sexta-feira, 30 de junho de 2017

MAIOR PROBLEMA DO CRACK É O ESTIGMA



Silvia Zamboni/Valor

                                                                 Ana Cecília Marques, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): 
                                                                               "Nós quebramos o tabu da aids. Temos de quebrar o tabu das drogas"
 

"Uma política completa de drogas inclui prevenção, 
tratamento e repressão."


A Cracolândia de São Paulo é um problema que envolve toda a sociedade civil e será resolvido apenas com a perda do estigma do tema do crack e uma política integrada que inclua a prevenção, tratamento dos dependentes e controle do tráfico de drogas na região. A opinião é da psiquiatra Ana Cecília Marques, de 64 anos, doutora em neurociência e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Dói para o ser humano lidar com questões que são tabu", diz a coordenadora da comissão de drogas da Associação Brasileira de Psiquiatria. A seguir, a entrevista ao Valor.

Valor: A Cracolândia é um problema da prefeitura, do Estado ou de todos nós?
Ana Cecília Marques: De todos nós. Medidas isoladas não resolvem a questão. O problema é muito complexo e só quando tivermos um levantamento muito bem feito da Cracolândia é que saberemos quais medidas que devem ser aplicadas. Essas medidas, integradas, é que formarão uma política eficiente de combate às drogas.

Valor: Qual o primeiro passo?
Ana Cecília: Um levantamento detalhado da situação naquela região. Em São Paulo já temos alguns estudos feitos por órgãos como o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas [Cratod], o Departamento de Narcóticos da Polícia Civil [Denarc] e outros. Esses estudos devem ser colocados na mesa, discutidos por todos os agentes envolvidos e, a partir daí, ser preparada uma ação efetiva, que deve ser múltipla e não isolada.

Valor: O que é importante nesses levantamentos?
Ana Cecília: No estudo feito pelo Cratod, dos 800 analisados metade deles têm família. Por que preciso entrar na Cracolândia pensando só numa internação compulsória, se esses 50% têm família? Eles não perderam todos os vínculos. A função do agente social, nesse grupo interdisciplinar, é buscar essa família e prestar todo o apoio necessário. 

Valor: A senhora defende a internação compulsória em determinados casos. Quais?
Ana Cecília: A dependência de drogas, quando não é tratada, deteriora o cérebro. É uma minoria que está nesse estágio avançado, mas que pode evoluir até à morte. A maioria pode ser tratada e a doença estabilizada sem a necessidade de internação compulsória, que necessita de critérios para ser aplicada, tais como: perda de todos os vínculos sociais, risco para a própria vida e doenças crônicas complexas.

Valor: Qual o papel da família e como ela deve agir para recuperar o dependente de crack? 
Ana Cecília: O dependente perde motivação, juízo crítico da realidade e a capacidade de resolver problemas. Ele não consegue se tratar sozinho. A droga atinge a área mais nobre do cérebro. Como a pessoa vai se proteger, perceber a doença que ela adquiriu?  Como ela vai perceber tudo isso se ele não tem um espelho, que é o seu entorno, a família e os amigos?

 "Com a família tratando junto, e é preciso mostrar 
isso para ela, todos os resultados são melhores. 
Infelizmente ainda não temos isso 
nos nossos serviços."

Valor: Mas em muitos casos para a família é difícil cuidar do dependente. Ela também tem de ser ajudada?
Ana Cecília: Sem a menor dúvida. É aí que deve entrar o Estado, para oferecer um serviço com equipes multidisciplinares com objetivo de  atender inclusive a família. Com a família tratando junto, e é preciso mostrar isso para ela, todos os resultados são melhores. Infelizmente ainda não temos isso nos nossos serviços. 

Valor: Há tendência de comparações da questão das drogas com o que foi feito em outros países, como a Alemanha e Holanda. Isso é um erro?
Ana Cecília:
É um erro se imaginarmos de maneira pragmática: pegar lá e colocar aqui. São realidades diferentes, inclusive de recursos. Não adianta pegar uma medida em prática na Holanda, que cabe dentro do Rio de Janeiro, e achar que vai servir para o Brasil. Não vai. Mas é lógico que temos de olhar para tudo, aprender com eles.

Valor: A Cracolândia é um problema que se arrasta há cerca de três décadas. Desde então, todos os prefeitos e governadores apontaram soluções, elaboraram ações e o problema só cresceu. O que deu errado?
Ana Cecília: Deu errado essa visão cega, como se eu tivesse um olho que só enxerga um pedacinho do fenômeno. Se eu só ofereço trabalho e  tratamento, mas não ofereço condições dignas do dependente sair dessa situação de rua, ele não vai conseguir superar. O mesmo ocorre quando eu ofereço um trabalho e um quarto, mas não obrigo ele a se tratar de uma doença crônica que é fatal. E como ele vai trabalhar se eu não controlo a entrada da droga no lugar onde ele vive? A droga é vendida ali como batata. Por isso que também tem de ter o agente policial na ação. Porque nem todo mundo lá é dependente, tem gente que está traficando e sabe muito bem o que faz. Por isso o problema da Cracolândia é de todos nós.

Valor: Qual o papel da sociedade civil neste contexto?
Ana Cecília: É importantíssimo participar pressionando seus representantes políticos e cobrando experiências mais efetivas. Uma política completa de drogas inclui prevenção, tratamento e repressão. Sempre que eu for lá só para reprimir o efeito será zero. Se for só para tratar, o efeito também será zero. Se for só para aconselhar e não oferecer tratamento, zero novamente. Sem esse tripé, não conseguiremos avançar. 

Valor: Como a senhora analisa as ações mais recentes da Prefeitura de São Paulo?
Ana Cecília: O erro persiste. Não o erro, mas o desconhecimento sobre o tema. Eu não culpo os gestores públicos. Temos uma política nacional de combate às drogas que inclui um capítulo maior, o da prevenção. Esse trabalho passa por capacitação e informação para os gestores. Tem de haver repressão, mas tem de haver saúde e toda essa parte social de prevenção. E é preciso integrar tudo isso. Senão não vai funcionar. Antes de entrar de novo na Cracolândia, reúna os atores envolvidos, traga todos os levantamentos para a mesa para que possamos enxergar o fenômeno como ele é. A partir daí monte uma retaguarda com tudo que será necessário e, aí sim, vamos para a ação. Não é o que está acontecendo, mais uma vez. O risco de não dar certo e o problema aumentar é grande. 

Valor: O crack é um caminho sem volta?
Ana Cecília: De jeito nenhum. Tenho pacientes que estão há dez anos sem usar crack, estáveis, trabalhando e cuidando das suas famílias. É uma dependência como outra qualquer, com suas características específicas. E temos de estudar uma coisa muito importante: como os jovens se iniciam nas drogas. O crack não é a primeira droga de experimentação. Hoje no Brasil nós temos três drogas de entrada no Brasil: álcool, tabaco e maconha. O crack vem depois. 

Valor: As pessoas também precisam perder o estigma da Cracolândia?
Ana Cecília: Isso é fundamental. Nossa principal barreira é o estigma da questão das drogas em geral. A discussão começa por aí. Inclusive a discussão entre o técnico e o gestor, que tem de tirar a ideologia e a religião da discussão. É uma doença do cérebro e mata se não cuidarmos. E como a gente cuida? Só com tratamento? Não. Temos de tratar como uma política complexa e começar a baixar o preconceito, o estigma. Como vamos cuidar disso? Prevenção, tratamento e controle da oferta, que é a repressão. Dói para o ser humano lidar com questões que são tabu. Não pode ser tabu. Nós quebramos o tabu da aids. Temos de quebrar o tabu das drogas.
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Reportagem por Marcus Lopes de São Paulo
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5021546/maior-problema-do-crack-e-o-estigma 30/06/2017


quinta-feira, 29 de junho de 2017

Ruy Fausto: Hegemonia de esquerda não pode ser mais do PT

RUY FAUSTO

NOVOS CAMINHOS NA POLÍTICA BRASILEIRA

Entrevista com Ruy Fausto
Professor emérito de Filosofia da USP
Para Ruy Fausto, sigla deve se articular com outras frentes e partidos,
como o PSOL, nas eleições 
do ano que vem
É de esquerda e critica o chavismo, trotskismo, maoísmo e o marxismo. Repudia todas as formas de populismo, totalitarismo e adesismo – às quais tem dado o nome de “patologias da esquerda”.
Aos 82 anos, o professor emérito de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Ruy Fausto, radicado na França, transformou o artigo que publicou na edição da revista piauí [clique aqui para ler este artigo] de outubro passado no livro Caminhos da Esquerda: elementos para uma reconstrução (Editora: Companhia das Letras), a ser lançado em 3 de julho.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Fausto defende o fim da hegemonia do PT no campo da esquerda e a formação de uma frente única progressista para a eleição presidencial de 2018 com, por exemplo, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) e o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ).
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
ESTADÃO - Há uma hegemonia de direita?
Ruy Fausto: No mundo, há uma ofensiva grande da direita que surgiu, principalmente, com o fim da União Soviética. Assusta-me muito, particularmente, a extrema direita, que tem uma linguagem muito violenta. Tem ainda a situação brasileira, com o PT, que acabou fortalecendo a direita. A política petista trouxe maior distribuição de renda, mas também houve uma corrupção absolutamente intolerável. Ainda assim, nada justifica o impeachment (da presidente cassada Dilma Rousseff), que foi um desastre. Mas a direita se lançou nessa aventura, conseguiu e isso permitiu que eles levantassem a cabeça. A corrupção foi um discurso bem apropriado pelos movimentos de direita.
Como o senhor avalia as críticas ao que o PT fez enquanto ocupou o governo?
Ruy Fausto: Um partido de esquerda que se pretende democrático tem de ter lisura administrativa absoluta. Há uma política de “fins justificam os meios”. A lição que se tira no PT hoje é: “nós não fomos suficientemente oportunistas”. Isso é um desastre total e tem intelectual saudando isso aí. Certamente faltou um mea-culpa. Nesse sentido, os melhores são o Tarso Genro (ex-governador do Rio Grande do Sul), o José Eduardo Cardozo (ex-ministro da Justiça no governo Dilma). O PT vai continuar a existir. Mas o caminho é de queda, para haver uma renovação.
Lula seria um bom candidato?
Ruy Fausto: Acho que não. Primeiro, acho muito difícil que ele concorra, a situação jurídica é muito difícil. Eu não desejo a condenação do Lula, embora ache difícil ele conseguir evitar isso. Desejo, sim, que ele possa legalmente se candidatar, mas não acho que, nas condições atuais, ele seria um bom candidato para a esquerda. Acho que os melhores nomes podem vir do PT, do PSOL, ou mesmo da sociedade civil.
O senhor acredita que a esquerda deveria sair unificada em 2018?
Ruy Fausto: Sim, é essencial que se crie uma frente única de esquerda, fazer uma espécie de fórum desses movimentos independentes. Não é para ter uma ruptura total com o PT, mas a hegemonia não pode mais ser dele, no campo da esquerda. Isso também não significa que a gente vá ganhar em 2018. A gente tem de ter uma boa campanha. E, aí, surgem possíveis nomes. O Fernando Haddad (ex-prefeito de São Paulo), por exemplo, é bom sujeito, competente, não é corrupto. Outro nome é o Marcelo Freixo, que me parece um sujeito bom. Acho que talvez o Fernando Haddad possa sair como candidato ou como vice. Às vezes, um dos melhores do PT com um dos melhores do PSOL poderia funcionar.
Mas Fernando Haddad não conseguiu se reeleger em São Paulo e Marcelo Freixo também não foi eleito prefeito no Rio na eleição do ano passado...
Ruy Fausto: O Haddad, eu não estive aqui (no Brasil) durante toda a sua gestão na Prefeitura, mas tenho a impressão de que fez um bom governo. Ele teve uma péssima campanha, foi muito atacado e avaliou mal os movimentos das ruas. Já o PSOL é até meio de extrema esquerda. Há muito essa ideia de que se deve ir mais à esquerda – como se a luta política fosse uma espécie de escala. Você pode até dizer isso, mas redefina a esquerda. Enfim, o PSOL tem seu mérito por ter criticado a corrupção e as alianças sem escrúpulos do PT, mas ainda é de extrema esquerda. Alguns flertam com chavismo e castrismo. Mas, na verdade, é um partido muito variado.
Existem ainda outros nomes que surgem: o ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes (PDT), o Guilherme Boulos, líder do MTST, e mesmo a ex-ministra Marina Silva (Rede).
Ruy Fausto: A Marina, eu respeito a biografia, mas seu programa econômico não é bom e ela não se move muito bem na política. O Ciro é um sujeito que fala muitas verdades, mas fala demais. O Boulos não conheço de perto. Ele certamente faz um trabalho muito importante na periferia, mas ainda tem um discurso muito bolivariano, e acho que isso tem de mudar. Devemos priorizar um programa mais democrático.
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Fonte: O Estado de S. Paulo – Política – Domingo, 25 de junho de 2017 – Internet: clique aqui.
Reportagem por  Marianna Holanda

A cara oculta dos millennials: inseguros e viciados em trabalho

millenials
Mulher experimenta seu novo Galaxy S8. REUTERS

Adeus ao respeito aos protocolos e à visão da experiência como capacidade. Bem vindo a sentir-se indispensável e mártir

Nós, os millennials, pioneiros na revolução tecnológica que mudou tudo, criamos uma nova forma de nos relacionar, transformamos os hábitos de consumo e também nossa atitude em relação ao trabalho. Entre hashtags e retuítes, transferimos a insegurança e o narcisismo que dizem termos para o nosso ambiente profissional. Diferentemente das gerações anteriores, para as quais a experiência demonstrava capacidade, e o mais importante eram a hierarquia e os protocolos, agora muitos dos jovens entre 19 e 30 anos questionam as regras, empreendem e se sentem autênticos mártires do seu trabalho. Consideram-se indispensáveis, e 57% deles precisam que seus chefes e seus companheiros estejam conscientes do seu compromisso e esforço, a tal ponto que se sentem culpados por tirar férias. Estas são algumas das conclusões do estudo Os Mártires do Trabalho, publicado pela organização Project: Time Off, com a participação de quase 6.000 profissionais em tempo integral.

Embora nosso compromisso com o emprego seja uma característica comum às gerações anteriores, há algo que nos diferencia dos baby boomers e da Geração X: nosso egocentrismo. Tomás Chamorro, professor de psicologia profissional nas Universidades de Londres e Columbia, diz que, nos anos 1950, 12% dos alunos do ensino médio concordavam com a seguinte afirmação: “Sou uma pessoa importante”; na década de 1990, esse índice subiu para 80%. “É absolutamente factível que essas diferenças sejam atribuídas a diferentes níveis de narcisismo. Achar-se o centro do mundo, insubstituível e que ninguém pode fazer seu trabalho é uma percepção errônea da realidade e dá sinais do senso de grandiosidade tão característico dos millennials”, afirma Chamorro.

Quando levamos essa situação emocional ao mercado trabalhista, começa o drama. “Estamos pondo esses garotos em ambientes corporativos que não estão lhes ajudando a aprender a cooperar nem a superar a necessidade de recompensa instantânea”, afirma o autor de livros sobres os millenials, Simon Sinek numa entrevista. Nós, millennials, somos mais de 140 caracteres do que de emails detalhados, e isso também se reflete em nosso ofício. Crescemos na sociedade do imediatismo: compramos na Amazon, e o pacote chega ao dia seguinte, vemos Game of Thrones de uma só vez, paqueramos via Tinder, sem ter nenhum trabalho. “Vocês podem conseguir tudo o que quiserem na hora, tudo, menos a satisfação profissional e as relações significativas. Esses processos são lentos, serpenteantes, incômodos e desordenados”, observa Sinek. Não sabemos administrar a espera e, quando nos obrigam a ela, surge em nossa cabeça um enorme #WTF, e nos sentimos intranquilos e pequenos.

Laura Ponsa, de 27 anos, millennial convicta e publicitária com emprego há um ano, sente-se completamente identificada com essa situação. "Cresci achando que depois de estudar eu poderia escolher onde trabalhar, e com a crise me custou muito mais do que eu imaginava encontrar um emprego com boas condições”, diz. “Depois de assinar o contrato, eu nem sequer tinha perguntado pelas minhas férias, simplesmente foi algo em que não pensei. Quando soube que teria um mês, achei muito. Até agora, vinha emendando um contrato no outro e não tive tempo nem dinheiro para descansar.”

Seu compromisso em cumprir pressões – autoimpostas, admite – algumas vezes a levou a se sentir mal por pedir dias de folga, mas ela salienta que não se considera narcisista. “Eu achava que minha chefa pensaria que eu estava me esquivando e não era suficientemente boa.” Katie Denis, responsável pelo estudo que retrata os millennials como mártires, explica essa sensação: “Muitos procuravam trabalho durante a recessão, e agora têm mais medo de perderem o emprego; para eles o normal é se desenvolver numa economia frágil”. Afirma que tiramos menos férias porque nos sentimos inseguros e temos medo de que assim pareçamos ser facilmente substituíveis. “20% temem que isso lhe custe o emprego”, afirma Denis.

Os nativos digitais queremos “gerar impacto” – nos sentirmos úteis, deixarmos um rastro, sermos imprescindíveis –, o wi-fi é a nossa fonte de vida, e hiperventilamos se a bateria das nossas telas cai a menos de 10% e ainda nos faltam horas para chegar em casa. Nossos interesses contrastam com os de nossos pais, membros da Geração X e do baby boom, quando as necessidades tinham mais a ver com subsistir, tentar viver melhor ou simplesmente ter vida pessoal. “Tivemos tudo, e tivemos mais fácil, não precisamos nos preocupar em sobreviver, e isso nos deixa muitíssimo tempo para pensar e nos afogar em uma ansiedade vital que não sabemos administrar”, diz Laura Ponsa.

Embora nosso presente pareça ruinoso, há solução e, segundo Sinek, boa parte dela está nas mãos da indústria. “Agora temos a responsabilidade de compensar o déficit e de ajudar esta geração assombrosa a construir sua confiança, a aprender a serem pacientes e a desenvolverem suas habilidades sociais”, conclui. Enquanto isso, nós, os millennials, tuitamos, compartilhamos vídeos virais e esperamos com inquietação nossa dose diária de curtidas para apaziguar essa coisa que mexe com a gente cada vez que subimos uma foto no Instagram. Também somos críticos e comprometidos, e a geração mais preparada e com mais desemprego da história. Os nativos digitais representarão 70% da força de trabalho do mundo em 2025, mas, para conseguir esses empregos, parece que nos propusemos a sacrificar nosso descanso e a bateria de todos os nossos dispositivos móveis.
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Reportagem por  M. Victoria S. Nadal- Madrid
Fonte:  http://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/05/economia/1491401697_499027.html?rel=mas - Acesso 29/06/2017

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Nevoeiro ou labirinto?

Roberto DaMatta*

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Saindo de uma monarquia patriarcal e escravocrata, transferimos aos cargos republicanos conteúdos aristocráticos da monarquia

Somos obrigados a falar uma só língua por um motivo óbvio: se cada indivíduo inventasse seu código de comunicação, ressuscitaríamos Babel. Múltiplas línguas e éticas engendram o caos e, no limite, a violência. É — como advertiu FH, mais como observador do que como participante — algo gravíssimo.

Línguas e éticas delineiam limites. Num nível profundo, são elas que nos falam. Roland Barthes dizia que “a língua não é nem reacionária nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista.” Ninguém se lembra de ter aprendido sua língua materna, mas todos recordam suas lições de francês, italiano ou mandarim.

Sem uma única língua não se pode exercer o sumo da democracia: discordar. E sem reclamação e debate honesto, vivemos o nevoeiro que resulta de um imenso labirinto legal. Esse marco do nosso sistema político.
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Nesse plano há pontos capitais mas esquecidos. Eu posso ser contrário a um sistema político, mas devo ser honesto nos meus propósitos. Não posso ser um defensor dos pobres enriquecendo pelo compadrio com capitalistas; não posso ajudar a depor uma rainha sendo um rei suspeito dos mesmos delitos.

Se nos inspirarmos em Shakespeare, concordando que o mundo é um palco, diríamos que o texto dos dramas históricos é a moralidade ou a ética inspiradora do drama. Você só pode ser um personagem se tiver o propósito de sustentar (como mocinho, bufão, traidor ou bandido) a cena, levando-o ao seu arremate. Se, contudo, o seu objetivo era entrar na peça com a intenção de roubar a qualquer custo todas as cenas e, em seguida, destruir o palco e o teatro matando o autor da peça, então não há o que discutir.
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Essa analogia ajuda a enxergar a gravíssima crise que hoje vivemos. O colapso tem como centro um sistema de papéis amparados por uma estrutura burocrática destinada a manter privilégios. Meu lado antropológico sugere que o nosso republicanismo a usa e se recusa a levar avante os seus valores. Saindo de uma monarquia patriarcal e escravocrata, transferimos aos cargos republicanos os conteúdos aristocráticos vigentes na monarquia. A República não foi pactuada, ela foi “proclamada”. Um dado óbvio da crise é nossa dificuldade de unidade, de um acordo mais profundo do que o ganhar ou perder no Parlamento. Não chegamos nem a discutir qual seria o mínimo denominador nacional. Seria o mérito? A amizade? O cargo legalmente embasado nas piruetas jurídicas?

Onde seria ancorada a nossa vida pública? Nas biografias que desmoralizam os cargos; ou nos cargos que desmoralizam seus atores? Nossas práticas sociais destroem qualquer racionalidade. A vantagem de uma língua comum é poder discordar. A de uma moralidade é o controle do jogo político que não pode mais continuar fundado nos oportunismos do vale-tudo. Teoricamente, o interesse político esbarra na lei. Mas e quando ele deseja ser a própria lei?
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Qual seria a unidade de um povo (feito até anteontem de senhores e escravos; e de nobres e comuns) se até hoje alguns podem fazer o que bem entendem ignorando a igualdade? Todos são iguais, mas os inúmeros foros privilegiados transformam a igualdade em desigualdade.

O sistema legaliza, sem legitimar, um sistema de cargos obtidos numa competição eleitoral na qual — eis a imoralidade — os vencedores traem abusivamente seus projetos e promessas. O resultado é uma nomenclatura investida de desigualdades jurídicas, a qual não é mais aceita pela sociedade consciente que é ela quem paga o preço da pirâmide. A racionalidade do mercado inundou a sociedade e não se pode mais disfarçar o quanto se paga pela ética do compadrio, que impede passar a limpo os conflitos motivados pela aliança entre poder e dinheiro.

E o pior é descobrir que, mesmo quando descobrimos que as mais altas autoridades da cidade, do estado e do país se transformaram em assaltantes das instituições que deveriam governar, não chegamos ao fundo do poço.
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Impermeáveis aos requisitos racionais do diabolizado capitalismo cuja ética engendrou e estimulou o direito à diferença, à discórdia, à oposição, à competição e ao mérito, confundimos muitos direitos com legitimidade, muitas polícias com o controle do crime e inúmeros tribunais com acesso igualitário à Justiça. O resultado não antecipado de tantos controles é uma contaminação patológica, na qual se salvam todos os interesses, menos o do povo brasileiro.

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*Roberto DaMatta é antropólogo
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Um desafio:como entender a aterradora falta de consciência dos corruptos

Leonardo Boff* 
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Como fica a consciência dos corruptos que roubam milhões dos cofres públicos ou os empresários que superfaturam por milhões de reais os projetos e pagam propinas milhionárias para agentes do Estado? Pior ainda: como fica a consciência daqueles perversos que desviam centenas de milhões de reais da saúde? E aqueles desumanos que falsificam remédios e condenam à morte aqueles que deles precisam? Sem esquecer os desvergonhados que roubam da boca dos escolares a merenda, sabendo que para inúmeros pobres representa a única refeição do dia? Muitos desses corruptos são apenas denunciados. E fica por isso mesmo, rindo à toa. Não raro são cristãos e católicos que por seus crimes continuam mantendo Cristo na cruz nos corpos dos crucificados deste mundo.

Para entender esta maldade temos que considerar realisticamente a condição humana: ela é simultaneamente dia-bólica e sim-bólica, compassiva e perversa. No linguajar concreto de Santo Agostinho, em cada um de nós há uma porção de Cristo, o homem novo, e uma porção de Adão, o homem velho. Depende do projeto de nossa liberdade dar mais espaço a um ou a outro. Assim pode surgir uma pessoa honesta, justa, amante da verdade e do bem. E pode crescer também uma pessoa maldosa, corrupta e distante de tudo o que é bom e justo.

Mas não precisava ser assim. No mais profundo de nós mesmos, não obstante a ambiguidade referida, vige uma primeira natureza que se expressa por uma bondade fontal, por uma tendência para o justo e o verdadeiro. Quanto mais penetrarmos na nossa radicalidade, mais nos damos conta de que essa é a nossa essência verdadeira, a nossa natureza primeira. Mas sem sabermos como e porquê, ocorreu algo em nosso processo antropogênico – desafio permanente para os pensadores religiosos e os filósofos de todas as tradições – que fez com que a nossa natureza primeira decaísse e se pervertesse. Immanuel Kant constatava que somos um lenho torto do qual não se consegue tirar uma táboa reta.

Criamos, em consequência, uma segunda natureza feita de maldades de todo tipo. Esta terminologia se encontra já em Santo Agostinho, em Santo Tomás de Aquino e posteriormente retomada por Pascal e por Hegel. Ela está presente em todas os povos e instituições e, num certo nível, em cada um de nós. Ela resulta da sequência continuada e uniforme de nossos maus hábitos, gerando uma verdedira cultura de distorções. É a cultura do negativo em nós. É o reino da corrupção que se naturalizou.

Personalizemos esta segunda natureza. Se alguém se habituou a mentir, a enganar a roubar, a corromper ativamente e a se deixar corromper passivamente, acaba criando em si esta segunda natureza. Rouba sem se dar conta de que esta sua prática é perversa e anti-ética porque prejudica os outros ou o bem comum. Pratica tudo isso sem culpa e sem remorsos, porque nele a corrupção virou natural, uma segunda natureza. Os corruptos continuam caras-de-pau como se pode observar, que emagrecem, não pela má consciência que os corrói por dentro, mas pelas péssimas condições carcerárias,.

Além deste dado da condition humaine decadente, o sociólogo Jessé Souza no livro a sair A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato nos fornece um dado de nossa própria história: a escravidão. Esta coisificava os escravos considerando-os “peças”, objetos de violência e de desprezo. ”Sua função era vender energia muscular, como animais”(J.Souza). Esse desprezo foi transferido aos nordestinos, aos pobres em geral e aos LGBT entre outros discriminados.

Nos tempos recentes, boa parte dos endinheirados se sentiu ameaçada pela ascensão destes condenados da terra; começou a se irritar porque os via nos shoppings centers e nos aeroportos; para eles bastava o ônibus e jamais o avião. Aqui já não se trata de corrupção financeira, mas de corrupção das mentes e dos corações, tornando as pessoas desumanas e sem sentido de solidariedade.

Finalmente, por uma mudança de rumo de nossa política judicial ante os crimes de colarinho branco, os donos de grandes empresas e outros políticos que fizeram, em grande parte, suas fortunas pela corrupção, estão sentido o peso da justiça, o rigor das prisões e o escárnio publico. Estão atrás das grades, fato é inédito em nossa história.

O sofrimento sempre dá duras lições. Oxalá, pelos seus  padecimentos, a primeira natureza, a consciência, venha à tona e se descubram reféns da segunda natureza decadente que eles mesmos criaram. Mudem de sentido de vida e devolvam o dinheiro roubado. E como teólogo digo: no momento supremo de suas vidas, enfrentarão, trêmulos, os rostos das vítimas que fizeram por causa de suas corrupções e que morreram antes do tempo, na verdade, foram por eles assassinadas. As fortunas não os salvarão. E então como ficarão?
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* Leonardo Boff é articulista do JB on line, teólogo e filósofo, escreveu com Anselm Grün o livro O divino em nós 2017, Vozes.
Fonte:  https://leonardoboff.wordpress.com/2017/06/27/um-desafiocomo-entender-a-aterradora-falta-de-consciencia-dos-corruptos/
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terça-feira, 27 de junho de 2017

Gianfranco Ravasi: A técnica avança rápido demais e vai mudar nossa alma.

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"A tecnologia avança rápido demais e oferece-nos novas possibilidades com uma velocidade que a teologia e os outros canais de conhecimento humano não conseguem acompanhar". 

O cardeal Gianfranco Ravasi, 74 anos, teólogo, estudioso bíblico, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, porém não é um homem que se dê por vencido. Com o "Cortile dei Gentili" (Pátio dos Gentios) e a "Mesa redonda permanente para o diálogo entre ciência e religião" está à procura de "aliados" entre aqueles que ainda têm fé no homem e em seu pensamento. "Ateus, cientistas, e mesmo aqueles que ainda acreditam nas ideologias. Não é mais o momento de contraposições, mas de diálogo".

Na última reunião da "Mesa redonda" tratou-se sobre inteligência artificial e da relação entre seres humanos e humanoides.

A entrevista é de Elena Dusi, publicada por Repubblica, 25-06-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Qual o objetivo desse diálogo entre fé e ciência?
Religião e ciência são muitas vezes consideradas magistérios independentes, duas linhas paralelas. E do ponto de vista do método, é correto que seja assim. Mas compartilham o mesmo sujeito e o mesmo objeto. Precisam se encontrar, mais cedo ou mais tarde.

Ciência e fé são duas tonalidades da mesma música?
O conhecimento do mundo por parte dos seres humanos ocorre através de muitos canais: a ciência e a racionalidade, mas também a teologia, a estética, o amor, a arte, o jogo e o simbolismo, que é inclusive a primeira forma de buscar conhecimento quando somos crianças. Perdê-los ou simplificá-los acarreta um empobrecimento. E, infelizmente, isso é o que está acontecendo hoje.

Por culpa da ciência?
Não, por culpa da ignorância. Estamos vivendo uma globalização da cultura contemporânea dominada apenas pela técnica ou pela pura prática. Há, por exemplo, uma superprodução de dispositivos tecnológicos frente aos quais não conseguimos elaborar uma atitude crítica equilibrada. Encontramo-nos em uma era de bulimia dos meios e atrofia dos fins. A formação escolar e universitária quase não se ocupa com os aspectos da antropologia geral. Assim, o ensino da arte, literatura, grego, latim e filosofia vão aos poucos sendo reduzidos.

Com que consequências?
Sentimo-nos muitas vezes esmagados, achatados por uma única dimensão. O uso massivo da ciência e da tecnologia produziu em nós uma mudança que não é apenas de superfície. Quando se aprende a criar robôs com qualidades humanas muito evidentes, quando se desenvolve uma inteligência artificial, quando se manipula diretamente o sistema nervoso, não estão sendo feitos apenas grandes avanços tecnológicos, em muitos casos valiosos no âmbito terapêutico médico. Também está sendo feito um verdadeiro salto antropológico, que atinge questões como liberdade, responsabilidade, culpa, consciência e, se quisermos, alma.

A ciência avança rápido demais?
Não é tanto a ciência, quanto a tecnologia: é rápida e nos oferece novas possibilidades com uma velocidade que a teologia e os outros canais do conhecimento humano não conseguem acompanhar. Por esse caminho podemos acabar em uma civilização midiática e digital que está se tornando totalizante. Falamos de transumanismo como um dos medos do futuro, mas de certa forma já começou. Os nativos digitais são funcionalmente diferentes em relação aos homens do passado. Muitas vezes invertem tanto a relação entre real e virtual, como a forma tradicional de considerar o que é verdadeiro e o que é falso. É como se estivessem dentro de um jogo digital. Além disso, o homem, que sempre foi um contemplador e guardião da natureza, hoje se tornou uma espécie de cocriador. A biologia sintética, a criação de vírus e bactérias que não existem na natureza é uma expressão dessa tendência. Todas essas operações têm implicações éticas e culturais que devem ser consideradas.

Ciência e fé, como podem colaborar?
Entre espiritualidade e racionalidade, entre fé e ciência, pode se instaurar uma tensão criativa. Já falava João Paulo II que a ciência purifica a religião da superstição e a religião purifica a ciência da idolatria e dos falsos absolutos.

"Uma metáfora do filósofo Kierkegaard parece-me a mais apropriada aos dias de hoje: 
o navio acabou nas mãos do cozinheiro de bordo 
e as palavras que o comandante transmite 
com seu alto-falante não são mais a rota, 
mas o cardápio de amanhã."


A ecologia é um ponto de encontro?
Os acordos de Paris estão agora passando por dificuldades. E muitos "laicos", inclusive, passaram a se identificar com a Laudato si’ do Papa Francisco, que acredito está se tornando um ponto referencial para a questão ecológica. Por outro lado, está escrito nas primeiras linhas do Gênesis que Deus confiou a terra ao homem para "cultivá-la", mas também para "cuidá-la”.

Os seus encontros com os laicos já existem há alguns anos. Que balanço pode ser feito?
O fundador do cristianismo, Jesus de Nazaré, era um laico, não um sacerdote judeu. Ele não hesitou em formular um princípio capital: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". A contraposição entre clericais e anticlericais já foi agora ultrapassada. Alguns aspectos do secularismo são comuns a todos nós e a teologia há muito deixou de considerar a filosofia e a ciência apenas como suas coadjuvantes. Os problemas são outros. Simplificação, indiferença, banalidade, superficialidade, estereótipos, clichês. Uma metáfora do filósofo Kierkegaard parece-me a mais apropriada aos dias de hoje: o navio acabou nas mãos do cozinheiro de bordo e as palavras que o comandante transmite com seu alto-falante não são mais a rota, mas o cardápio de amanhã. É indispensável uma reproposta por crentes e não crentes dos grandes valores culturais, espirituais e éticos como um choque positivo contra a superficialidade, agora que estamos vivendo uma virada antropológica e cultural complexa e problemática, mas certamente também estimulante.
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/569028-a-tecnica-avanca-rapido-demais-e-vai-mudar-nossa-alma-entrevista-com-gianfranco-ravasi 27/06/2017

segunda-feira, 26 de junho de 2017

MARX NÃO MORREU



Thomas Frey / Picture-Alliance/DPA/AP
 Esculturas de Ottmar Hoerl; ideias básicas da crítica marxista 
ao capitalismo estão no cotidiano do século XXI

"O Capital", monumental obra sobre a gênese do capitalismo, completa 150 anos e volta a ser estudado 
em tempos de crise econômica e política."

Só 11 pessoas foram à cerimônia fúnebre de Karl Marx, em 1883. "O Capital", a obra que consumira duas décadas da sua vida, estava inacabada e causara-lhe tantos sofrimentos e privações que ele se referia ao trabalho como "o maldito livro". Foi escrito em tempos de convulsão como o atual século XXI, em que tudo que é sólido parece se desmanchar no ar. Às guerras napoleônicas, sucederam-se revoluções pela Europa (França, Itália, Alemanha, Império Austríaco). O capitalismo nascia na Inglaterra e a moderna indústria revolucionava o mundo.

"As inovações ultrapassavam todas as grandes civilizações do passado. Em nome do livre comércio, as fronteiras nacionais foram derrubadas, os preços caíram, o planeta tornou-se interdependente e cosmopolita. Bens e ideias agora circulavam em todos os lugares. Mas tinha um problema. A riqueza não era igualmente distribuída." Parece banal? Agora, talvez, mas essa citação apareceu pela primeira vez no "Manifesto Comunista", um panfleto de 23 páginas distribuído em Londres em 1848, e reapareceu em 1887 em "O Capital", a monumental obra sobre a gênese do capitalismo.
O seu autor, Karl Marx (1818-1883), às vésperas de chegar ao bicentenário de nascimento, não errou. A obra da sua vida completa 150 anos em setembro e, sem notar, incorporamos no falar cotidiano do século XXI as ideias básicas da crítica marxista ao capitalismo. "As pessoas sabem que há desigualdade social, sabem que há luta na distribuição dos recursos segundo a posição de poder de cada um na sociedade. Estou usando outra linguagem, mas isso é luta de classes,
e é disso que as pessoas falam", afirma o ex-ministro da Cultura e professor Francisco Weffort, referindo-se ao conflito de interesses entre os "detentores do capital e os que vendem a força de trabalho".
O reconhecimento da presença de interesses econômicos e sociais no dia a dia não transforma ninguém em marxista, mas é Marx - concordam os estudiosos - a maior referência acadêmica e intelectual a deitar raiz no fenômeno da desigualdade e do conflito social. "Esses pensamentos radicais, sobre as raízes do mundo moderno, não são superáveis facilmente. É o caso de Marx e de Max Weber [1864-1920], eles tiveram a coragem de pensar o início de tudo", diz Weffort.

Ao redor do mundo, universidades, "think tanks" e editoras aproveitam as duas datas comemorativas para revisitar o legado do filósofo e revolucionário do século XIX, inspiração para os movimentos de esquerda e assombração para os governos autoritários de direita, já declarado morto e ressuscitado em igual número de vezes.

Imagno/Getty Images

O filósofo alemão Karl Marx referia-se a "O Capital" (1867), 
que consumiu 20 anos de sua vida, como "o maldito livro"


Quando a crise financeira de 2008 explodiu na Europa e nos Estados Unidos, "O Capital" pulou para as listas de mais vendidos: o primeiro livro a descrever as crises periódicas do capitalismo ganhava novo sentido. O interesse trazia Marx de volta ao debate público, depois de um longo período em que seu pensamento era olhado com desprezo por causa  do colapso da União Soviética e do fracasso dos regimes ditos socialistas no Leste da Europa. Ao decretar o fim da história, enterrava-se junto e misturado o marxismo e "O Capital".

"Pela primeira vez está sendo publicada a obra original de Marx em sua totalidade", diz o matemático e filósofo alemão Michael Heinrich, professor da Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim. Ele é um dos editores do maior projeto de reinterpretação de Marx, não por acaso chamado de Mega-2. Começou em 1974 e não tem data para acabar: todos os manuscritos do filósofo estão sendo republicados na Alemanha na sua forma original, ou seja, antes de editados por Friedrich Engels (1820-1895). 

Na primeira semana de junho, Heinrich fez o circuito das universidades brasileiras, dando início às comemorações dos 150 anos de "O Capital". Em setembro, lança a 26ª biografia de Marx, três volumes a serem publicados pela Boitempo. A cabeça em pedra do barbudo com jeito de profeta, reverenciada por turistas no cemitério de Highgate, em Londres, estará na capa de outro livro a ser lançado em outubro pela Companhia das Letras: a conceituada biografia do professor Gareth Stedman Jones, em que o britânico tenta separar Karl do mítico Marx, inspirador do marxismo. 

Quase 200 anos depois de seu nascimento, ele ainda é considerado imprescindível pelos estudiosos. Quando morreu, dormindo numa cadeira na sua casa de Londres, além do fiel escudeiro Engels, poucos apostavam em Marx como o homem que mudaria a consciência do mundo - segundo as palavras do filósofo Bertrand Russell (1872-1970). Na maior parte da vida, foi estrela de uma pequena comunidade de exilados e revolucionários, mas seus livros estavam longe de ser best-sellers. "O Manifesto Comunista" sumiu logo depois de lançado e assim ficou por 24 anos. "O Capital" vendeu mil exemplares em quatro anos e só foi traduzido para o inglês 12 anos depois. 

Demorou quase meio século para o livro chegar ao Brasil. Importados ou em traduções mambembes da editora do Partido Comunista Brasileiro, os textos de Marx nos anos 20 e 30 eram conhecidos dos grandes escritores da época (Oswald e Mário de Andrade, Graciliano Ramos) e viravam conversas de botequim, mas estavam fora do currículo das universidades. Foi por meio de um grupo de estudos, inventado por jovens professores da USP, que Marx fez sua entrada oficial na academia.

 Sarah Alcalay / AP

Thomas Piketty, de “O Capital no Século XXI”, usou recursos da matemática moderna
 para mostrar a verdadeira natureza das relações sociais,
 algo que Marx estudou no século XIX


A partir de 1958, eles se reuniram semanalmente durante três anos para ler "O Capital". Ruth e Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Octavio Ianni, José Arthur Giannotti, Paul Singer, Fernão Novaes e alguns "alunos penetras" - como se define o critico literário Roberto Schwarz - encontravam-se aos sábados, por seis horas, nas casas de uns e outros. "Era um clima de camaradagem, animação e alguma rivalidade, com rodízio de expositor e uma comilança no final", descreve Schwarz no recém-lançado "Nós que Amávamos Tanto O Capital - Leituras de Marx no Brasil" (Boitempo). "Tinha sempre um debate longo porque todos tinham um discurso comprido para fazer, qualquer que fosse a importância daquilo que pensava", ironiza Weffort. 

Já se passou outro meio século, e uma infinidade de autores ainda lança novos olhares sobre a obra de Marx. Após a morte do amigo, Engels dedicou anos para juntar os caóticos textos deixados pelo filósofo e publicar os volumes 2 e 3 de "O Capital". O resultado final, em alguns trechos, foi mais "revolucionário" do que na versão original, e um exemplo é a previsão do colapso do capitalismo, hoje reconhecida como uma contribuição de Engels - Marx falara apenas que a tendência da redução dos lucros das empresas "sacudiria" o capitalismo. Parece uma firula, mas abriu a porta para interpretações marxistas mais radicais e levou os críticos a tentaram aprisionar Marx no século XIX.

Para o economista-celebridade Thomas Piketty, autor do best-seller "O Capital no Século XXI" (ed. Intrínseca), os economistas fariam bem em buscar inspiração em Marx. O francês usou os recursos da matemática moderna para mostrar a verdadeira natureza das relações sociais, conseguindo realizar o sonho do filósofo no século XIX, quando fazia pesquisas diárias no British Museum lendo relatórios de fábricas e similares para comprovar empiricamente suas teses. Piketty provou matematicamente que o mercado não se regula sozinho e, a partir de 1980 e 1990, a desigualdade voltara a atingir os níveis do tempo de Balzac (1799- 1850), "refletindo a lógica de Marx".

Essa é também a análise do filósofo Wolfgang Street, mas sua conclusão é diferente: Marx errou. Numa entrevista à revista "Books", ele vê no pós-guerra as democracias repartindo mais equalitariamente os lucros através do Estado-previdência e, com isso, conseguindo uma certa paz social. Só que depois dos chamados "30 gloriosos anos", afirma, o capitalismo atual livrou-se das regulações sociais, recuperou certos traços anteriores a 1945 e, por isso, a desigualdade aumentará e novas crises acontecerão. Mas, diferentemente da revolução prevista por Marx, Street não consegue antever nenhum movimento organizado com capacidade de se opor ao capitalismo globalizado.

O Marx político é o mais polêmico. O historiador e escritor Daniel Aarão Reis, um admirador e leitor assíduo, vê o teórico militante como aberto, libertário e flexível, mas aponta dois problemas: um certo messianismo proletário e autoritarismo, ao criar uma oposição entre o saber científico (o seu) e a utopia das propostas rivais. Isso levou a social-democracia a achar que eles tinham a verdade e os outros, a ilusão, diz. Esse Marx doutrinário é alvo de mais críticas - especialmente depois dos regimes construídos em seu nome -, mas a confusão política recente aqui e no mundo está levando jovens no Reino Unido, nos EUA e até no Brasil a voltar a ele para entender o que está acontecendo ao redor.

A brasileira Antonia Oliveira Violeta Duarte, de 16 anos, estudante do Andrews e manifestante presente em protestos recentes no Rio, fez uma escolha surpreendente quando a avó pediu seis nomes de livros para dar-lhe de presente. Entre eles, incluiu "O Capital". Por quê? "Quero ler para poder tomar posição. A política é o que mais me interessa", diz.
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Reportagem por Helena Celestino par o Valor, do Rio.
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5014188/marx-nao-morreu 23/06/2017 Cad. EU & FIM DE SEMANA.