistou a maioria na Assembleia Nacional. O Tribunal Supremo de Justiça suspendeu quatro deputados, alegando fraude eleitoral, a Assembleia Nacional desobedeceu. A partir daí, a confrontação institucional se agravou e foi progressivamente se espalhando pelas ruas, alimentada também pela grave crise econômica e de abastecimento que eclodiu no país. Mais de cem mortos, uma situação caótica.

No entanto, o presidente Maduro tomou a iniciativa de convocar uma Assembleia Constituinte, a ser eleita no dia 30 de julho, e os Estados Unidos ameaçam com mais sanções se as eleições acontecerem. Sabe-se que esta iniciativa busca superar a obstrução da Assembleia Nacional dominada pela oposição.

No último dia 26 de maio, assinei um manifesto elaborado por intelectuais e políticos venezuelanos de diferentes tendências políticas, solicitando que os partidos e os grupos sociais em conflito interrompessem a violência praticada nas ruas e iniciassem um debate que permitisse encontrar uma saída não violenta, democrática e sem a intervenção dos Estados Unidos. Decidi então não voltar a me pronunciar sobre a crise venezuelana.

Por que o faço hoje? Porque estou assustado com a parcialidade da comunicação europeia, incluindo a portuguesa, sobre a crise na Venezuela, uma distorção a qual recorrem todos os meios de comunicação para demonizar um governo eleito legitimamente, causar um incêndio social e político e legitimar uma intervenção estrangeira de consequências incalculáveis.

A imprensa espanhola beira a pós-verdade, divulgando notícias falsas sobre a posição do governo português. Me pronuncio movido pelo bom senso e pelo equilíbrio que o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, demonstrou sobre o tema. A história recente mostra que as sanções econômicas afetam mais aos cidadãos inocentes do que aos governos.

Basta lembrar das mais de 500 mil crianças que, segundo o relatório das Nações Unidas de 1995, morreram no Iraque como resultado das sanções impostas depois da Guerra do Golfo. Recordemos também que na Venezuela vivem meio milhão de portugueses ou lusodescendentes. A história recente também ensina que nenhuma democracia sai fortalecida de uma intervenção estrangeira.

Os desacertos de um governo democrático se resolvem pela via democrática, que será mais consistente quanto menor seja a interferência externa. O governo da Revolução Bolivariana é um governo eleito democraticamente. Ao longo de muitas eleições durante os últimos vinte anos, nunca deu sinais de não respeitar os resultados eleitorais. Perdeu eleições e pode voltar a perder a próxima, e seria condenável somente se não respeitasse os resultados.

Mas não se pode negar que o presidente Maduro tem legitimidade constitucional para convocar a Assembleia Constituinte. Evidentemente que os venezuelanos (incluindo muitos chavistas críticos) podem, legitimamente, questionar sua ocasião, sobretudo considerando que dispõem Constituição de 1999, promovida pelo presidente Chávez, e dispõem de meios democráticos para manifestar este questionamento no próximo domingo. Mas nada justifica o clima de insurreição que a oposição tem radicalizado nas últimas semanas, cujo objetivo não é corrigir os erros da Revolução Bolivariana, mas decretar seu fim e impor as receitas neoliberais (como está ocorrendo no Brasil e na Argentina), com tudo que representará para a maioria pobre da Venezuela.

O que deve preocupar os defensores da democracia, ainda que isto não preocupe os meios de comunicação globais que tomaram partido pela oposição, é a forma como os candidatos estão sendo selecionados. Se, como se suspeita, os aparatos burocráticos do Governo sequestraram o impulso participativo das classes populares, o objetivo da Assembleia Constituinte de ampliar democraticamente a força política da base social de apoio à revolução estará frustrado.

Para compreender por que provavelmente não haverá uma saída não violenta à crise da Venezuela, é conveniente saber o que está em jogo no plano geoestratégico mundial. O que está em jogo são as maiores reservas de petróleo do mundo. Qualquer país, por mais democrático que seja, que possua este recurso estratégico e não o torne acessível às multinacionais, em sua maioria norteamericanas, estão sob a mira de uma intervenção imperial.

A ameaça à segurança nacional sobre a qual falam os presidentes dos Estados Unidos, não está somente no acesso ao petróleo, mas também no fato de que o comércio mundial de petróleo se organiza em dólares estadunidenses, o verdadeiro núcleo do poder dos Estados Unidos, já que nenhum outro país tem o privilégio de imprimir as notas que considere sem que isso afete significativamente seu valor monetário.

Por esta razão, o Iraque foi invadido e o Oriente Médio e a Líbia foram arrasados (neste último caso, com a cumplicidade ativa de França de Sarkozy). Pelo mesmo motivo, houve ingerência, hoje documentada, na crise brasileira, pois a exploração das jazidas petrolíferas do pré-sal estava nas mãos dos brasileiros. Pela mesma razão, o Irã voltou a estar em perigo. Do mesmo modo, a Revolução Bolivariana tem que cair sem ter a oportunidade de corrigir democraticamente os erros graves que seus dirigentes cometeram nos últimos anos.

Sem intervenção externa, estou seguro de que a Venezuela saberia encontrar uma solução não violenta e democrática. Infelizmente, o que está em curso é usar todos os meios disponíveis para colocar os pobres contra o chavismo, a base social da Revolução Bolivariana e aqueles que mais se beneficiaram dela. E, paralelamente, provocar uma ruptura nas Forças Armadas e um consequente golpe militar que derrube Maduro. A política exterior da Europa (se fosse possível falar em tal) poderia constituir uma força moderadora se, no entanto, não tivesse perdido a alma.
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*Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático aposentado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Este artigo foi publicado originalmente em espanhol no portal Aporrea e traduzido para o português.
Edição: Camila Rodrigues da Silva | Tradução: Luiza Mançano
Fonte:  https://www.brasildefato.com.br/2017/07/28/artigo-or-em-defesa-da-venezuela/

Timothy Morton : “Uma avaliação da nossa espécie”: o filósofo profeta do Antropoceno

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Max Burkhalter
Timothy Morton quer que a humanidade abdique de algumas das suas crenças fundamentais, desde a fantasia de que controlamos o planeta até à noção de que estamos “acima” de outros seres. As suas ideias podem parecer estranhas, mas 
estão a começar a popularizar-se.

Alex Blasdel
30 de Julho de 2017

Há alguns anos, Björk começou a trocar correspondência com um filósofo cujos livros ela admirava. A sua primeira mensagem começava assim: “Olá, Timothy. Há muito tempo que queria escrever esta carta.” Então, a cantora estava a tentar arranjar um nome para o seu género particular de música, a dar uma etiqueta ao seu trabalho para a posteridade, antes que os críticos musicais o fizessem. Ela pediu-lhe para a ajudar a definir a natureza da sua arte: “Não apenas a defini-la para mim, mas também para todos os meus amigos, e até para toda uma geração.”

Acontece que o filósofo, Timothy Morton, era um fã de Björk. A sua música, disse-lhe ele, tinha tido uma "influência muito profunda" na sua maneira de ser e na sua vida "em geral". A sensação de perturbadora intimidade com outras espécies, a fusão de diferentes ambientes nas canções e videoclips – ternura e horror, estranheza e alegria –, “é o sentimento de consciência ecológica”, respondeu ele. O próprio trabalho de Morton é acerca das implicações desta estranha consciência – o reconhecimento da nossa interdependência ante os outros seres –, que, crê ele, corrói velhas noções acerca da separação entre a humanidade e a natureza. Para ele, esta é a característica que define o nosso tempo, e está a impelir-nos para que alteremos as nossas “ideias centrais sobre o que significa existir, o que é a Terra, o que é a sociedade”. 

Ao longo da última década, as ideias de Morton têm vindo a infiltrar-se no mainstream. Hans Ulrich Obrist, director artístico da galeria Serpentine, em Londres, e talvez a figura mais poderosa e influente no mundo da arte contemporânea, é um dos seus maiores apoiantes e defensores. Obrist afirmou aos leitores da Vogue que os livros de Morton estão entre as mais proeminentes obras culturais do nosso tempo e recomenda-os a muitos dos seus colaboradores. O conceituado artista Olafur Eliasson tem convidado Morton para fazer palestras um pouco por todo o mundo na inauguração das suas principais exposições. Excertos da correspondência entre Morton e Björk foram publicados como parte da retrospectiva da cantora islandesa em 2015 no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA).

A terminologia de Morton está “lentamente a infectar toda a área das Humanidades”, diz o seu amigo e pensador Graham Harman. Apesar de muitos intelectuais e académicos terem reputação de escreverem exclusivamente para os seus colegas de faculdade, o peculiar vocabulário conceptual de Morton – “ecologia negra”, “o estranho estrangeiro”, “a malha” – tem sido adoptado por outros escritores numa grande variedade de campos, desde a literatura e a epistemologia até o direito e a religião. No ano passado, foi incluído numa muito polémica lista dos 50 filósofos vivos mais influentes. As suas ideias têm também passado para os órgãos de comunicação tradicionais, como as revistas Newsweek e New Yorker e o jornal New York Times.

Parte do que torna Morton popular são os ataques que lança contra as tradicionais forma de pensar. No seu livro mais frequentemente citado, Ecology without Nature [Ecologia sem Natureza, em tradução livre], argumenta que precisamos de eliminar todo o conceito de “natureza”. Afirma que uma característica distintiva do nosso mundo actual é a presença de coisas “genormes” a que ele chama “hiperobjectos” – como sejam o aquecimento global ou a Internet –, que tendemos a pensar como ideias abstractas, porque não conseguimos percebê-las, mas que mesmo assim são tão reais como um martelo. Acredita que todos os seres são interdependentes e especula que tudo no Universo tem alguma espécie de consciência, desde as algas e os penedos até às facas e aos garfos. Proclama que os seres humanos são uma espécie de ciborgues, visto que somos feitos de todo o tipo de componentes não humanos; gosta de destacar que a mesma coisa que supostamente nos torna nós – o nosso ADN – contém uma quantidade significativa de material genético de vírus. Diz que já estamos a ser regidos por uma inteligência artificial: o capitalismo industrial. Ao mesmo tempo, acredita que existem alguns “estranhos produtos químicos experimentais” na esfera do consumo que irão ajudar a humanidade a evitar uma crise ecológica total.

Quase tudo o que fazemos é uma questão ambiental

As teorias de Morton podem parecer bizarras, mas estão em sintonia com a ideia mais demolidora que emergiu neste século XXI: que estamos a entrar numa nova fase na História do planeta – uma fase a que Morton e muitos outros chamam agora o Antropoceno.

Ao longo de mais de 12 mil anos, os seres humanos têm vivido numa era geológica denominada Holoceno, conhecida pelo seu clima relativamente temperado e estável. Era, pode-se dizer, a Califórnia da História planetária. Mas está a chegar ao fim. Recentemente, começámos a alterar a Terra de uma forma tão drástica que, de acordo com muitos cientistas, uma nova era está a emergir. Após umas muito breves férias geológicas, parece que estamos a entrar num período mais volátil. 

O termo Antropoceno, da antiga palavra grega anthropos, que significa humano, reconhece que os seres humanos são a principal causa da actual transformação da Terra. Clima extremo, cidades submersas, uma aguda falta de recursos, espécies em extinção, lagos que se tornaram desertos, desastres nucleares: se ainda existir vida humana na Terra daqui a umas dezenas de milhares de anos, sociedades que nem sequer conseguimos imaginar terão de enfrentar as alterações que estamos a causar actualmente. Morton notou que 75% dos actuais gases do efeito de estufa existentes na atmosfera ainda lá estarão daqui a meio milénio. Isso é daqui a 15 gerações. Demorará outras 750 gerações, ou cerca de 25 mil anos, para que a maioria desses gases seja absorvida pelos oceanos.

O Antropoceno não é apenas um período de perturbações causadas pelo homem. É também um momento de rápida tomada de consciência de si própria, no qual a espécie humana está ficar mais ciente de si mesma enquanto força planetária. Estamos não apenas a liderar o aquecimento global e a destruição ecológica; sabemos que estamos a fazê-lo.

Uma das noções mais fortes e perspicazes de Morton é que estamos condenados a viver com esta percepção em todos os momentos. Ela está lá não apenas quando os políticos se reúnem para discutir os acordos internacionais sobre o ambiente, mas também quando fazemos algo tão banal como conversar sobre o tempo, pegar num saco de plástico no supermercado ou regar a relva do jardim. Vivemos num mundo com uma matemática moral que antes não existia. Agora, quase tudo o que fazemos é uma questão ambiental. Isso não era verdade há 60 anos – ou pelo menos as pessoas não tinham a noção de que isso era verdade. O que é trágico é que apenas quando saqueamos o planeta percebemos o quanto realmente fazemos parte dele.

Morton crê que isto constitui uma revolução na nossa compreensão do nosso lugar no Universo, a par das que foram levadas a cabo por Copérnico, Darwin e Freud. Ele é apenas um entre milhares de geólogos, cientistas climáticos, historiadores, escritores e jornalistas que escrevem sobre esta sublevação, mas ele, talvez melhor do que todos os outros, condensa em palavras o misterioso sentimento de estar presente no nascimento desta era extrema.

“Aí está você a rodar a chave na ignição do seu carro”, escreve ele. “E aí você apercebe-se.” Cada vez que liga o motor do seu carro, não tenciona prejudicar a Terra, “quanto mais causar a Sexta Extinção em Massa nos 4,5 mil milhões de anos da História da vida neste planeta”. Mas “prejudicar a Terra é precisamente o que está a acontecer”. Parte do que é tão incomodativo acerca disto é que os nossos actos individuais podem ser estatística e moralmente insignificantes, mas quando os multiplicamos por milhões e biliões de vezes – dado que são levados a cabo por toda uma espécie – constituem um acto colectivo de destruição ecológica. A destruição dos corais não está a acontecer apenas lá longe, na Grande Barreira do Coral australiana; está a acontecer sempre que você liga o ar condicionado. Em resumo, diz Morton, “tudo está interligado”.

À medida que o trabalho de Morton se estende para lá dos hierofantes culturais como Björk e entra nas páginas dos maiores órgãos de informação, ele está talvez a transformar-se no nosso mais popular guia para a nova época. Sim, é verdade que ele tem algumas ideias que parecem muito loucas acerca do que significa estar vivo nos tempos actuais – mas o que significa estar vivo exactamente agora, no Antropoceno, é efectivamente muito louco.

A culpa não será do "Capitaloceno"?

No decurso da sua ainda curta existência, o Antropoceno tem crescido enquanto conceito tão ambicioso como qualquer outro paradigma da História do mundo que mereça esse nome. O que se iniciou como um debate técnico no âmbito das ciências da Terra tem levado, na opinião de Morton, a um confronto com algumas das nossas formas mais básicas de entender o mundo. No Antropoceno, escreve, estamos todos a sentir “uma traumática perda de coordenadas”. 

A noção de Antropoceno é geralmente atribuída ao químico especialista em atmosfera Paul Crutzen, vencedor do Prémio Nobel, e ao biólogo Eugene Stoermer, que começaram a popularizar o termo no ano 2000. Logo desde o princípio muitos tomaram bem a sério o conceito de Crutzen e Stoermer, mesmo que não concordassem com ele. Desde o final do século XX, alguns cientistas têm abordado o tempo geológico como um drama pontuado por grandes cataclismos, e não meramente uma junção gradual de pequenas alterações; e fazia sentido considerar a própria humanidade como o último cataclismo.

Imaginemos os geólogos de uma futura civilização a examinar os níveis de rochas que estão actualmente em processo de formação lenta, da mesma forma que examinamos os estratos de rochas que se formaram quando os dinossauros se extinguiram. Essa civilização irá encontrar provas do nosso súbito (em termos geológicos) impacto no planeta – incluindo os plásticos fossilizados e as camadas tanto de carbono, da queima de combustíveis baseados no carbono, como das partículas radioactivas, dos testes e explosões nucleares – tão claramente como hoje podemos ver as provas da súbita desaparição dos dinossauros. Hoje em dia já podemos observar essas camadas a formar-se.

Durante alguns anos houve um debate aceso acerca da utilidade deste novo conceito. Os críticos argumentavam que o “sinal geológico” da humanidade ainda não era tão notório que justificasse a designação de uma nova era, ou que o termo não tinha utilidade científica. Os apoiantes perguntavam onde deveriam situar o início do Antropoceno. No início da agricultura, há muitos milhares de anos? Na invenção do motor a vapor no século XVIII e no começo da Revolução Industrial? Às 5h29 de 16 de Julho de 1945, o momento em que se realizou a primeira explosão de teste nuclear no deserto do estado do Novo México? (Morton, no seu espírito ecuménico, considera todos estes momentos como sendo decisivos.) Depois, em 2002, Crutzen apresentou os seus argumentos na revista científica Nature. A ideia de um momento na História do planeta em que a influência humana era predominante parecia interligar tantos acontecimentos díspares – desde a diminuição dos glaciares até uma nova abordagem dos limites do capitalismo – que o termo rapidamente se espalhou para outras ciências da Terra, e depois ainda mais além.

Desde então surgiram pelo menos três publicações académicas dedicadas ao Antropoceno, várias universidades criaram comités de investigação formais para ponderar as suas implicações, alunos da Universidade de Stanford lançaram um popular podcast intitulado “Geração Antropocena”, e milhares de artigos e livros foram escritos sobre o tema, em domínios que vão desde a economia à poesia. 

Alguns pensadores opõem-se à palavra, argumentando que reforça a visão humanocêntrica do mundo que nos levou até à beira da catástrofe ecológica. Outros dizem que a culpa da espoliação da Terra não deve ser atribuída à humanidade em geral, mas ao capitalismo (predominantemente branco, ocidental e masculino). Algumas designações alternativas têm sido avançadas, incluindo o “Capitaloceno”, mas nenhuma se afirmou. Não têm o tom de inquietude existencial de Antropoceno, que evidencia tanto a nossa culpabilidade como a nossa fragilidade enquanto humanos.

Por volta de 2011, o Antropoceno “começou pela primeira vez a surgir regularmente em jornais”, de acordo com o livro recente do professor Jeremy Davies [The Birth of the Anthropocene, 2016], no qual ele esmiuça a recente história do conceito. A BBC, o jornal Economist e as revistas National Geographic e Science, entre outros, publicaram artigos sobre esta ideia. As alterações planetárias tinham progressivamente levado os jornalistas a inserirem os seus temas ambientais no contexto da geo-história – níveis de dióxido de carbono na atmosfera de 400 partes por milhão? Algo nunca visto desde o Plioceno, há três milhões de anos – e o Antropoceno tornou-se uma ferramenta útil para colocar a actividade humana na perspectiva do tempo geológico longo. Para Morton, que tinha recentemente começado a escrever sobre o assunto, ele dava conta da sua preocupação de como diferentes espécies de seres, incluindo os humanos, dependem umas das outras para a sua existência – um facto que as várias calamidades do Antropoceno terão confirmado.

Em 2014, o Antropoceno foi incluído no Oxford English Dictionary, e no ano passado a era foi formalmente aceite por um grupo de trabalho integrado na Comissão Internacional de Estratigrafia, a guardiã oficial do tempo geológico. Para uma possível data de início escolheram o ano de 1950, quando um dos mais evidentes sinais da actividade humana surgiu a nível global na crosta da Terra: isótopos de plutónio dos testes nucleares generalizados. O anúncio do grupo de trabalho foi considerado tão importante que teve honras de primeira página no jornal Guardian – nos meios de comunicação social, o Antropoceno é agora utilizado para contextualizar qualquer coisa, desde críticas de romances até discussões sobre a presidência de Donald Trump. Tal como disse então Jan Zalasiewicz, presidente do grupo e um dos mais proeminentes cientistas que estudam o Antropoceno, a nova era “define uma trajectória diferente para o sistema da Terra” e apenas agora estamos a “começar a perceber a magnitude e a permanência das alterações”.

Houve anteriormente períodos de intensa flutuação climática em conjunto com extinções em massa. A mais recente ocorreu há 66 milhões de anos, quando um meteorito com dez quilómetros de diâmetro atingiu aquilo que é agora a Península do Iucatão [Sudeste do México]. O impacto libertou energia estimada em dois milhões de vezes a energia da bomba atómica mais poderosa alguma vez detonada, alterando a atmosfera do planeta e extinguindo três quartos das suas espécies. Mas isso foi um acontecimento comparativamente simples que as ciências estão bem equipadas para perceber.

Para entender uma alteração de era que está a ser causada pela actividade humana, precisamos mais do que apenas geologia, meteorologia e química. Se isto é uma avaliação da nossa espécie, então necessitamos de um guia intelectual – alguém que nos diga exactamente quão em pânico devemos estar e o quanto vamos ser modificados pelo nosso reconhecimento de que estamos a transformar o planeta.

A catástrofe já aconteceu

A consciência que adquirimos no Antropoceno em geral não é muito animadora. Muitos ambientalistas estão agora a alertar para uma catástrofe global iminente e a instar as sociedades industriais a arrepiarem caminho. Morton adopta uma posição mais iconoclasta. Em vez de fazer soar o alarme ecológico como uma espécie de Paul Revere [patriota famoso por ter alertado as milícias independentistas americanas da aproximação de tropas britânicas em 1775] do apocalipse, defende aquilo a que chama “ecologia negra”, que avança que a tão temida catástrofe, de facto, já aconteceu.
Morton crê não só que está em marcha um aquecimento global irreversível, mas também algo mais abrangente. “Nós os mesopotâmios” – como ele chama às últimas cerca de 400 gerações de humanos que viveram em sociedades industriais e agrícolas – pensávamos que estávamos simplesmente a manipular outros seres (através do cultivo e da engenharia, e por aí fora) num vácuo, como se fôssemos técnicos de laboratório e eles estivessem numa enorme placa de Petri chamada 'natureza' ou 'o meio ambiente'.” No Antropoceno, afirma Morton, temos de reconhecer o facto de que nunca nos destacámos nem controlámos as coisas não humanas do planeta, mas que sempre estivemos intimamente ligados a elas. Não podemos sequer queimar, atirar para o chão ou pelo cano qualquer coisa sem que ela de alguma forma se vire contra nós, tal é a poluição prejudicial. As nossas ideias mais acarinhadas acerca da natureza e do ambiente – que eles estão separados de nós e relativamente estáveis – foram postas em causa.

Morton compara esta consciencialização com as histórias de detectives em que o perseguidor percebe que se está a perseguir a si próprio (os seus exemplos favoritos são Blade Runner e Édipo Rei). “Nem todos nós estamos preparados para ficarmos suficientemente assustados [com esta epifania]”, declara. Mas existe outra reviravolta: apesar de os seres humanos terem causado o Antropoceno, não podemos controlá-lo. “Oh, meu Deus”, exclamou Morton ante mim a certa altura, fingindo estar horrorizado. “A minha tentativa de escapar da teia do destino era a teia do destino.”

É através dos hiperobjectos que nós inicialmente enfrentamos o Antropoceno, argumenta Morton. Um dos seus livros mais influentes, intitulado precisamente Hyperobjects, examina a experiência de ser apanhado numa dessas entidades – na realidade, de ser uma parte interna e integrante –, que são demasiado grandes para conseguirmos compreendê-las e demasiado grandes para conseguirmos controlá-las. Podemos experimentar hiperobjectos como o clima nas suas manifestações locais, ou através de dados produzidos pelas medições científicas, mas a sua escala e o facto de estarmos presos dentro deles significam que nunca conseguimos entendê-los totalmente. Devido a esses fenómenos, estamos a viver num tempo de mudança literalmente impensável. 

Isto conduziu Morton a uma das suas mais destacadas afirmações: a de que o Antropoceno está a forçar uma revolução no pensamento humano. Os avanços na ciência estão agora a sublinhar o quão estamos “apanhados na malha” juntamente com outros seres – desde os micróbios que constituem cerca de metade das células do nosso corpo à confiança que temos no calor do campo electromagnético da Terra para sobrevivermos. Ao mesmo tempo, os hiperobjectos, na sua enormidade desajeitada, alertam-nos para os limites derradeiros da ciência e em consequência para os limites do domínio humano. A ciência apenas nos consegue levar até um determinado ponto. Isto significa alterar a nossa relação com outras entidades do Universo – quer sejam animais, vegetais ou minerais –, passar de um paradigma de exploração através da ciência para um de solidariedade na ignorância. Se falharmos nisso, iremos continuar a causar destruição no planeta, a ameaçar as formas de vida que tanto prezamos, e até a nossa própria existência. Em contraste com as fantasias utópicas de que iremos ser salvos pela emergência da inteligência artificial ou por uma qualquer outra tecnologia, o Antropoceno ensina-nos que não podemos superar as nossas limitações ou a nossa dependência face a outros seres. Apenas podemos viver com eles. 

Isto pode soar tenebroso, mas Morton consegue vislumbrar aí uma libertação. Se desistirmos da ilusão de controlarmos tudo o que está à nossa volta, podemos voltar a focar-nos no prazer que obtemos dos outros seres e da própria vida. O desfrutar, acredita Morton, poderá ser o factor que nos mostrará um novo tipo de política. “Vocês pensam que uma vida ecologicamente consciente significa ser totalmente eficiente e puro”, diz o seu post mais destacado no Twitter. “Estão enganados. Significa quer podem ter uma discoteca em cada divisão da vossa casa.”

São palavras típicas do seu pensamento, que muitas vezes parte do desoladoramente familiar, mas depois se vira abruptamente para domínios menos batidos. “Existe algo de verdadeiramente esperançoso no seu trabalho”, opina Hans Ulrich Obrist em relação a Morton. “Esperança e talvez mesmo optimismo surgem algures lá pelo meio.” Morton conta uma história acerca da instalação na sua casa nos subúrbios de Houston, onde dá aulas na Universidade de Rice, de electricidade gerada pelo vento. Após um ou dois dias a “sentir-[se] muito recto e honrado”, percebeu que agora podia ter “luzes estroboscópicas e pratos de gira-discos e pessoas a divertir-se durante horas e horas, durante todo o dia, todos os dias”, ao mesmo tempo que causava muito menos danos ao planeta. “E na verdade é esse o futuro ecológico.”

Na manhã de um sábado no último Outono fui ter com Morton à galeria Serpentine, onde se realiza anualmente um festival de ideias e onde ele iria falar no final do dia. Ao longo das semanas anteriores, tinha estado em Seul a ajudar Olafur Eliasson a inaugurar a sua exposição individual; em Singapura, para falar na conferência Cidades do Futuro; em Bruxelas, para um discurso intitulado “A natureza não é real”, num parque público à noite (disse-me que apareceram 250 pessoas); na Universidade de Exeter, onde destacou o rocking, a sua nova teoria de acção, que descreveu como “uma versão bizarra das categorias teísticas de activo versus passivo”; em Roma, onde passou o seu tempo a, entre outras coisas, beber martinis; e em Paris, onde foi a uma rave com a sua amiga Ingrid e ficou tão dominado pela emoção e pela exaustão que passou parte da noite deitado no chão da pista de dança. 

“Professor de Literatura e Ambiente”

Se tivéssemos de escolher um avatar para o Antropoceno, Morton poderia ser uma escolha acertada. Tem olhos azuis-marinhos que simultaneamente impressionam e parecem impressionados. Combine-se com um ar ligeiramente rechonchudo que sugere vulnerabilidade física, uma vermelhidão eczematosa nas suas faces, um punhado de finos cabelos louros, e a sua aparência sugere que terá sobrevivido a algum tipo de desgraça. De facto, é um homem bastante enfermiço. Entre outras coisas, sofre de apneia severa do sono, depressão profunda, fortes enxaquecas e, ao que me apercebo ao longo das nossas conversas, um ocasional surto de paranóia mediana. Obrist, que gravou mais de 2500 horas de entrevistas com artistas e filósofos, disse-me que Morton é o único que ficou “tão emocionado que começou mesmo a chorar” (tinham estado a discutir a extinção em massa). 

No início de 2016, quando falei com Morton através de videoconferência, ele tinha-se mostrado efervescente. Agora, sentado ao fundo do restaurante da galeria, convertido numa sala para performances, parecia estar nas últimas. Nesse ano já tinha publicado 14 ensaios, enquanto continuava a trabalhar nos seus próximos dois livros. Nas semanas seguintes tinha palestras marcadas para Chicago, Yale, Seul (outra vez), Munique e, finalmente, iria reunir-se com cientistas do Laboratório de Propulsão a Jacto da NASA, para debaterem qual o tipo de mensagens a enviar para o espaço no caso de ser reactivado o programa das missões Voyager. (A original, lançada em 1977, enviou duas naves para lá dos confins do sistema solar; cada uma levava um disco de 30 centímetros banhado a ouro e gravado com sons e imagens representando a humanidade e outros seres terrestres.) Pelo final de 2016, como mais tarde escreveu no seu blogue, Morton já tinha acumulado 350 mil milhas [625 mil quilómetros] em viagens de avião. 

É possível, quando alguém está com Morton pela primeira ou segunda vez, questionar-se se não haverá alguma falsidade na sua índole hippie, na sua emotividade, na sua destreza intelectual. Mas os seus amigos desde criança e os seus familiares afirmam que o seu empenho visceral na ecologia e as suas façanhas académicas recuam até à sua infância. Morton nasceu na zona noroeste de Londres, em 1968, um período em que uma crescente consciência das ameaças ecológicas surgia em paralelo com um sentimento de que as pessoas podiam mudar o mundo para melhor, possivelmente sob a influência do LSD. Depois de os seus pais, que eram ambos violinistas que tocavam música erudita, se terem divorciado nos finais dos anos 1970, o pai juntou-se à Greenpeace e foi velejar pelo mundo em acções de protesto; já a sua mãe era uma feminista convicta, muito activa na Campanha para o Desarmamento Nuclear. 

Desde cedo Morton destacou-se a nível académico. Ganhou a mais importante bolsa de estudo para ir para a escola de elite de St. Paul’s, em Londres, durante cinco anos consecutivos, e depois foi para a Universidade de Oxford estudar Inglês. Teve as melhores notas do seu curso nos exames do primeiro ano e também nos exames finais. Ter bons resultados a nível académico foi importante para Morton, mas acabou por chegar à conclusão de que “na realidade isso é secundário face àquela outra coisa que se chama estar vivo”. A sua vida em parte tomou a forma que o seu trabalho mais tarde iria adoptar. Não era tanto apenas acumular conhecimento, mas também procurar o prazer e a intimidade. No seu segundo ano da licenciatura, ele e o companheiro de quarto, Mark Payne, que agora ensina Literatura Clássica na Universidade de Chicago, “tomavam ácido e ouviam Butthole Surfers e discutiam sobre Blake”. (Payne afirma que tomaram ácido e discutiram sobre Milton.) Também se apaixonou pela primeira vez. Enquanto estudante de mestrado, Morton tinha o cabelo comprido, vestia um blusão de cabedal e usava colares e pulseiras de missangas. A sua tese, que é agora reconhecida com sendo um importante contributo para o estudo do Romantismo, revelou que o vegetarianismo de Percy e Mary Shelley estava intimamente ligado às suas posições políticas e à sua arte. Paul Hamilton, que orientou parte do trabalho de mestrado de Morton, disse-me que, no que toca aos Shelley, Morton “alterou as noções que toda a gente tinha”. 

Apesar do sucesso da sua dissertação, Morton teve dificuldades em obter um lugar numa universidade e até pensou em suicidar-se. Por fim, encontrou emprego na Universidade do Colorado, em Boulder, antes de se mudar, em 2013, para a Universidade da Califórnia em Davis, a nordeste de São Francisco. Estar no Norte da Califórnia parece ter amadurecido o seu pensamento e começou a centrar-se em questões explicitamente ecológicas, tal como sobre o que é que escrevemos quando escrevemos acerca da natureza. Num gesto astuto de autopublicidade, começou a designar-se a si próprio como “professor de Literatura e Ambiente”.

Ao longo dos anos seguintes, Morton publicou o livro em que questionava a noção de “natureza”, seguido de outro em que perguntava o que significava para nós a confiança nas formas insondavelmente complexas de uma infindável quantidade de outros seres. Também se juntou a um movimento filosófico pequeno e polémico que se autodenomina Ontologia Orientada para Objectos (OOO), que defende que todos os seres, incluindo os humanos, apenas conseguem perceber o mundo nas suas limitadas capacidades (por outras palavras, nunca saberemos o que sabem as moscas, e vice-versa). Depois, em 2012, Morton abandonou a Califórnia e foi para Rice, uma das mais prestigiadas universidades nos Estados Unidos.

Com a segurança de um posto de professor efectivo e as sucessivas infusões de budismo e OOO no seu pensamento, Morton começou a escrever num estilo mais pessoal, mais rápido e preciso. A sua conversa sobre uma discoteca na sua casa com energia eólica e a forma como se demora a dizer partaying [forma adulterada de gíria para party, grande festa, farra] encaixam-se perfeitamente no seu projecto. “É inevitável que a consciência ecológica tenha uma espécie de sabor aos anos 1970”, concede. Trata-se de uma estética que ele abraça “em toda a sua bizarrice florida”. Existe também uma imensa capacidade, como umas largas calças de boca de sino, de diversificação no seu estilo intelectual. Poderá muito bem ser a única pessoa que tanto surge numa lista dos filósofos vivos mais influentes como aparece como letrista num álbum que alcançou o número quatro das tabelas de vendas no Reino Unido (Stacked Up, dos Senser, em 1994).

Seguiu as pegadas de pensadores como Jacques Derrida e Edward Said, ao proferir uma das famosas palestras Wellek, na Universidade da Califórnia em Irvine – mas também actuou no festival de Glastonbury, tocando música para actuações de lançadores de fogo e malabaristas, e serviu como consultor na série de Steve Coogan A Viagem a Itália. Apesar de estar prestes a publicar um livro que tenta fundir a ecologia negra com o marxismo (“O safanão é grande e nem toda a gente vai gostar”, afirma), tem outro no prelo, na editora Pelican, Being Ecological [Ser Ecológico], que se destina a encantar o público mais generalista. A primeira frase é: “Este livro não contém qualquer facto ecológico.” Apesar de vários dos seus livros serem dedicados aos sujeitos habituais (mulher, filhos, irmãos), também dedicou um ao seu gato, o falecido Allan Whiskersworth. Um dos posts mais absorventes no seu blogue, que é actualizado regularmente, é uma pesquisa crítica acerca de pénis gigantes pintados em telhados, de forma a serem descobertos via Google Earth. Está profundamente empenhado no budismo Shambhala e vagueou pelo monte Kailash no Tibete. Há não muito tempo fizeram-lhe uma leitura muito comovente das cartas do Tarot. 

Se as pessoas acham muitas destas coisas ridículas, ainda bem. “Gosto de pensar em mim próprio como sendo a coisa mais pirosa, mais horrível que seja possível imaginar”, disse-me. Alcançou os habituais troféus do sucesso académico; agora que está a passar pelos metafóricos detectores de metais da sociedade fina, tem um outro objectivo. “Posso ficar bem conhecido, e aí posso lançar uma espécie de cena anarquista hippie que tenho guardado como um líquido muito precioso, cuidadosamente, sem entornar nem uma gota, durante anos e anos”, conta. “E agora vou espalhá-la por todo o lado.”

Nem tudo parece plausível

Quando chegou a altura da sua palestra na Serpentine, Morton surgiu com uma camisa dourada da Versace, bem justa, que poderia ser usada por um vilão piroso de um filme da série James Bond. A sua palestra intitulava-se Stuff Can Happen [Podem Acontecer Coisas].

 “É inacreditável a quantidade de filósofos que têm medo deste movimento”, começou Morton. Continuou depois comparando duas linhas de pensamento na obra do filósofo Hegel. “Um dos problemas de Hegel”, disse Morton, “o problema a que eu chamo macro-Hegel, é que o macro-Hegel tem um movimento esquivo a subir as escadas, o que é improvável. E no cimo das escadas, como o assassino em Psycho, está à espera, suspense, sim, acertaram, a patriarquia branca ocidental, na forma do Estado prussiano.” (Eu não tinha adivinhado este final. Será que deveria ter adivinhado?) “Assim, o macro-Hegel rebenta com ela.” 

Parecia ser uma forma bastante estranha de iniciar uma palestra face a uma mistura de artistas, activistas, estudantes e músicos. Mesmo sendo alguém interessado na obra de Morton, em breve me senti aborrecido e distraído. O homem ao meu lado, um académico americano com um sentido de humor corrosivo, rolou os olhos e murmurou: “Mas que merda é esta?”

Apesar da popularidade de Morton, esta é uma reacção bastante comum ao seu trabalho. Os críticos de Morton com quem falei acusaram-no de que não compreender a ciência contemporânea, como a mecânica quântica e a teoria dos conjuntos, e depois reclamar as distorções que apresentam como provas que corroboram as suas ideias extravagantes. Fizeram uma crítica recorrente que me recordou um provérbio que expressa cepticismo: “Se abrires demasiado a tua cabeça, as tuas ideias caem.” A torrente de ideias interessantes na obra de Morton não se aguenta, se forem atentamente examinadas, afirmam. O filósofo Ray Brassier, que chegou a estar associado à OOO, acusou Morton e os seus companheiros da blogosfera de gerarem “uma orgia de estupidez online”. 

Outros críticos, especialmente de esquerda, queixam-se de que a concepção de Antropoceno de Morton toca muito ao de leve nas questões de raça, classe, género e colonialismo, responsabilizando toda a humanidade por danos causados por uma minoria privilegiada. O ser humano colocado no centro do conceito de Antropoceno é um alvo especialmente querido dos críticos. Ao referir-se aos seres humanos como um todo unificado, argumentam eles, Morton apaga as distinções entre o Ocidente rico e os outros membros da humanidade, muitos deles já vivendo num estado de catástrofe ecológica muito antes de a noção de Antropoceno ter entrado na moda nas universidades da Europa e da América do Norte. Outros afirmam que a ideia de política de Morton é demasiado confusa, ou que a última coisa de que precisamos quando enfrentamos desafios ecológicos são comentários abstractos acerca da natureza dos objectos.

Já os defensores de Morton vêem-no como uma espécie de Ralph Waldo Emerson do Antropoceno: os seus escritos têm valor, mesmo que nem sempre aguentem o escrutínio filosófico. “Ninguém num departamento de Filosofia vai levar Tim Morton a sério”, disse-me Claire Colebrook, professora de Inglês na Universidade do Estado da Pensilvânia, que tem trabalhado muito na área do Antropoceno. Mas ela ensina o pensamento de Morton aos seus alunos de licenciatura e eles adoram-no. “Porquê? Porque eles são do género: ‘Cala-te lá e dá-nos mas é uma ideia!’” 

Nem tudo o que Morton me disse no decurso das nossas conversas me pareceu filosoficamente ou ecologicamente plausível. (“Tu e eu e os nossos computadores e o quadro por trás de ti e talvez um dos pombos na rua vamos juntar-nos e criar um pequeno colectivo anarquista, e o objectivo deste colectivo anarquista será ler, hum, as cartas de Beethoven.”) Mas o que atrai muitas pessoas nas suas ideias não é tanto a sua irrefutabilidade, mas sim a sua profusão e o seu divertimento. Hans Ulrich Obrist e os artistas Philippe Parreno e Olafur Eliasson usaram todos a mesma palavra para descrever a obra dele: é uma “caixa de ferramentas”, disseram, de onde podem retirar ideias úteis. 

Mas o Antropoceno não vai desaparecer apenas porque um duende corrupto num fato largo está sentado na Casa Branca. O aumento do carbono na atmosfera e do azoto nos solos; a acidificação dos oceanos e a desertificação de terras anteriormente férteis; a capa de isótopos radioactivos (dos testes nucleares) e de plástico (das embalagens de produtos de consumo) que cobre o globo; as espécies que se vão extinguindo – a lista de alterações dramáticas no planeta não termina. As políticas de hoje podem ser mais urgentes do que nunca, mas a necessidade de uma política para o amanhã permanece.

Alguns dias após a eleição presidencial, Morton recuperou o seu sentido de humor e começou a rir acerca do Presidente eleito, “um tipo pequenino com uma imensa pilha de Cheetos amarelos na sua cabeça”. Sim, Morton iria passar os meses seguintes, ou o tempo que fosse necessário, a lutar contra os fascistas no campus universitário e onde quer que ele possa ser ouvido, mas também iria continuar a proclamar a sua pouco usual abordagem à ecologia.

 “Vamos pôr alguma música house”, disse Morton no final de uma das nossas mais longas conversas. “Mesmo que seja verdade que estamos todos lixados, não vamos passar o resto da nossa vida neste planeta a dizer a nós próprios quão lixados estamos.” 

Então o que devemos fazer?

 “Apertar a mão a um porco-espinho e dançar.”

Exclusivo PÚBLICO/The Guardian
Tradução de Eurico Monchique
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Foto Max Burkhalter

Fonte: https://www.publico.pt/2017/07/30/ecosfera/noticia/uma-avaliacao-da-nossa-especie-o-filosofo-profeta-do-antropoceno-1780509

sábado, 29 de julho de 2017

MACONHA NA ADOLESCÊNCI A É UMA FÁBRICA DE LOSERS

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 "Na colônia italiana, é parte da cultura, 
molham o bico (das crianças) no vinho. 
Me perguntam quando comecei a beber, e minha resposta é safada e verdadeira: com três anos de idade. Minha nona entendia que nada era mais eficaz para a prevenção 
de gripe no inverno do que gemada 
com vinho do Porto."

A dependência química é uma doença democrática, define o psiquiatra e psicanalista Sérgio de Paula Ramos, 67 anos. Atinge, na mesma medida, as classes alta, média e baixa. No país, 12% da população têm transtorno por uso de álcool; de 4% a 5%, por consumo de outras drogas; e dependentes de tabaco somam 13% dos brasileiros. É o grande problema de saúde pública deste século, segundo o médico, uma das mais destacadas autoridades no tema.

– E, com a legalização da maconha, tende a piorar o quadro – projeta Ramos, membro da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina e do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas.

O psiquiatra, com mais de 40 anos de carreira, explica que a intervenção precoce é fundamental. Apesar de árduo, o desafio da recuperação, se encarado no início do problema, apresenta chances “fantásticas” de êxito. Ramos está habituado a lidar com jovens e observa as famílias, nos dias de hoje, mais atentas e capazes de reagir quando confrontadas com indícios de que algo não vai bem.

– Os pais não estão mais entrando naquela de “meu filho me disse que a maconha que eu achei na mochila é do amigo dele, e eu acredito no meu filho”. Eles já sabem que a maconha é do filho – exemplifica. – Maconha na adolescência é uma fábrica de losers. Tirar a cabeça da areia e enxergar a realidade é uma conduta que muda o futuro. Não dá para conviver com droga sem prejuízo. Droga nenhuma, em nenhuma dose, faz bem para a saúde. A partir de certa dose, dependendo da idade, começa a fazer mal.

Nesta entrevista, Ramos também revisita casos marcantes de sua trajetória, critica a indústria e a propaganda do álcool e comenta iniciativas de combate ao crack.

Em mais de 40 anos de carreira, o senhor já vivenciou muita coisa.

Me dediquei à clínica e à prevenção. Na prevenção, trabalhei em colégios, na propositura de programas de prevenção de consumo de drogas em diferentes níveis de governo. Sinto alguma frustração em perceber que, no Brasil, quem faz a política sobre drogas é a indústria. A primeira droga que o brasileiro usa, e lamentavelmente cada vez mais cedo, é o álcool. Uma criança que toma álcool aos 12, 13 anos vai experimentar maconha aos 14 e, aos 17, está na cocaína ou em drogas sintéticas. Está muito claro que se deve começar por uma política restritiva do álcool. Calcula-se que 8% do faturamento da indústria da cerveja provém da venda para menor de idade. Então, não se espere que a indústria seja aliada na erradicação do consumo de bebidas alcoólicas por menores. Não conseguimos mobilizar a opinião pública para se opor à indústria do álcool, poderosa, que está sempre mancomunada com a turma da publicidade, com os donos das grandes empresas de comunicação. Proibimos a propaganda do tabaco e deu certo. A propaganda de bebida é toda voltada para o público jovem. Você não vê velho tomando cerveja, você vê jovem, bonito, forte em situação lúdica, praia, festa. Isso vai incutindo na população jovem e de adultos, de modo geral, que não existe a possibilidade de divertimento sem álcool. Negando que, nos levantamentos nacionais, 48% da população adulta não bebe. Colocam na nossa cabeça que todo mundo bebe.

O senhor é contra a liberação da maconha.

Visceralmente contra. Há um movimento mundial, solidamente econômico – não está se discutindo ideologia ou direitos humanos, está se discutindo lucro. É o velho capitalismo selvagem em detrimento da saúde pública. Até três, quatro anos, era “eu acho isso, você acha aquilo”. Agora não podemos mais permanecer no achismo, já temos dados. Após a legalização da maconha no Uruguai, os homicídios praticamente dobraram. O consumo de maconha nos lugares do mundo onde ela foi legalizada praticamente dobrou. E, ao contrário da tese de que enfraqueceria o tráfico, fortaleceu-o. Então você vê que se tenta promover (a liberação da maconha) – às vezes até com o auxílio da mídia – sem uma reflexão. Mas e a população? Qual vai ser o custo desse novo tabagismo?

E qual é o custo para a população?

Terrível. Talvez uma das drogas mais deletérias para jovens seja a maconha. Em jovens, o uso de maconha está associado ao desenvolvimento de esquizofrenia, depressão e queda do rendimento escolar e acadêmico. Maconha na adolescência é uma fábrica de losers. Já existem muitos trabalhos mostrando que, se você usou maconha na adolescência, aos 25 anos vai ter menos diploma universitário, menos relações amorosas estáveis e menos emprego do que quem não usou.

Quais histórias mais o impactaram ao longo desses anos todos?

Vamos pegar três cases. Tínhamos ido ao Deserto do Atacama para fotografar. Na pracinha de São Pedro do Atacama, lá estava um jovem com a aparência de quem não via água há uns quatro meses, cabelo rastafári, as roupas muito sujas, emagrecido, costurando lantejoulas em uma camiseta. Paulista, (contou que era) estudante de Arquitetura da USP, que algumas coisas foram acontecendo na sua vida, começou a ver as coisas com mais clareza e descobriu sua vocação: morar lá e costurar lantejoulas em camisetas. Ele não sabia quem eu era ou o que fazia. Perguntei como era o seu consumo de maconha, ele disse que usava desde os 15 anos, estava fumando três ou quatro baseados por dia. A quantidade havia aumentado quando ele entrou na faculdade. “E quando se deu essa sua clarividência sobre a vocação para ser artesão aqui?”, perguntei. Ele disse que uns dois anos antes, quando aumentou o consumo de maconha. Provavelmente ele era um microgênio, para ter entrado na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), e a maconha o reduziu, com todo o respeito aos artesãos verdadeiros, a um pedinte em uma vila. “Descobri que não dou para os estudos” – não, é a sua praia, sim, não é a praia da maconha. Outra história impactante ocorreu há mais de 20 anos, quando atendi um colega cirurgião. Uma situação absolutamente dramática: ele precisava usar opioide injetável para entrar num estado de tranquilidade e poder operar. Acho que foi a situação mais difícil que atendi na minha vida. O terceiro caso que eu destacaria é o de uma mulher. Quando comecei a trabalhar com álcool, eu tinha 13 homens alcoolistas para cada mulher internada por alcoolismo. Hoje, dependendo do mês, tenho um por um. Tem preços específicos que a mulher paga que o homem não paga: o uso de álcool na gravidez, o favorecimento da entrega do corpo contra a cessão de álcool e drogas para a usuária. O caso de uma mãe que deixava o seu bebê chorando de fome no quarto ao lado enquanto ela estava cheirando na sala, não tem como ficar indiferente a isso...

Houve um caso assim?

Mais de um. Não é só no cinema, isso aí é realidade.

Enxergamos menos a mulher alcoolista.

Porque um dos traços do alcoolismo feminino é a clandestinidade. A mulher de classe média e classe alta, muitas vezes, pede para a empregada ir ao supermercado. Como mostra o filme Quando um Homem Ama uma Mulher (1994), com o Andy Garcia e a Meg Ryan, ela embrulha as garrafas vazias para botar no lixo. Ela bebe escondida do cônjuge. Muitas vezes, é um alcoolismo diurno. Ela esconde garrafas no armário, no meio das roupas, e muito cedo começa a dar problema com os filhos. Às vezes uma criança que é um bom aluno, de repente, começa a ter problemas na escola. Você vai, vai, vai (investigando)... a mãe está bebendo demais.

Qual é o impacto para a vida da criança e do adolescente que crescem convivendo com a dependência química dos pais?

Temos um duplo impacto. Um veio de fábrica, determinado pela genética. Sabe-se hoje que existe um fator de vulnerabilidade – se dois jovens são expostos ao álcool, aquele que tem outros casos de alcoolismo na família estará mais vulnerável do que o outro que não tem. A criança que cresce vendo o pai beber, vendo a mãe beber, vendo que em casa não tem nenhum churrasco, nenhuma festa que não tenha bebida, ela vai aprendendo que consumir álcool é compulsório. E aí terá os dois fatores somados, o ambiental e o genético. E como reação, sobretudo à dependência química dos pais, muitas vezes surge, na adolescência, a síndrome pseudomaturacional. Muito cedo, os filhos são convocados à inversão de papéis – um adolescente de 14, 15 anos de repente tem que cuidar do pai, da mãe. Esse quadro produz jovens muito responsáveis, estudiosos e que têm muitas dificuldades nas relações afetivas – não namoram, não transam, não têm amigos. O intelecto, a cognição vão lá na frente, e os afetos ficam ancorados lá atrás. A vida os convocou para um papel adulto que eles não têm nem cérebro para exercer.

Deparar com o pai ou a mãe frequentemente intoxicados é algo brutal.

Brutal. A dependência química é a doença mais frequente no país e seu efeito é devastador, não só para o paciente, mas para a sua família.

Esse filho tem dois caminhos: desenvolver horror a substâncias químicas ou ter grande risco de embarcar nessa também...

Diria que tem três caminhos. O primeiro é repetir, determinado pela genética e pelo ambiente. Não é o mais comum, mas é bastante frequente. O segundo caminho é isso aí maquiado: “Meu pai é alcoolista, eu não bebo, sou abstêmio, tenho horror disso. Mas fumo três baseados por dia”. Ou seja, trocou seis por meia dúzia, continua na dependência química. E o terceiro caminho é o horror a tudo isso. Adolescentes filhos de dependentes químicos constituem um grupo de risco para vários acometimentos da saúde mental, um deles a própria dependência química.

O que mais destrói relações hoje em dia?

O álcool continua sendo a droga mais usada no Brasil, então destrói mais frequentemente. Mas usuários de cocaína aceleram o processo. O alcoolista às vezes demora 20 anos para desestruturar a família, e o dependente de cocaína faz isso bem mais depressa. A droga é tanto mais dependógena quanto mais rápido e quanto menos duradouro é o seu efeito. O crack começa a fazer efeito em dois minutos e cessa em 25, 30 minutos. É uma droga altamente dependógena. O tabaco, mesma coisa. Em uma, duas horas, já passou o efeito da nicotina e você tem que fumar de novo. O álcool demora um pouco mais para fazer efeito e para passar também. Leva anos de consumo excessivo para ficar dependente.

O que o senhor tem achado das medidas da administração João Doria, em São Paulo, em relação à cracolândia?

Destrambelhadas. Ele pediu uma autorização que já está dada. Desde 2001, existe a figura legal da internação compulsória. Ele não precisava ter pedido autorização, foi um jogo de mídia. Segundo, tenho um levantamento que saiu há pouco da cracolândia de São Paulo: 13% dos frequentadores não usam droga. Dos usuários de droga, não chegam a 70% os que estão no crack. E quase 80% gostariam de se tratar voluntariamente, se tratamento digno fosse oferecido. Achar que todas as pessoas que frequentam a cracolândia precisam de internação compulsória é próprio de quem não conhece a realidade. Você precisa oferecer tratamento segmentado por subgrupo. Quase 20% dos habitantes da cracolândia estão com sífilis, então você tem que dar tratamento específico. Tem tratamento para o grupo que quer se tratar, para o grupo que está com doença sexualmente transmissível, para o grupo que tem família, para o que não tem família e para o que não quer se tratar e não tem família – bom, esses aqui, sim, internação compulsória, altamente defensável do ponto de vista técnico e humano. Mas não mandar todo mundo. Por que o Doria não fez nada? Aí temos que entrar em outro problema muito sério. O movimento antimanicomial foi um câncer com raízes muito sólidas no Rio Grande do Sul. Foram fechados 130 mil leitos psiquiátricos no Brasil nos últimos 20 anos. Não temos nem onde internar dependentes químicos voluntários, que dirá os compulsórios. O que fazer com o dependente químico? Enfiar onde?

É possível recuperar esses pacientes?

Os pacientes compulsórios têm taxa de recuperação menor que a dos voluntários, mas muito maior do que o não tratamento. Não é possível, no século 21, a gente não ter uma alternativa terapêutica para alguém cujo lobo frontal foi comprometido e não consegue, por lesão neuroanatômica, tomar uma decisão sensata sobre a vida. O médico tem que tomar a decisão para salvar a vida dessa pessoa. Senão ela vai pegar aids, sífilis e vai morrer. Onde vamos colocar esses pacientes? É um sério problema, subproduto do movimento antimanicomial. O paciente vai se recuperar se tiver um bom tratamento em que consiga ficar abstêmio e puder dispor de programas sociofamiliares de resgate do vínculo. Costumo dizer que a medicina da dependência química está atrasada. 110% dos pacientes que me procuram gostariam de continuar usando, só que moderadamente. Infelizmente, a medicina ainda não descobriu a pílula da moderação, nem para peso, que dirá para dependência química. Tem que cessar completamente. Existem tratamentos, e grupos de autoajuda como Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos. Tem, sim, chance de recuperação.

Um dependente químico muito alterado pelo uso da substância pode provocar mais repulsa do que compaixão. Muita gente não compreende bem a situação dessas pessoas.

Vamos pegar (o exemplo de) uma casa noturna para materializar o que você está falando. Se você chegar movido a álcool, alegrinho, é bem-vindo, está no clima. Se lá dentro continuar bebendo a ponto de se meter numa confusão, os seguranças te jogam na rua. A sociedade trata o dependente químico mais ou menos desse jeito. No passado, fabricava-se um copo de uísque que vinha com três figuras de bichos. A primeira dose, do lado tinha um macaquinho – alegre, simpático, brincalhão. A segunda, um leão – quer briga. E a terceira, um porco – ou seja, bebe como um porco, vomita, faz o diabo. A sociedade trata receptivamente os dependentes químicos no início da carreira. Depois, vem o rechaço.

Como o senhor orientou seus filhos?

Muito simples: sexo protegido é saúde, droga é doença. Ia levar a festas, buscar em festas. “Pai, mas todo mundo...”, me diziam. “Você não é da família todo mundo.” Tolerância zero. Não pode beber. Se for para beber, fica em casa. Esse é mais um assunto complexo e instigante, o beber em casa. Hoje está bem documentado que é fator de risco. Na colônia italiana, é parte da cultura, molham o bico (das crianças) no vinho. Me perguntam quando comecei a beber, e minha resposta é safada e verdadeira: com três anos de idade. Minha nona entendia que nada era mais eficaz para a prevenção de gripe no inverno do que gemada com vinho do Porto. Sim, temos que reconhecer que faz parte da cultura, mas não podemos dar as costas para os dados, que mostram que a exposição precoce ao álcool é fator de vulnerabilidade. Pais que sabem onde seus filhos estão, com quem e fazendo o que têm menos droga do que os pais que não sabem. E os pais que entram na história do “todo mundo” estão ferrados.

O senhor bebe?

Bebo, todos os dias, dois dedos de vinho. Pego um cálice, me sirvo, fecho a garrafa, ponho na porta da geladeira e sento para jantar. Vivi minha adolescência nos anos 1960 em São Paulo. Sim, experimentei maconha duas vezes na minha vida. (Achei) um matinho fedido. Em momento algum faço a proposta de que o álcool tenha que se tornar uma droga ilícita. Em momento algum faço campanha contra, até porque reconheço que, de cada cinco bebedores, três ou quatro não têm problemas para beber, e pretendo estar dentro dessa estatística. Mas há de se cuidar. Redundância: alcoolismo só dá em pessoa que bebe. Alcoolismo não é uma doença que dá em abstêmios.

OBS. Losers (perdedores)
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larissa.roso@zerohora.com.br
Reportagem Por : LARISSA ROSO
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9855781.xml&template=3898.dwt&edition=31575&section=4572 29/07/2017