terça-feira, 9 de maio de 2017

Saura, Luís XVI e Central

Juremir Machado da Silva* 
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Luís XVI só viu o mar uma vez.

Carlos Saura fez um lindo musical sobre a Argentina sem tango. “Central”, documentário gaúcho sobre o presídio de Porto Alegre, faz pensar na Bastilha, prisão hedionda da França do Antigo Regime. Luís XVI escreveu no seu diário em 14 de julho de 1789: “Nada”. Referia-se à má caçada do dia. No musical de Saura há uma cena emocionante. Numa escola simples crianças assistem num telão Mercedes Sosa cantar “todo cambia”. Aos poucos, elas são contaminadas pelo ritmo e começam a bater as mãos seguindo a música. Dá vontade de chorar diante dessa linguagem universal do sublime.

A Bastilha só tinha sete presos quando foi tomada pelo povo. O Presídio Central tem mais de quatro mil homens amontoados. Na França de antes de Luís XVI judeus pagavam um imposto chamado “pedágio corporal”. Na masmorra de Porto Alegre, como na maioria das prisões brasileiras, famílias pagam “pedágio corporal” para que facções não matem nem deixem estuprar seus “súditos”. Luís XVI terminou seu reinado sem qualquer poder. Por fim, perdeu a cabeça. O Estado gaúcho entregou as galerias do Central aos seus moradores, os presos. O filme de Saura é uma viagem a uma Argentina tão profunda e desconhecida para muitos quanto o passado francês ou as prisões latino-americanas.

Por que não fazer comparações polêmicas? Luís XVI fez tudo para não massacrar o povo que se rebelava. Tinha horror à violência: “Para vencer eu precisaria ter o coração de Nero e alma de Calígula”. Como ele, João Goulart se recusaria a derramar sangue. Jango queria reformar o Brasil. Luís XVI bancou a independência dos Estados Unidos e garantiu a vitória militar sobre os ingleses. Tentava reformar a França lentamente contra os interesses empedernidos do clero e da nobreza. Luís XVI, rei por direito divino, foi levado a ser monarca constitucional, mas derrapou muitas vezes na tentativa de adaptar-se. Em certo momento, disse: “É legal porque assim eu o quero”.
Não lembra o “entendimento” das leis de alguns dos nossos ministros do STF?

Monsenhor de la Fare, mise de Nancy, fez um discurso diante da família de Luís XVI. Atacou a corrupção, a dilapidação das riquezas públicas – Maria Antonieta, vítima de um golpe, antes da paixão da mulher de Sérgio Cabral por joias, fora acusada de comprar um colar milionário – e o desinteresse dos ricos pela situação dos pobres. Avisou: “O povo está cansado de adiar sua felicidade”. O documentário “Central” é um discurso de la Fare em imagens. As castas do feudalismo francês queriam resolver a questão da desigualdade com mais repressão. Amavam o longo tempo da “mão morta”. Quando um servo morria, a família pagava imposto ao dono das terras entregando-lhe os bens do falecido. A grande reforma até então tinha sido poder entregar apenas uma parte.

O mundo de Luís XVI era terrível para o populacho. Mas tinha suas estranhezas até para o rei. O casal real não podia assistir à morte de um filho nem participar do seu enterro. “Central” mostra que pai e filho podem apodrecer no mesmo lugar. A beleza, no entanto, pode ser popular. É o que revela o lindo filme de Saura. Necker, ministro de Luís XVI, propôs uma reforma que tornaria todos “iguais frente aos impostos”. Não levou. No Brasil de 2017 essa igualdade ainda não foi conquistada. Com um sistema regressivo e isenções para os grandes, os menos aquinhoados pagam mais. Luís XVI, instado por Maria Antonieta a usar a força, recusou-se. Getúlio, estimulado pela filha, fez o mesmo em 1954.

Um governante pode ser visto como fraco quando se agiganta.

Os ricos da França de Luís XVI não quiseram ver os sinais da explosão social que se anunciava. Achavam que seria possível continuar vivendo em suas fortalezas sob proteção militar. O povo revoltou-se aos poucos e fez da austríaca Maria Antonieta o símbolo de tudo que não mais suportava.
Era tido como certo que ela traía o marido com Axel Fersen.

Luís XVI não perdeu a cabeça antes de ser decapitado. Escreveu ferinamente: “Ela pode ter certeza de que não guardo nada contra ela, caso ela acredite ter alguma coisa a censurar-se”.

Manso até o fim? Ele levara apenas sete anos para consumar o casamento.

O soberano foi guilhotinado. Os grandes revolucionários como Danton, Robespierre e tantos outros também. Nenhuma novidade. Salvo a tentativa de recuperar parte da imagem do rei em “Luís XVI” (L&PM), biografia publicada em 2011 por Bernard Vincent. O que fariam os franceses de 1789 se vivessem no Brasil de hoje? Tomariam os presídios centrais? Exigiriam igualdade diante dos impostos? Proclamariam uma nova república? Guilhotinariam (nas eleições) os políticos corruptos? Derrubariam nosso longo e horripilante antigo regime? Repetiriam os erros dos revolucionários do século XVIII? Transformariam a injustiça em vingança? Mudariam o Brasil e parariam para escutar a música popular local ou vizinha como a do folclore argentino do filme de Carlos Saura?

Diriam que o povo está cansado de adiar sua felicidade.
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* Jornalista. Sociólogo. Prof. Universitário.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/05/9847/9847/ 
Imagem da Internet do filme Central.

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