terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

No mundo das redes sociais, o relativismo virou 'matéria paga'

Luiz Felipe Pondé


Ricardo Cammarota/Folhapress
Ilustração Luiz Felipe Pondé de 27.fev.2017

Dizem que estamos na era da pós-verdade. Trump é um exemplo. O "brexit", outro. A extrema direita, outro. Enfim, só mente quem não faz parte do pacote ideológico dos bonzinhos. 

Era da pós-verdade é a era em que sites e pessoas inventam mentiras contra candidatos, ideias ou pessoas famosas (ou não) para atingir uma meta específica, além, claro, de ganhar dinheiro com publicidade à base de cliques. Reputações podem ser destruídas por canalhas produtores de mentiras veiculadas nas mídias sociais.

Mas existe uma fundamentação filosófica para isso: o relativismo sofista e seus descendentes. Mesmo que nenhum filósofo relativista tenha proposto a mentira como conclusão da negação da verdade absoluta (o relativismo em si), qualquer pessoa normal (inclusive alunos quando estudam relativismo) toma a autorização para mentir como conclusão evidente da postura relativista. No mundo das redes sociais, o relativismo se transformou em matéria paga.

É tudo verdade: as plataformas de redes sociais acabaram por pulverizar algo que Platão sabia. No mundo retórico das opiniões, ninguém sabe onde a verdade está. Nas redes sociais, com sua economia dos cliques, ganha mais quem é mais acessado. A sustentabilidade econômica deita raízes nessa economia dos cliques.

Há um deficit de verdade na democracia contemporânea. A economia dos cliques é esse fato tornado mercado. Mas há outro fator, mais invisível para quem não é do ramo, e que figuras como Trump sacaram. Muitos dos que criticam a era da pós-verdade nas mídias ("fake news" ou "notícias falsas") têm uma agenda ideológica escondida, e essa agenda os desqualifica como críticos para grande parte da população que não frequentou as escolas da zona oeste de São Paulo ou cursos de ciências humanas de universidades de gente rica (mesmo que públicas). Você quer saber qual é essa agenda escondida?

A agenda escondida é a associação direta entre ser de esquerda e dizer a verdade. É a crença de que se você for verdadeiro concordará com a pauta do "New York Times" para o mundo. Ou com a do "Guardian". Ou do "Libération" (a imprensa brasileira é bem melhor nessa vocação descaradamente ideológica, pelo menos em política, em cultura peca com mais frequência).

Não tenho dúvida de que "haters" (odiadores) mintam. E de que muitos sejam mesmo idiotas de extrema direita. E de que Trump possa ser um sério problema para mundo. E de que Hilary era melhor, justamente porque é um nada que faria um governo pró-establishment.

Mas, o que precisa ser dito é que grande parte do "fake news" também é gerado pela moçada do bem. Quero ver o dia em que os bonzinhos vão confessar que xingam, mentem, fazem bullying virtual e destroem eventos com os quais discordam. A esquerda é tão canalha quanto a direita em matéria de era da pós-verdade.

Vejamos um exemplo. A maioria esmagadora da classe de produtores culturais partilha dessa agenda escondida. Critica tudo que não combine com um governo que estimule a cultura (leia-se "dê grana pra eles"). Consideram óbvio que se alguém dá grana para eles é porque esse alguém é legal e faz o bem.

Ainda teremos que voltar à vaidade como categoria de análise moral e política neste século se quisermos pensar a sério esse comportamento de artistas que se vendem como arautos da verdade moral e política. Pois bem. Esses artistas apoiam governos conhecidos pela incompetência econômica que destrói vidas (mas se estiverem financiando seus filmes, ok!), pela perseguição ideológica (dar exemplos disso até dá sono, não?). Artista sempre foi um bicho fácil de convencer.

Outro exemplo: acadêmicos e "especialistas na verdade", normalmente todos, votariam na Hilary, ou seja, são de esquerda. A esquerda se sente tão confortável tendo o monopólio dos mecanismos de produção de conhecimento e cultura (por culpa mesmo da direita liberal que é tosca) que assume sem vergonha o lugar de oráculo da verdade.

Para quem conhece um pouquinho desse caminho da roça, tudo isso parece ópera-bufa. Você escuta as risadas dos palhaços?
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/02/1862286-no-mundo-das-redes-sociais-o-relativismo-virou-materia-paga.shtml

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

'Filosofia da suruba' serve aos poderosos

Fernando Abrucio*

O senador Romero Jucá é um dos mais bem-sucedidos expoentes do modelo tradicional de se fazer política no Brasil. A principal característica desse grupo é a capacidade de se adaptar, mantendo-se no poder quem quer que seja o governante.
É onde Jucá sempre esteve desde a redemocratização, sendo líder do governo de todos os últimos governos. Quando percebe que a barca vai virar, muda de lado rapidamente, como bem demonstrou sua famosa conversa com Sérgio Machado, na qual defendeu o impeachment da presidente Dilma como forma de evitar o aprofundamento da Operação Lava-Jato. A luta contra a investigação, no entanto, não acabou, e Jucá formulou uma nova estratégia de defesa: a "filosofia da suruba".
Para quem perdeu o teor dessa proposição filosófica, retomo a definição original dada pelo senador Jucá. Questionado em relação à possibilidade de o Supremo Tribunal Federal restringir o chamado foro privilegiado apenas aos eventuais crimes cometidos ao longo do mandato, o atual (e eterno) líder do governo falou algo que com certeza já está na lista das pérolas da sabedoria política brasileira: "Se acabar o foro, é para todo mundo. Suruba é suruba. Aí todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada".

Antes que o leitor faça uma leitura apressada e óbvia, ressalto que não se trata de uma filosofia simples de se entender. Aparentemente, Jucá estava defendendo a igualdade entre todos, mas a sutileza filosófica está em esconder o principal: é preciso evitar a mudança nas regras que regem o foro privilegiado, particularmente protegendo os que precisam hoje desse instituto jurídico. Tal como na conversa com Sérgio Machado, o objetivo é salvar a si próprio e a seu grupo. Qualquer outra forma de regulação que atrapalhe isso tem que levar "todo mundo junto". Trata-se de um argumento diversionista, que ameaça a todos para manter os privilégios dos de sempre.
A "filosofia da suruba" está na mesma linhagem do famoso ditado: "aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei". Essa autoproteção das elites tem sobrevivido, mesmo que com menos força, ao processo de democratização do país. Sim, a Justiça começou a chegar aonde antes nem passava por perto, como políticos e empresários. Mas as formas como os políticos governistas têm tentado minar, nas duas últimas semanas, a Lava-Jato são evidentes. O foro privilegiado ao ministro Moreira Franco e a escolha de um ministro do Supremo Tribunal Federal que veio do seio do governo são os dois principais atos dessa estratégia de defesa. É preciso salvar o grupo - especialmente a entourage pemedebista -, e se não for possível, que caía a República como um todo, ameaçam os ilibados senadores! Eis aí a moral da proposição defendida por Jucá.
Só foi possível enunciar a suruba como forma de salvação nacional porque a elite política tradicional não está acostumada a lidar com a ideia correta de igualdade. A trajetória histórica do Brasil foi marcada por uma sociedade dividida entre senhores e escravos, cavalcantis e cavalgados, marajás e barnabés, coronéis e currais eleitorais, padrinhos e apadrinhados, em suma, nossa elite, nos dizeres de Joaquim Nabuco, sempre almejou a desigualdade. A recente democratização do país, com maior participação popular e aumento do controle institucional do poder, está balançando as estruturas do modelo tradicional.
Mas estamos numa transição de costumes políticos, com dificuldades inclusive de definir o poder de cada qual, a forma justa de exercer os instrumentos democráticos. Os grupos sociais que ficaram indignados com bobagens e malfeitos praticados pelo governo Dilma ficaram praticamente calados com a "filosofia da suruba" que imperou no último mês. A Justiça não tem, por ora, tratado igualmente os atores políticos. Considerar que a posse de Moreira Franco é diferente da nomeação de Lula é, no mínimo, um atentado à lógica, tanto a formal como a republicana. Os promotores também, por vezes, expressam um viés nitidamente partidário e noutros momentos expressam uma forma jacobina que, ao final, os transforma em salvadores da Pátria, outra maneira de ferir a igualdade entre os cidadãos.
A superação da "filosofia da suruba" e afins passa por definir mais claramente os papéis dos Poderes e direitos dos cidadãos. A discussão sobre o foro privilegiado é uma ótima oportunidade para definir as estruturas democráticas e republicanas que nos regem. Nas origens, seu propósito era defender a opinião dos eleitos, garantindo a pluralidade das posições políticas e evitando a censura de visões sobre o poder. Muitos outros países garantem esta proteção aos políticos em eventuais ações ilegais feitas durante o mandato, evitando que o Poder público ou uma Justiça estruturada partidariamente ou em torno dos poderosos - algo que não é incomum no plano subnacional brasileiro - persiga representantes populares. O que salta à vista no nosso modelo jurídico é a extensão do foro privilegiado - o número de beneficiários - e sua validade para além do mandato do beneficiado.
Na verdade, o modelo do foro privilegiado adotado por nós representa bem a visão anti-igualitária que dá base à "filosofia da suruba". O número de beneficiários não é amplo apenas para ajudar os "amigos do rei", mas também para dar um poder mais monocrático e incontrastável ao governante, que assim tem maior capacidade de garantir a proteção de sua corte. Desse modo, esse modelo de foro privilegiado é capaz de estruturar um grupo político em torno de uma lealdade lastreada na inimputabilidade penal dos poderosos. E como diria o filósofo, quer dizer, o senador Jucá, se for para mudar isso, que todos os outros sejam prejudicados, para não sobrar ninguém no caos que daí surgirá. É a enunciação de uma igualdade republicana a partir de seu contrário.
A proteção republicana e democrática do foro especial deve estar vinculada ao mandato popular. Em outras palavras, protege-se o povo e sua manifestação por meio do voto. Tudo aquilo que vier antes ou depois do mandato não diz respeito à defesa da vontade do eleitor. Caso não se faça essa diferença, de fato o acesso aos cargos públicos torna-se um meio de se livrar de malfeitos e crimes os mais variados praticados pelos políticos. A Lei da Ficha Limpa corrigiu parte desse problema, mas não em sua totalidade.
Do mesmo modo que é necessário discutir as proteções indevidas à classe política, o mesmo deve ser feito em relação a outros ocupantes de cargos públicos, em particular aqueles que exercem funções no sistema de Justiça. Não é possível que juízes condenados por corrupção ou por qualquer outro crime tão grave continuem recebendo suas aposentadorias, vivendo confortavelmente nesse retiro luxuoso. Isso é um tapa na cara de todos os cidadãos brasileiros, um verdadeiro escárnio em relação à ideia de igualdade de direitos. Este tipo de regalia de certas corporações estatais é o que levava Joaquim Nabuco - novamente citando esse profundo conhecedor de nossa alma - a dizer que o serviço público era a vocação de todos os brasileiros, todos querendo seu naco de privilégios.
Nenhuma pessoa ou grupo social deve ter direitos superiores aos demais que não se justifiquem como uma proteção à própria sociedade. Exemplo: a maioria dos países democráticos garante um grau de estabilidade ao funcionalismo público como uma forma de proteger a população da patronagem política e do patrimonialismo. Claro que isso não pode ser absoluto, pois o que se pretende com esse instituto é a defesa dos direitos da população de receber serviços públicos contínuos e de qualidade. No Brasil, historicamente criamos "direitos adquiridos" e "isonomias" como instrumentos da manutenção de privilégios de determinadas camadas, sem que isso produza melhorias à vida coletiva. Para lembrar de outro exemplar desse republicanismo ao contrário, a aposentadoria de parlamentares era escandalosa, não só para as finanças públicas, como ainda porque criava cidadãos "mais iguais do que os demais".
Daí que a "filosofia da suruba" não se alimenta somente do velho poderio dos "estadistas de Província" (mais uma definição de Nabuco) em suas bases eleitorais. As próprias regras estatais protegem parcela dos detentores de cargos públicos, eletivos ou não, transformando-os, na célebre definição de Raymundo Faoro, em "estamento burocrático": um grupo que só responde a si próprio e não à sociedade e ao público. Mudar o estatuto do foro especial, bem como fazer com que outros atores estatais respondam por seus atos - como os promotores públicos, um controlador que não é controlado por nenhum outro -, é um passo decisivo para instaurar princípios democráticos de igualdade de direitos e de responsabilização do Poder Público, em seus vários ramos governamentais.
O desafio de mudar nossa sociedade, marcada pela cultura do privilégio, para um rumo mais republicano vai exigir a alteração não só nas regras institucionais. Será preciso transformar as práticas e retirar os grupos e pessoas que se alimentam desse modelo. Infelizmente, cresce a reação no sistema político contra tal modificação. O jogo não terminou, mas as avenidas estão vazias agora e as panelas, silenciosas.
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*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
Fonte:  - Eu & Fim de Semana | Valor Econômico 24/02/2017
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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O silêncio das máquinas

Juremir Machado da Silva* 
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      Caixas eletrônicos na França exibem uma frase que faz pensar: “Não confie em estranhos. Siga as recomendações da máquina”. Fiquei pensando nisso principalmente depois de ter lido a tese, de cuja banca participei nesta semana em Montpellier, de Thibault Huguet, “A sociedade conectada”, orientada por meu amigo Philippe Joron, sociólogo e vice-presidente da Universidade Paul Valéry. Caminhamos para a automação total. Os franceses estão mais adiantados do que os brasileiros na substituição de trabalho humano por máquinas. A Europa já eliminou cobradores de ônibus e outras funções assim há tempos. Caixas de supermercado estão com os dias contados. O homem produtor perdeu a função.

Nas ciências sociais fala-se cada vez mais em pós-humano, em não-humano, em internet das coisas, em papel e autonomia dos objetos. Meu velho amigo Jean Baudrillard, falecido em março de 2007, denunciava a troca impossível entre comunicação de massa e seus públicos. Só o emissor tinha poder de palavra. Na era das redes sociais, quando todos podem receber e emitir, a troca se tornou, enfim, possível? Em princípio, sim. A questão, contudo, retorna pela janela: qual a troca possível com máquinas com as quais não se pode discutir, brigar ou polemizar? A nova angústia do ser humano é o silêncio da máquina. De que adianta insultá-la se ela se mantém fria, indiferente, altiva, alheia aos nossos ataques ou ressentimentos? A vantagem da máquina sobre o homem é que ela não tem reivindicações. Não faz greve.

Talvez seja preciso inventar em breve uma máquina capaz de reagir aos humores do seres humanos para que a troca simbólica ressurja ao menos como uma simulação. Máquinas fazem praticamente tudo e aceitam reclamações. Mas não entram no jogo mais animal do homem, o jogo do confronto, da ruptura, do blefe e da provocação. Quando elas erram, só resta procurar o humano responsável. Só que esse ser não se esconde atrás da parede ou do outro lado da tela. Qual será o seu destino? Qual será o seu futuro? Para que servirá? O futuro das máquinas está garantido. O dos homens é pura dúvida. As máquinas nos liberam das tarefas mais enfadonhas e duras. Para quê? Para que nos tornemos consumidores em tempo integral. É por isso que avança a ideia  de um salário universal. O homem do futuro será consumidor.

Alguns utopistas previram um tempo em que todos os homens viveriam para lazer e arte. As máquinas já ocupam amplamente o espaço do lazer. A arte também será feita por robôs para que tenhamos todo o nosso tempo disponível à contemplação? Há muito que teóricos falam em pós-trabalho. O que virá? O desemprego generalizado com todos recebendo um salário para consumir e fruir? Ou de fato surgirão novos préstimos para os seres humanos, esses estranhos seres criadores de máquinas? Não se trata mais da dominação do homem pela máquina. Esse medo está superado. A questão agora é a substituição do humano pela tecnologia. Boa parte do imaginário do homem moderno baseia-se na suposta liberdade de dirigir seu carro. Também isso vai acabar? O motorista não será mais do que uma nostalgia.

A história da humanidade pode ser definida como a longa história das guerras entre os humanos. O fracasso do homem, no pós-humano, consistiria em não pode guerrear contra as suas máquinas? A tríade capitalista-trabalhador-consumidor poderá ter um dos seus eixos amputados. Todo ser humano tornou-se suspeito. Só as máquinas transmitem confiança. Elas nada têm contra homens. Nem os conhecem. Vivem e morrem na mais absoluta neutralidade. Não amam. Nem sofrem.
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*Jornalista. Escritor.
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/02/9585/o-silencio-das-maquinas/ 23/02/2017
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Manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário

João Pereira Coutinho*

Binho de 21 Fev de 2017
Binho Barreto/Editora de Arte/ Folhapress


Acabei de ler o manifesto que Mark Zuckerberg escreveu sobre o futuro da humanidade. Ri muito. Mas depois, quando cheguei ao fim, uma pergunta severa instalou-se no meu crânio: Zuckerberg é um humorista ou ele acredita mesmo em cada palavra? 

Se estamos na presença de um humorista, podemos incluir Zuckerberg na grande tradição dos utopistas satíricos. Você sabe: gente profundamente descontente com a realidade em volta e que usa a literatura para divertir ou moralizar. 

O problema é que eu desconfio que Zuckerberg fala a sério porque "sentido de humor" é algo que não casa com o personagem. 

Resumidamente, o manifesto deseja construir um futuro perfeito. E que futuro é esse? Fácil: um futuro sem pobreza, sem guerra, sem angústia, sem solidão. E como atingir esse futuro? Fácil também: mobilizando os bilhões de seres humanos que usam o Facebook.

As minhas gargalhadas começaram logo no princípio: "Estamos a construir o mundo que todos queremos?", pergunta o profeta Mark. Não, meu filho, não estamos. Cada um constrói o mundo que entende porque a ideia de um propósito comum só existe na cabeça de um fanático. Pior: de um fanático que acredita falar em nome de "todos". 

Em teoria, um mundo sem pobreza, sem guerra, sem angústia e sem solidão pode ter os seus encantos. De preferência, se for proposto por uma candidata a Miss Universo com biquíni a condizer. 

Mas imaginar o sr. Zuckerberg em tais preparos, para além de esteticamente arrepiante, é politicamente aberrante: aquilo que define a espécie humana é a diversidade de interpretações e soluções sobre qualquer assunto social. 

Sim, a pobreza é um infortúnio. Mas saber como combatê-la –redistribuindo a renda? Criando livremente? E de que forma?– é matéria de discussão pluralista e secular. O mesmo vale para a guerra (há guerras criminosas? Há guerras necessárias?), para a angústia (o que seria da grande arte sem esse demônio interior?) ou para a solidão (há momentos em que o inferno podem ser os outros, parafraseando o filósofo). 

Mas os delírios de Zuckerberg continuam. Escreve ele que o futuro pertence aos "grupos significativos" (grupos de gente que partilham as mesmas felicidades ou infelicidades). 

Um exemplo: se eu tenho uma doença específica, posso encontrar a minha turma específica. O futuro de Zuckerberg é feito de centenas, milhares de guetos virtuais. Como as leprosarias da antiguidade ou os sanatórios para tuberculosos. 

De resto, Zuckerberg acredita que a inteligência artificial poderá um dia salvar os seres humanos deles próprios. Se eu consumo fotos ou vídeos onde o suicídio tem papel principal, será possível "identificar" os meus comportamentos "desviantes" e impedir o ato funesto. Impedir como? 

Zuckerberg não diz. Imagino que haverá intervenção do exército: o jovem estudante de sociologia, que faz tese de doutorado sobre "O Suicídio" de Durkheim, terá a porta arrombada pelos militares e será caridosamente enfiado numa camisa de força. 

Para muitos pensadores, o suicídio é o último ato de liberdade –ou, como dizia Cioran, é precisamente pela certeza de que existe sempre uma saída para a existência terrena que nos podemos comprometer com a vida. No mundo de Zuckerberg, nem a mais íntima das escolhas humanas estará a salvo. 

Finalmente, o óbvio: com o Facebook, eleitores e eleitos estarão mais próximos do que nunca, escutando-se mutuamente. Tradução: se "a tirania da maioria" aprovar atos de barbaridade, o político, para ser eleito, defenderá atos de barbaridade. 

Os mecanismos de mediação que as democracias liberais sempre defenderam (tribunais, parlamentos etc.) devem ser derrotados em nome da "vontade geral", essa categoria sinistra que Rousseau legou aos seus discípulos. 

Para sermos justos, nada do que escreve Zuckerberg é novidade. Ele apenas repete as falácias típicas do pensamento globalista: os problemas globais só podem ser enfrentados por uma espécie de "comunidade global" –um eufemismo para "governo global". 

Fatalmente, não passa pela cabeça de Zuckerberg que é precisamente esse globalismo supranacional e transnacional que produz a reação populista (e nacionalista) atualmente em cartaz. 

O manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário escrito com a tinta ilusória das boas intenções. Se adolescentes assim não têm noção do ridículo, o mundo já será um pouco melhor se os adultos não perderem o deles. 
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Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/02/1860523-manifesto-de-mark-zuckerberg-e-um-documento-megalomano-e-autoritario.shtml

Há guerras que nos impedem de amar

Cotardo Calligaris*


Mariza de 23 de Fev de 2017
Faz um milênio que a gente acredita no extraordinário poder da paixão amorosa. Tristão e Isolda se amavam embora Isolda fosse a esposa prometida ao rei Marco, tio de Tristão (e Tristão fosse um sobrinho leal). Lancelote e Ginebra se amavam embora Lancelote fosse cavaleiro do rei Artur e Ginebra fosse a esposa do mesmo rei.

Qualquer poeta, por amor pela Dama, atropelava as diferenças de classe, os laços de parentesco e as obrigações que o ligassem ao seu senhor. Não mudou muito desde então: o amor justifica qualquer transgressão. O que acontece por amor tem uma legitimidade própria, absoluta.

Mariza/Mariza/ Editoria de Arte/Folhapress

Também faz um milênio ou quase que o amor é o grande motor de nossas possíveis transformações. A gente se torna melhor por causa do amor: o sentimento nos modifica, e a esperança de sermos amados nos encoraja a mudar. O amor também nos eleva e nos aproxima de Deus; Beatriz, por exemplo, leva Dante até ao Paraíso. Em suma, de Tristão e Isolda até "O Quinto Elemento", de Luc Besson, o amor é nossa arma secreta.

Claro, muitos resistem à potência do amor. De "Romeu e Julieta" a "West Side Story", sempre há Montecchios e Capuletos que acham inaceitável que o amor entre dois adolescentes se sobreponha a uma antiga rivalidade entre as famílias.

No caso de Romeu e Julieta, o amor custou a vida dos amantes, mas triunfou: foi por causa do amor deles que as duas famílias, debruçadas sobre os corpos inertes dos dois jovens, se reconciliaram.

Lá pelos 11 anos descobri que o amor podia não ser correspondido. Ela se chamava C.B. e preferia alguém mais velho e, sobretudo, que soubesse esquiar. Eu, vergonha, aos 11 anos, ainda não sabia. Perdi C.B., mas passei o verão seguinte em alta montanha, num intensivo de esqui. O amor me transformou (para melhor).

Um ano depois, aos 12 anos, li "O Amor e o Ocidente", de Denis de Rougemont. Concordei em parte com o que entendi: o amor-paixão era sobrevalorizado e, no fundo, incômodo. Só não me convenceu a ideia de que, em vez de se apaixonar perdidamente, fosse melhor ter afetos e amizades cristãs com esposas e companheiras. Cheguei a um compromisso: o amor-paixão era um abismo no qual era melhor não se perder, mas quem sabe, em vez de preferir um casamento cristão, a gente pudesse escolher a liberdade licenciosa dos libertinos? Em suma, menos amor-paixão, nada de amizade ou de amor cristão, mais promiscuidade e mais sexo –essa me parecia a receita ideal.

A vantagem do sexo e da promiscuidade é que, contrariamente ao amor (paixão ou não), eles não exigem que o parceiro ou parceira seja também uma alma gêmea ou coisa que valha. É possível desejar um inimigo e transar com ele; já amar um inimigo é bem mais difícil.

Por exemplo, imaginemos que Montecchios e Capuletos não se odiassem só por alguma velharia insensata, mas tivessem visões do mundo radicalmente opostas. Será mesmo que, para você, Montecchio, seria fácil amar uma Capuleto (e reciprocamente)? Será que o amor tem esse poder?

Você detesta os "petralhas" e foi para a rua pedindo o impeachment de Dilma. Conseguiria amar de paixão alguém que milita para que Lula seja candidato em 2018? Você acha que o país acaba de sofrer um golpe, por aquela corja de políticos da qual ninguém consegue nos livrar. Você conseguiria amar alguém para quem Temer é a esperança?

Isso sem nem contar posições contrárias sobre Lava Jato, Sergio Moro, casamento gay, pagamento de dízimo para uma igreja, aborto"¦ Nos Estados Unidos, não é diferente. Quem, democrata ou liberal urbano, conseguiria amar um "Trump supporter" (e reciprocamente)?

Em 2005, Bruno Barreto filmou "O Casamento de Romeu e Julieta", entre uma palmeirense e um corintiano. Duvido que a polarização política de hoje possa inspirar uma comédia parecida. Há diferenças com as quais talvez não dê para brincar.

Coisa relativamente inédita, encontro casais que se separam por incompatibilidade de ideias sociais. E encontro homens e mulheres para quem um posicionamento político parecido é uma condição do amor –sem isso, nem vale a pena tentar.

Em suma, o amor não triunfa sobre qualquer diferença. Também não é verdade que, se praticássemos o amor, não faríamos a guerra. Ao contrário, há guerras que nos impedem de amar.

Saí de "Aliados", de Robert Zemeckis, que recomendo por isso, com uma pergunta boa para tempos polarizados: será que o amor pode se manter na diferença radical? Qual é, para você, a oposição ideal máxima que o amor pode tolerar?
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* Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2017/02/1861237-ha-guerras-que-nos-impedem-de-amar.shtml

Judith Butler: Veto de Trump a muçulmanos lembra perseguição a judeus, diz.

A pensadora americana Judith Butler em evento em São Paulo em 2015
Moacir Lopes Junior - Folhapress

Quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, propôs restringir a entrada de muçulmanos nos EUA, diversos setores da sociedade americana se opuseram ao plano.

Judeus estiveram entre os críticos ferrenhos dessa política, diz a pensadora americana Judith Butler, 60, porque eles sofreram discriminações semelhantes na Alemanha nazista e "viveram suas horrendas consequências". 

Ainda que as circunstâncias históricas tenham sido distintas, há um princípio em comum entre ambas as experiências, afirma: o preconceito contra todo um povo a partir de sua identidade. 

A identidade judaica e o sionismo são temas do livro que Butler lança no Brasil neste mês, "Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo" (editora Boitempo, R$ 68, 240 págs.). 

Ela falou à Folha sobre o tema e sobre a esperança minguante em torno da solução ao conflito entre israelenses e palestinos. 

Sob a gestão do republicano Trump, os EUA têm se afastado da proposta de criar dois Estados na região. 

"Não sabemos que mudanças políticas virão no futuro, mas é difícil se manter esperançoso", diz Butler. 


Folha – Recentemente houve comparações entre a perseguição a judeus na Alemanha nazista e o veto a muçulmanos imposto pelo presidente americano Donald Trump. É justo compararmos esses cenários?
Judith Butler – São circunstâncias históricas bastante diferentes, mas há um princípio semelhante: é injusto discriminar um povo a partir de sua nacionalidade, raça ou religião. Uma razão pela qual tantos judeus têm sido críticos ferrenhos da política proposta por Trump é que eles sofreram esse tipo de discriminação e viveram suas horrendas consequências. 

Qual é a sua definição da "identidade judaica"?
Pergunte em qualquer mesa de jantar entre judeus e haverá um debate. Talvez isso seja um tipo de definição. 

O governo israelense argumenta que Israel é um "Estado judeu". O que "judeu" significa nesse contexto?
É interessante. Já que o Estado não quer que "judeu" seja um termo religioso, então uma pessoa não precisa ser religiosa para ser considerada um judeu. Por outro lado, os casamentos [em Israel] precisam ser presididos por autoridades religiosas. Então há uma tensão em relação ao significado da identidade. Para alguns, é uma questão de herança. Para outros, determina um conjunto de valores e compromissos religiosos. 

Como isso impacta a ideia de uma identidade palestina?
Muitas pessoas não sabem que mais de 20% dos cidadãos israelenses são palestinos. Eles vivem dentro do Estado, mas não têm os mesmos direitos e oportunidades que os judeus israelenses. Esse tipo de cidadania de segunda classe é inaceitável. É também injusto que os palestinos que perderam sua terra e lar em 1948 e em 1967 não tenham seus direitos claros como cidadãos. 

Já foi dito, por parte da direita israelense, que não existe de fato uma identidade palestina.
Acho que esse não é um debate muito inteligente, já que os palestinos têm vivido naquela terra por muitos anos e desenvolveram sua própria cultura e seus modos de vida. O fato de que a cultura palestina não é amplamente reconhecida por Israel não significa que ela não exista. É uma cultura rica com uma história forte, com uma relação com poesia, música, literatura, língua, comida, ritual e profundas ligações com a terra. 

Parte da crítica ao sionismo parte da percepção de que esse é um movimento judaico. Mas a senhora argumenta, em sua obra, que os judeus podem se opôr ao sionismo. Como esses conceitos interagem?
Se alguém se opõe ao sionismo por ser contra os judeus, então isso é antissemitismo e tem de ser combatido. Mas, se alguém se opõe ao sionismo porque essa é uma forma de discriminação sistemática, então me parece justo. Nós, os judeus que nos opomos ao sionismo, não negamos ou rejeitamos nossa "judaicidade". Nós nos lembramos de que os judeus sempre se preocuparam com a justiça. 

A solução de um único Estado para o conflito entre Israel e Palestina tem se tornado cada vez mais provável?
É importante distinguir as diferentes versões da chamada "solução de um Estado". 

De acordo com o premiê Binyamin Netanyahu e os políticos de direita em Israel, todas as terras palestinas seriam anexadas e se tornariam parte de um grande Israel. Isso levaria a um Estado de apartheid em que os cidadãos de diversas origens religiosas e étnicas seriam tratados de maneira diferente. Eu me oponho a essa versão. 

Outra versão é aquela que estabelece a igualdade para todos os habitantes, com o governo conjunto de judeus israelenses e palestinos. Muitos pensam que essa é uma solução utópica, mas por que não abraçaríamos uma democracia radical para a região? 

Nós vamos chegar a um ponto em que o conflito não tenha mais solução?
Parece que nós já estamos em um impasse. Não sabemos que mudanças políticas vão vir no futuro, mas é difícil se manter esperançoso. Muito depende de se a comunidade internacional vai continuar a condenar os crimes contra a humanidade e a anexação ilegal de terra e decidir apoiar a igualdade política e os direitos de autodeterminação para todos os povos naquela terra. 
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Reportagem por  DIOGO BERCITO DE MADRI

Biologia sintética, bioengenharia, bioeconomia…

Antonio Silvio Hendges*
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 Converter a biologia em objeto passível de intervenções da engenharia é atualmente uma prioridade nas agendas de investigação científica. A bioengenharia tem a intenção de fabricar e/ou obter novas possibilidades biológicas, para além das combinações e interações gênicas naturais e abrir espaços para a expansão da bioeconomia. Portanto, quem interpreta a bioeconomia referida em algumas ocasiões na imprensa, empresas multinacionais ou governos baseia-se na organização ecológica natural ou em sua retomada está totalmente enganado: o modelo será baseado em outras relações ecológicas, sociais, econômicas e políticas, inclusive com o monopólio de muitos serviços e produtos indispensáveis pelas empresas de bioengenharia e outras relacionadas protegidas através de patentes, acordos e lobbies. A combinação da bioengenharia, com a robótica e as nanotecnologias amplia ainda mais este admirável mundo novo.

A biologia sintética propõe a recombinação dos genes individuais para a construção de novas características, incorporando aspectos do design, em redes de regulação gênicas inteligíveis, previsíveis e manipuláveis dos organismos, redesenhando suas funções, ampliando ou estabelecendo seletivamente as interações com o meio ambiente. Amplia as possibilidades da engenharia genética, pois esta recombina os códigos genéticos já existentes, enquanto a biologia sintética propõe a criação de novos códigos, inclusive interativos e controláveis por sistemas computacionais.

Entre as perspectivas e aplicações da biologia sintética, destacam-se alguns objetivos que já possuem estudos avançados e inclusive algumas experiências que já estão acontecendo em diversas áreas. Importante destacar que a biologia sintética faz parte das pesquisas científicas e que suas aplicações e controle dependem de decisões éticas, científicas, econômicas e socioambientais que precisam considerar as oportunidades, mas também os riscos e princípios de precaução associados ao seu desenvolvimento e reprodução.

Biotecnologias – Projeção e construção de sistemas biológicos que processam informações, manipulam produtos químicos, fabricam materiais, produzam alimentos e/ou energia, aplicam-se na saúde ou nos aspectos ambientais escolhidos, padronização de partes biológicas, recombinação de componentes biomoleculares, novas funções tecnológicas em células vivas.

Reescrita – Os reescritores são biólogos sintéticos que acreditam que devido à complexidade dos sistemas biológicos naturais, é mais simples montar um sistema biológico de interesse específico, com produtos de manipulação e compreensão mais fáceis.

Vida artificial – Criação de moléculas ou mesmo de espécies inéditas capazes de realizarem novas funções, na indústria e na medicina, por exemplo. Os genomas sintéticos introduzidos em células geneticamente esvaziadas permitem a reprodução da célula artificial. Esta experiência foi realizada pelo J. Craig Venter Institute e descrita na revista Science de maio de 2010.

Transformação celular – São construídos componentes sintéticos de DNA ou mesmo genomas completos e uma vez obtido o código genético projetado, este é inserido em células vivas que se espera, manifestem as funcionalidades pretendidas ou os fenótipos programados ao crescerem e se reproduzirem. A transformação celular permite criar circuitos biológicos manipuláveis para produzirem as saídas desejadas.

Informações – É possível armazenar enormes quantidades de informações codificadas em uma cadeia de DNA sintético. Em 2012 o cientista George M. Church codificou um dos seus livros com 5,3 Mb de dados em DNA sintético.

Evolução direcionada – Introdução de combinações de genes previamente programados, controlando a evolução de organismos de acordo com interesses pré-estabelecidos, como por exemplo, a produção de fermentos utilizados em algumas indústrias e medicamentos e/ou tratamentos com base em modificações evolutivas em organismos vivos. É mais ampla que a engenharia metabólica tradicional por utilizar combinações genéticas não existentes. Também há pesquisas que permitam acelerar, retardar ou parar a evolução de células ou organismos.

Projeção de proteínas – Existem métodos para a engenharia de proteínas naturais por evolução dirigida, por exemplo, mas no caso da biologia sintética trata-se de projetar novas estruturas, inclusive aminoácidos inexistentes na natureza para melhoria ou novas funcionalidades das proteínas conhecidas ou projetadas para interesses específicos.

Biossensores – Biossensores são organismos, geralmente bactérias sensíveis aos fenômenos e alterações ambientais, por exemplo, a presença de metais pesados, óleos e toxinas químicas no ambiente. Experiências já realizadas no Oak Ridge National Laboratory codificam enzimas responsáveis pela bioluminescência e a associam a um promotor respondente para expressar estes genes, por exemplo, chips de computadores com revestimento bacteriano bioluminescentes e fotossensíveis utilizados para detectar poluentes petrolíferos. Quando o revestimento bacteriano detecta os poluentes, emitem luminescência.

Exploração espacial – A biologia sintética desperta grande expectativa nas pesquisas de exploração, ocupação e migração espacial, sendo possível a produção de recursos aos astronautas a partir de um conjunto restrito de compostos enviados da terra e a implantação de processos de produção com base em recursos locais, viabilizando o desenvolvimento de postos habitados com dependência mínima ou nenhuma da terra de origem.

Enzimas industriais – As enzimas, geralmente proteínas, catalisam reações biológicas que necessitam de muita energia e tempo para acontecerem espontaneamente. A biologia sintética pretende sintetizar enzimas de alto desempenho e aumentar os níveis de produção metabólicas celulares importantes industrialmente na produção desde lácteos sem lactose a detergentes orgânicos, por exemplo. As intervenções na engenharia metabólica pela biologia sintética têm amplas aplicações na indústria farmacêutica e bioquímica.

Materiais biológicos artificiais – A integração da biologia sintética com as ciências dos materiais possibilitará a produção de materiais com propriedades codificáveis geneticamente. A utilização na indústria robótica permite construir, configurar e programar em série estes dispositivos para executarem tarefas atualmente impossíveis com as tecnologias utilizadas. Muitas outras aplicações são possíveis como adesão a substratos específicos, imobilização de proteínas e a elaboração de modelos de nano partículas biológicas.

Como se pode perceber pelas amplas aplicações possíveis para a biologia sintética, não é possível ignorar as pesquisas que são desenvolvidas, mas também não se permite perder o foco em relação às questões éticas, sociais, ambientais e de biossegurança que estão adjacentes às suas possibilidades.

Como serão reguladas as empresas de síntese de DNA, enzimas, proteínas e outros produtos associados com a biologia sintética? Como serão controladas as pesquisas e quais regras de biosseguranças serão aplicadas? Quem e como terá acesso aos produtos desenvolvidos? As empresas poderão patentear organismos e utilizar estas patentes como uma reserva de mercado?

As pesquisas serão segredos comerciais? Ou serão públicas e controladas por conselhos científicos ou outros mecanismos? E as interações da biologia sintética com as nanotecnologias, robótica e ciências dos materiais? Quais os limites éticos da aplicação da biologia sintética? Poderão ser desenvolvidas armas, por exemplo? E a bioengenharia de embriões humanos, será permitida? O que acontecerá com os resíduos biológicos sintéticos das pesquisas bem ou mal sucedidas? Quem serão os beneficiários dos ativos da nova bioeconomia com base na biologia sintética? E os responsáveis pelos passivos ambientais, sociais e econômicos?

Referências:
HOFFMANN, Daniel Sander. Universos Complementares, Astrobiologia, Ficção Científica e o crescimento exponencial da Tecnologia. Porto Alegre: Letra & Vida, 2011.
MAISO, Jordi. Desafios éticos, filosóficos e políticos da biologia sintética. Caderno IHU Ideias nº 201, São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 2014.
Wikipédia – Biologia sintética. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Biologia_sint%C3%A9tica. Acesso em 01 fev. 2017.
Antonio Silvio Hendges, Articulista no EcoDebate, professor de Biologia e Educação Ambiental, assessoria e consultoria em Educação ambiental – http://cenatecbrasil.blogspot.com.br/
 in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/02/2017
"Biologia sintética, bioengenharia, bioeconomia… artigo de Antonio Silvio Hendges," in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/02/2017, 
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 * Antonio Silvio Hendges, Articulista no EcoDebate, professor de Biologia e Educação Ambiental, assessoria e consultoria em Educação ambiental – http://cenatecbrasil.blogspot.com.br/

O LUGAR E O TEMPO

Paulo Tunhas*

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No fundo, o corpo da humanidade é, como a Lydia de Groucho Marx, uma imensa enciclopédia de tatuagens, cada uma delas exprimindo um conjunto de significações imaginárias, particulares e irredutíveis.

Há curiosidades e curiosidades. E é preciso, com alguma regularidade, passar das curiosidades rotineiras em relação àquilo que nos rodeia e nos envolve, como as coisas políticas, no sentido trivial da palavra, a outro tipo de curiosidades que nos ajudam a ver o mundo com maior distância. Não convém ser esquisito em relação a estas, embora haja indisputavelmente questões que são mais importantes do que outras. Por exemplo: como puderam os seres humanos criar sociedades tão diversas entre si, tão diferentes nas suas crenças e na sua organização, nos seus valores e no seu entendimento da vida? Foi uma questão que ocupou permanentemente o filósofo francês, de origem grega, Cornelius Castoriadis, e é uma interrogação à qual faz bem voltar. Ela permite-nos fugir à esfera mais restrita das nossas preocupações políticas habituais, que são ditadas pelos nossos juízos sobre o que consideramos mais perigoso e sobre como evitar tais perigos. De um certo modo, é verdade, as duas questões encontram-se ligadas entre si, mas a interrogação sobre a diversidade das sociedades humanas não nos conduz directamente a nenhum tipo de resposta particular no que respeita aos nossos medos e desejos políticos presentes, a não ser talvez num sentido muito derivado e vago.

Meio por acaso, apanhei-me a ler nestes últimos tempos alguma literatura sobre os astecas e sobre a sociedade vitoriana. E nestas coisas surge fatalmente, como pano de fundo da leitura, a pergunta persistente: “como era ser asteca?” e “como era ser um inglês da segunda metade do século XIX?”. Dito de outra maneira: que tipo antropológico era cada um dos dois? Para o leigo, pelo menos para mim, é o maior interesse da história, aquilo que nos promete um maior contacto com o desconhecido, e com um desconhecido que se sabe de saber certo ter existido realmente, mais longínquo ou mais próximo.

Como mandam os livros, o exercício da simpatia é de regra. Por isso, em relação aos astecas não basta o maravilhamento com a sua arte, nomeadamente a prodigiosa escultura, em que a morte e a violência vivem tornadas objecto de beleza. É preciso ir mais além, ir directamente ao horror, e, por exemplo, procurar viver de dentro o significado atribuído aos sacrifícios humanos. Como se sabe, eles eram praticados em dimensões extraordinárias, muito para além, parece, das conhecidas pelos Maias e pelos Incas. Tratava-se de, simbolicamente, alimentar os deuses, particularmente o Sol, que sem tais sacrifícios desapareceria. Mas o que é que isso quer dizer? Que sentido, real, concreto, vivido, possuia o ritual? E porque é que se acreditava que os sacrifícios das crianças eram particularmente favoráveis a Tlaloc, o deus da chuva? Há, é claro, uma razão vagamente compreensível: as crianças, além de berrarem mais, choravam mais, tornando assim supostamente a terra mais fértil. Mas não são tanto as razões, que podemos vagamente identificar ou não, que são misteriosas. É o gesto de nelas acreditar, a própria crença em si, vivida subjectivamente, que nos atrai para o radicalmente desconhecido. E o que possamos buscar como analogia contemporânea dessas crenças não nos faz avançar muito. Há uma irredutibilidade última daquela criação humana, daquele tipo antropológico, que quase tocamos mentalmente ao ler o que sobre ela se escreveu. Mas a irredutibilidade é, por definição, inapropriável. Não há contacto mental que nos permita verdadeiramente saber o que era ser asteca – como, embora num plano obviamente mais radical, não podemos nunca saber o que é ser um morcego.

Com os vitorianos a dificuldade é evidentemente menor. A proximidade no tempo, a possibilidade de identificação com uma tradição que em parte partilhamos, facilitam certamente a dimensão compreensiva da simpatia. Para mais, na sua complexidade e nas suas contradições, a sociedade vitoriana representa muito do melhor daquilo que, de acordo com os nossos actuais padrões, a humanidade até hoje nos ofereceu. O imperialismo, com os seus inevitáveis horrores (embora não o possamos reduzir a estes), não pode nunca fazer esquecer a progressiva e muito real institucionalização da preocupação com a sorte dos mais desfavorecidos e o desenvolvimento de uma ética, de uma criação moral particular, da qual somos sob muitos aspectos herdeiros. Além disso, a literatura permite-nos percepcionar as crenças, a forma como elas eram subjectivamente vividas, de um modo que nos é obviamente impossível no que respeita aos astecas. Resta que, tal como estes, os vitorianos representam um tipo antropológico particular, uma criação humana singular que nos é, em última análise, inapropriável. Sabemos deles muito mais, compreendemo-los muito melhor, somos deles muito mais próximos, herdámos a sua ciência e a sua literatura, muitos dos seus princípios políticos, podemo-nos em parte descobrir a nós próprios neles – mas subsiste também face a eles uma distância que introduz não apenas o sentimento de uma diferença, como, mais do que isso, de uma alteridade em relação a nós. As suas crenças, por próximas que fossem, em muitos aspectos, da nossas, não são as nossas crenças, e a questão da sua vivência subjectiva é para nós objecto de uma curiosidade que contém já em si a impossibilidade de ser inteiramente satisfeita.

Li no outro dia que Cesare Lombroso, o célebre criminologista italiano, que defendia, como se sabe, inspirando-se parcialmente em Darwin, a ideia segundo a qual os criminosos representam uma regressão hereditariamente motivada a fases primitivas da evolução humana, se interessou algum tempo pelas tatuagens. A tatuagem era para ele um traço característico do homem primitivo, subsistindo ainda hoje nos selvagens. E era também algo de regularmente observável nos criminosos. Com método e rigor, observou os lúgubres estados de espírito que as tatuagens exprimiam: “nascido sob uma má estrela”, “pouca sorte”, “vingança”, e por aí adiante. Não pretendo insistir no facto de que hoje em dia Lumbroso teria, quanto mais não fosse por razões quantitativas, a vida mais difícil do que no fim do século XIX. Apenas assinalar que a sua probidade científica o levou a constatar a existência de excepções. Encontrou, suponho que num braço, uma mensagem inequivocamente positiva: “Longa vida à França e às batatas fritas francesas!”.

No fundo, o corpo da humanidade é, como a Lydia de Groucho Marx, uma imensa enciclopédia de tatuagens, cada uma delas exprimindo um conjunto de significações imaginárias, para voltar a Castoriadis, particulares e irredutíveis, com tempos e lugares precisos. Com sorte, percebemos bem a tatuagem em que vivemos e as que nos são mais próximas (às quais chamamos a nossa tradição). As outras, podemos apenas adivinhá-las. E mesmo as mais próximas revelam sentidos que não são já nunca inteiramente os nossos.
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Nasci a 18 de Maio de 1960. Licenciei-me em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e doutorei-me, também em Filosofia, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Sou professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador no Instituto de Filosofia da mesma Universidade.
Fonte:  http://observador.pt/opiniao/o-lugar-e-o-tempo/ 23/02/017

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Armando Silva Carvalho vence Prémio Literário Casino da Póvoa

"A Sombra do Mar", publicado pela Assírio & Alvim, vale ao poeta o prémio de 20 mil euros. O anúncio foi feito esta quarta-feira, no festival Correntes d'Escritas.
  • Sara Otto Coelho
A Sombra do Mar, do poeta Armando Silva Carvalho, é o vencedor do Prémio Literário Casino da Póvoa 2017. O anúncio foi feito por Almeida Faria, esta quarta-feira, na sessão oficial de abertura da 18.ª edição do festival literário Correntes d’Escritas.

Publicado em 2015 pela Assírio & Alvim, A Sombra do Mar já tinha valido a Armando Silva Carvalho o Prémio Literário Fundação Inês de Castro, o Grande Prémio de Poesia APE, o Prémio PEN Clube e o Prémio Autores SPA/RTP.


O Júri, constituído por Almeida Faria, Ana Gabriela Macedo, Carlos Quiroga, Inês Pedrosa e Isaque Ferreira, referiu, em comunicado, que A Sombra do Mar traz “um conjunto de poemas formando um corpo orgânico de grande unidade estilística e temática, no qual as alusões ao mar e à água constitui um Leitmotiv que percorre todo o livro em sucessivas variações: água ‘criteriosa e diária’, ‘água arrepiada’, ‘águas sobreviventes'”, entre outras referências.

“Água e sombra são as palavras-chave de um percurso reflexivo capaz de unir a prosa do mundo” à mais alta expressão lírica de poesia contemporânea em língua portuguesa.” Exemplo disso é este excerto, do poema “A Água”:

Devagar vou beijando esta água que esplandece nas veias arqueadas,
pontas de fogo nas mãos,
relevos de outros luxos vulcânicos,
hoje regatos de pedra, testamentos, no silencioso acordar
da casa adormecida.
Estou só entre estas mãos, a água e o meu passado.
Gostava que a idade fosse o espelho
que convertesse a água num filme recuperado,
e os actores de riso mudo corressem
ao entendimento de heraclito.

O vencedor do Prémio Casino da Póvoa distingue todos os anos uma obra publicada em Portugal (1ª edição), editada nos últimos dois anos e meio, escrita por autores de língua portuguesa ou castelhana. Para além do prestígio, o prémio tem o valor pecuniário de 20 mil euros. O júri já tinha escolhido oito finalistas entre os mais de 70 livros de poesia a concurso. António Carlos Cortez (Animais Feridos), Paulo José Miranda (Auto-retratos), Daniel Jonas (Bisonte), Nuno Júdice (O fruto da gramática), Miguel-Manso (Persianas), Filipa Leal (Vem à Quinta-Feira) e o ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes (Outro Ulisses regressa a casa) eram os outros sete finalistas.

Armando Silva Carvalho nasceu em 1938, em Óbidos. Licenciado em Direito, frequentou também tendo o curso de Filosofia da Faculdade de Letras. Colaborou com o Colóquio/Letras, Jornal de Letras, Diário de Notícias e traduziu obras de Becket, Aimé Cesaire, Jean Genet, Marguerite Duras, entre outros autores. Lírica Consumível, a primeira obra que publicou, em 1965, foi distinguida com o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores.

No ano passado, também foi uma obra publicada pela Assírio & Alvim a vencedora, desta vez um romance: As Leis da Fronteira, do espanhol Javier Cercas.

Excerto aqui:  http://recursos.bertrand.pt/recurso?id=10366304 
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Fonte: http://observador.pt/2017/02/22/armando-silva-carvalho-vence-premio-literario-casino-da-povoa/

A vida muda e nós com ela, revela estudo

Crianças que foram analisadas passaram por muitas mudanças, uma delas foi a Segunda Guerra

Crianças que foram analisadas passaram por muitas mudanças, uma delas foi a Segunda Guerra DR

 Estudo

Perseverança, estabilidade e consciência. Estes são traços de personalidade que duram uma vida? Não.

Perseverança, estabilidade e consciência. Estes são traços de personalidade que duram uma vida? Não, dizem os investigadores da Universidade de Edimburgo que levaram a cabo um estudo que abrange seis décadas e descobriram que a nossa personalidade muda à medida que a vida avança entre a adolescência e a velhice.

Em 1947 foi pedido aos professores de 1200 adolescentes escoceses, de 14 anos, que preenchessem um questionário de seis páginas sobre saúde mental, em que era pedido que avaliassem os níveis de autoconfiança, perseverança, estabilidade de emoções, consciência, originalidade e desejo de aprender. Além disso, os adolescentes também fizeram testes de inteligência.

Em 2012, os investigadores identificaram 635 dos que participaram no estudo inicial. Então já não eram crianças, mas tinham 77 anos. Voltaram a ser testados, isto é, voltaram a fazer os tais testes de inteligência, assim como, desta vez não foi pedido ao professor, mas a alguém próximo (um amigo ou familiar) que voltasse a preencher o questionário.

Foi com surpresa que os investigadores olharam para os resultados porque esperavam que existisse estabilidade nos traços de personalidade passados 63 anos, explicou Mathew Harris, professor da Universidade de Edimburgo, ao The Times.

Apenas duas características se mantiveram – a estabilidade do humor e a consciência –, mas mesmos nestas não há uma garantia de que se mantenham durante toda a vida, salvaguarda o investigador.

Então, o que interfere na nossa vida para que mudemos à medida que vamos envelhecendo? Existem factores genéticos e ambientais que podem contribuir e ainda não é claro quais são os traços de personalidade que podem ser mais afectados, dizem ao The Times.

Mas no caso concreto deste grupo observado são pessoas que nasceram em 1936, viveram a Segunda Guerra e chegaram ao século XXI e à revolução digital, ou seja, os factores ambientais terão contribuido fortemente.  

Apesar de estudos anteriores mostrarem que há mais consistência nos traços de personalidade, Harris justifica que se tratam de estudos que observaram as pessoas em períodos mais curtos de tempo – por exemplo, entre a adolescência e a vida adulta ou entre a vida adulta e a velhice –, logo, o que este estudo que acompanha 60 anos da vida das pessoas vem confirmar é que a personalidade muda lentamente e não de repente.

"A personalidade muda gradualmente ao longo da vida. Pode haver apenas mudanças subtis em períodos relativamente curtos, mas essas mudanças acumulam-se, levando a maiores diferenças ao longo de mais tempo. Pode mudar mais rapidamente em determinados momentos da vida, como o desenvolvimento do adolescente", explicam os investigadores, concuindo que "é menos claro" que eventos específicos da vida tenham efeitos substanciais e duradouros sobre a personalidade.
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FONTE: http://lifestyle.publico.pt/noticias/370451_a-vida-muda-e-nos-com-ela-revela-estudo 21/12/2017

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Diálogos com Jonathan Montaldo

intermediado por Colette Lafia, em novembro de 2015


Tive a grande alegria de conhecer Jonathan Montaldo há doze anos no Centro Santa Sabina em San Rafael, Califórnia, quando ele conduziu um retiro baseado nos ensinamentos de Thomas Merton. No transcurso dos anos, cultivamos nossa amizade, e sou grata pela conexão entre nossas vidas e caminhadas. Quando eu estava escrevendo Seeking Surrender, texto centrado em minha amizade com o Irmão René da Abadia de Gethsemani, em Kentucky, Jonathan incentivou e apoiou meu projeto.
Jonathan Montaldo é um dos principais eruditos especializados em Thomas Merton. Editou numerosos volumes de escritos de Merton e é ex-diretor do Centro Thomas Merton da Universidade Bellarmine, em Kentucky, que contém o maior dos arquivos da obra de Merton. O ano de 2015 foi movimentado para ele e seus colegas, que contribuíram em diferentes locais para celebrar o centenário de Merton (1915 -2015). Você encontrará mais informações sobre seu trabalho e seus livros em www.MonksWorks.com.

Jonathan fez setenta anos no dia 4 de outubro deste ano em que comemoramos o centenário de Merton. Disse-me que sente estar entrando em seus “setenta sagrados”, e a jovialidade deste comentário me fez querer saber mais. Pedi uma entrevista por escrito e uma conversa sobre sua vida e seu trabalho como acadêmico dedicado a Merton. Enviei-lhe minhas perguntas por e-mail. Ele acabara de pregar um retiro em Assis, na Itália, em 4 de novembro, após o qual escreveu as respostas em Roma enquanto esperava o voo para a Suécia, onde faria quatro apresentações durante um Simpósio Merton patrocinado pela Comunidade Ecumênica de Bjärka-Saby, monásticos que são principalmente Pentecostais.

Esse evento na Suécia (ele vai conviver com sua comunidade monástica diferente durante três semanas) encerrará as atividades de Jonathan nos festejos do ano do centenário de Merton, durante o qual este foi “elevado” ao reconhecimento pelo Papa Francisco em discurso perante o Congresso dos Estados Unidos em 24 de setembro. O Papa o descreve como “um homem de oração, um pensador que desafiou as certezas de seu tempo e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja. Foi também um homem de diálogo, um promotor da paz entre os povos e as religiões.” A seguir comparou-se com Merton como “construtor de pontes” por meio do diálogo para ajudar a superar diferenças históricas entre as pessoas e suas tradições religiosas.

De todos os seus projetos relacionados a Merton, quais são os seus favoritos — aqueles de que mais se orgulha?

Leio Merton desde meus treze anos de idade, interesse que foi despertado pela entrada de um primo mais velho na vida monástica Trapista-Cisterciense na Abadia de São José em Spencer, Massachusetts. Peguei sua autobiografia, A Montanha Dos Sete Patamares, na mesa de cabeceira do meu tio Bert e meu coração foi “fisgado”. Lembro-me de ler, a seguir, um livro de fotografias de monges que viviam no mosteiro francês de Pierre-qui-Vire, do século XII, cuja Introdução Merton escrevera. Esse livro, Silence in Heaven (Silêncio no Céu), apresentava a visão de Merton sobre a vida monástica da maneira mais romântica, com fotos profissionais e artísticas dos monges, inclusive os muito jovens. Ao ver meninos poucos anos mais velhos do que eu envergando suas cogulas brancas na Missa, com a luz das velas do altar brilhando em seus rostos, ouvi um “chamado” e quis estar naquela foto. Teria sido um prato cheio para um junguiano, especialmente se eu continuasse a falar sobre o que as palavras de Merton e aquelas lindas imagens despertaram em mim – uma dimensão da minha alma que nunca perdi ao longo de minha sinuosa jornada pela vida.

“De algum modo profundo que eu mesmo não posso compreender, continuo sendo — aos quase setenta anos – aquele menino piedoso que queria amar a Deus em uma comunidade monástica.”

Depois de entrar na vida religiosa aos dezessete, após cinco anos de estudo para ser Jesuíta na província de Nova Orleans, saí relutantemente da Companhia de Jesus, pois eu era imaturo demais para perceber que devia haver um modo íntegro e correto de ser ao mesmo tempo gay e padre Jesuíta. Renunciei aos meus votos em 8 de dezembro de 1967, aos 22 anos, na esperança de crescer. Distanciei-me de uma vocação que amava e para a qual de fato era chamado (entendo isto agora), dando à minha tentativa imatura a designação de “imaculada concepção errada”.

Convocado quando estava na pós-graduação, alistei-me na Marinha mas fui para Da Nang, Vietnã, servir em Freedom Hill, um dos dois caras da Marinha em uma base de Fuzileiros Navais. Evitávamos problemas e nos escondíamos nas sombras, sabendo que era mais fácil morrermos no fogo cruzado dos fuzileiros do que feridos pelos norte-vietnamitas. Fiquei estacionado na Virginia, e depois, por gloriosos dois anos e meio, em Nápoles, na Itália, antes de receber o título de Mestre em Teologia e Literatura da Emory University com uma tese sobre Merton: “Toward the Only Real City in America: Paradise and Utopia in the Autobiography of Thomas Merton” (Rumo à Única Cidade Real nos Estados Unidos: Paraíso e Utopia na Autobiografia de Thomas Merton). Eu estava com vinte e nove anos e datilografava cartões de biblioteca para poder comer enquanto estudava, então decidi não fazer doutorado, mas conseguir um emprego que assegurasse minha sobrevivência. Isto foi em 1974.

Em 1986 – poupando-lhe os detalhes da minha vida errática – alguns amigos por fim se deram conta de que eu estava sem rumo e insistiram para que eu participasse de uma firma com eles, o que me proporcionou, sete anos depois, uma ótima situação financeira. A seguir, tomei um ano sabático cuidando de tarefas leves na firma e assumi um projeto para Robert Daggy no Centro Thomas Merton de Bellarmine, em Louisville.

Em Nova Jersey, onde estava morando, usei fotocópias e uma máquina de escrever para reproduzir em fac-símile quatro dos cadernos de trabalho de Merton, que quase ninguém conseguia ler (havia cinquenta e um desses “cadernos de leitura” só no acervo de Bellarmine). Adicionei notas de rodapé e bibliografias dos livros que ele estava lendo e entreguei tudo a Bob Daggy – que se encantou.

O Irmão Patrick Hart, meu amigo desde a época da pesquisa que fiz em Gethsemani para minha tese, em 1974, também ficou impressionado. Quando foi nomeado Editor Geral dos diários completos de Merton, que seriam publicados pela editora HarperSanFrancisco em sete volumes, perguntou se eu estava interessado em editar o segundo volume, que se tornou Entering the Silence: Becoming a Monk and a Writer (A entrada no silêncio: tornar-se monge e escritor). Morri de medo e disse “Mas é claro!”. Assim começou meu caminho como servidor do legado de Merton até agora. Todo Natal escrevo ao Irmão Patrick um cartão expressando, uma vez mais, que ele é o pai da minha vocação madura e verdadeira. Ele me tirou do nada e me levou a trabalhar no que, visto retrospectivamente, pareço ter nascido para realizar.
“Cheguei aos setenta anos no mês passado e sinto que preciso abandonar aos poucos a balsa que os textos de Merton me deram para eu atravessar o rio da minha vida.”
Escrevi sobre Merton em ensaios e introduções a minhas edições de seus livros, mas, de certo modo, nunca falei com minha própria voz, escrevendo muito cedo que sabia que os editores devem apagar-se atrás de seus autores.

Mais de uma vez me perguntaram onde termina Merton e começo eu. Com certeza me identifico demais com a caminhada de Merton em busca de Deus na vida monástica, mas nunca quis conhece-lo pessoalmente em Gethsemani. Alguns amigos meus, sim, mas não os invejei. Não me interessava apertar a mão de Merton.

“Mesmo no Centro Merton, quando peguei em minhas próprias mãos seus diários pessoais, não foi Merton que me trouxe lágrimas aos olhos, mas seus textos, através dos quais encontrei um lugar onde viver, evoluir e ter meu ser. O coração falou ao coração, mas só nos textos, nas palavras, nos gestos que ele me comunicou sobre um caminho em direção a um tipo de vida com o qual eu sonhava quando era menino.”

Em reunião recente da Sociedade Merton Britânica em Oakham, perguntaram aos quatro oradores da plenária por que se interessavam por Thomas Merton. Na minha vez, eu disse que Merton fora como uma balsa para mim, mas, como ensinou Buda, uma vez que você junta diferentes materiais e improvisa uma balsa para atravessar um rio sem ponte nem ferry, depois você tem de largar a balsa e continuar caminhando com seus próprios pés. Ao dizer isto, chorei diante daquela multidão majoritariamente britânica – só posso imaginar seu horror por essa demonstração de impropriedade.
Desde 2012, quando a formulei em público, repeti esta intuição muitas vezes até um amigo cansar e me dizer: “Olha, cara, você ainda está se aferrando à sua balsa Merton, só que está se dando conta de que você e a sua balsa estão indo em direção a uma catarata. Curta o raio da queda e cale a boca.”

Então, olhando retrospectivamente – por fim respondo à sua pergunta -, meu trabalho favorito é o projeto que o Irmão Patrick empreendeu para dar ao editor uma “antologia” que combinava em um só os sete volumes dos diários de Merton. Produzimos um livro de sete capítulos, cada um correspondente a um volume, que foi altamente editado, o que assinalei de forma transparente para o leitor na introdução. Foi o projeto mais prazeroso que já empreendi. Fiz meu próprio caminho através dos bosques dos diários de Merton para produzir Merton na intimidade: Sua vida em seus diários.

Embora eu depois apresente os escritos de Merton sob muitos aspectos – volumes como Dialogues with Silence: His Prayers and Drawings, A Year with Thomas Merton, e Choosing to Love the World: Notes on Contemplation (Diálogos com o Silêncio: Suas Orações e Desenhos, Um ano com Thomas Merton e Escolher Amar o Mundo: Notas sobre Contemplação) -, sou grato ao Irmão Patrick sobretudo por ter-me permitido produzir com ele minha apresentação “íntima” de quem era Merton à luz de minha própria leitura e de minha perspectiva pessoal de vida sobre quem ele era.

Ao longo desse caminho, houve momentos em que você se achou consumido demais com Merton e se perdendo a si mesmo?

A resposta breve é nunca. Nunca me canso de ler e falar sobre os valores que descobri ao ouvir a “voz” de Merton. O texto dele foi meu mentor, e em seus textos descobri consolação duradoura por ter feito muita besteira na minha caminhada para ser um ser humano mais profundo e mais inclusivo. Seus textos foram espelhos para mim.

À medida que Merton revela com arte suas lutas, fui sentindo que minhas próprias lutas para tornar-me um ser humano mais profundo e amplo, viver de forma expansiva com mais coragem, honestidade e alegria, são a verdadeira substância para a elaboração da vida “espiritual”.
Merton me ensinou que sempre serei um noviço, todos os dia recomeçando, e que, faça eu o que fizer para cuidar da minha vida interior e servir ao próximo, sempre terei de me ajoelhar e esperar pela misericórdia que, como sei por experiência própria (e pela de Merton, de que seu texto está impregnado), nunca posso proporcionar a mim mesmo. Ao escrever esta resposta, estou pensando no final do Diário de um Pároco de Aldeia, de Bernanos, que termina com o reconhecimento pelo sacerdote de que ele deve contentar-se com quem realmente é: “Estou reconciliado com minha pobre, pobre casca. Tudo é graça.”

Você gostaria de compartilhar algum pensamento sobre como viver a caminhada espiritual?

Não. Os pensamentos que comuniquei por escrito sobre “a vida espiritual” destinam-se a compartilhar a maneira como vejo a teologia vivida por Merton e manifestada por seus escritos, todos eles – diários, reflexões espirituais, cartas, poemas, manifestos políticos, apelos à justiça social e à não-violência.

Mas se você me pedisse para ser totalmente franco, eu diria que foram seus escritos autobiográficos que mais me ensinaram. Quanto mais a fala de Merton é pessoal, mais se torna universal. Eu o entendo e me entendo quando ele deixa de lado a pose de monge santo e conta ao seu leitor como é para ele.

Os escritos autobiográficos de Merton, que ele chamou de sua “arte da confissão e testemunho”, foram para mim – e para centenas de milhares de outros leitores que se descobriram em sua revelação – a grande balsa, veículo para um “caminho” a ser percorrido ao avançar na escuridão e na alegria de estar vivos e despertos enquanto passamos pela total catástrofe de sermos humanos. Seu escrito autobiográfico é um testamento de sua transparência compassiva para com o leitor. “Você está bem atolado, leitor, e eu também, mas são muitas as possibilidades de contemplação criativa e de ação quando você permanece na estrada que leva à alegria.”

Você acabou de fazer setenta anos. O que é mais importante para você agora?

Sempre concluo meus retiros da mesma maneira. Digo em voz alta que, “se há uma coisa que aprendi com Thomas Merton, é que se pode escrever e falar lindamente sobre a vida espiritual sem de fato viver uma linda vida espiritual. Então eu lhes peço (às vezes minha voz treme, mas costumo ficar firme ao fazer este apelo) que, ao sair daqui, rezem por mim para que alguém como eu, que ousa apresentar “ideias” sobre a vida espiritual em público, não acabe ele mesmo se perdendo.”

Se eu puder, agora quero por fim manter-me sobre meus próprios pés e, nas palavras de Mary Oliver, “deixar meu corpo brando amar o que ele ama”.

Passei décadas olhando com preconceito a vida religiosa institucionalizada, desdenhando a própria ideia da busca de Deus e da santidade. Percebo (só tive essa “epifania” semana passada em Assis) que esse era meu mecanismo de defesa para me distanciar de minha desilusão duradoura comigo mesmo por ter sido incapaz, devido a tantas fissuras na minha personalidade, de viver a vida que vislumbrei para mim mesmo ao ler Silence in Heaven.

Sim, sempre quis ser monge, mas minha personalidade não o possibilitou. De fato, penso que as velhas formas de vida monástica institucionalizada (há experimentos por toda parte) estão em vias de extinção. A Abadia de Gethsemani um dia será uma comunidade monástica verdadeiramente experimental aberta ao mundo, ou se tornará uma “Trapistalândia”, uma espécie de parque temático onde (jovens) atores contratados cantam em coro sete vezes por dia. E, todo dia às duas da tarde, o visitante pode assistir a um funeral Trapista enquanto um manequim vestindo hábito cisterciense é baixado à cova, mas sem que se espalhe a camada de terra no final, pois no dia seguinte haverá outra encenação. Isto não quer dizer que a vida Trapista norte-americana desde meados do século XIX tenha sido em vão. Muitos homens e mulheres foram salvos pela Regra de São Bento, em particular pelo carisma Cisterciense.

Mas, a meu ver, ultrapassamos um ponto de inflexão. Os veteranos estão quase todos lá, e os que conheço são seres humanos profundamente expansivos, compassivos e alegres. São cheios de generosidade, motivados por um apreço por sua própria humanidade e a de todos os demais. Os tempos, contudo, não favorecem a continuidade exatamente da mesma maneira no caso dos que estão chegando agora. Eles vão encontrar seus próprios caminhos, alguns deles sem dúvida formais, mas de maneiras que serão diferentes do tipo de vida monástica que Merton amava, a qual, contudo, sabia e previa que deveria acabar sendo proveitosamente transformada.

Pessoalmente, estou aprendendo a morrer bem. Estou me treinando para quando chegar a hora, e quem sabe se será em breve, talvez esta noite. Eu gostaria de, se estiver consciente, morrer com lágrimas de gratidão por todas as bênçãos que recebi através de tantos que me amaram apesar de mim mesmo e, mais milagrosamente, me amaram apesar de si mesmos. Quero morrer, se estiver consciente, dizendo a quem estiver segurando minha mão, mesmo se for um profissional de enfermaria desconhecido – que seja gay, por favor, mas, em todo caso, prefiro uma enfermeira -, que não fique triste. Ultimamente, tenho dito a mim mesmo repetidas vezes, ao me treinar, que tudo foi graça. Espero que, ao sucumbir, toda a minha vida e as pessoas que dela fizeram parte passem diante dos meus olhos, como ocorre com os afogados. E, nas palavras de Mary Oliver, dou-me conta com gratidão de que “fiz mais do que passar pelo mundo a passeio”.
Jonathan Montaldo
6 de novembro de 2015
Roma, Itália
Você pode entrar em contato com Jonathan escrevendo para jonathan.montaldo@gmail.com.
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Fonte:  http://merton.org.br/dialogos-com-jonathan-montaldo.html

Era da pós-civilidade

Frei Betto*

Descrição: Descrição: http://correiocidadania.com.br/images/intolerancia.jpg

Por que tanto ódio nas redes so­ciais? Por que muitos ex­põem ali o que há neles de mais per­verso e mal­doso? Agora, o ad­ver­sário vira ini­migo; o opo­sitor, de­sa­feto; o di­fe­rente, an­tagô­nico. A razão nau­fraga sob o ni­i­lismo exa­cer­bado e a emoção ex­plode a flor da pele em sur­pre­en­dente fe­ro­ci­dade.
    
Freud, em “O mal-estar na cul­tura”, frisa que a vida em so­ci­e­dade nos induz a re­primir as pul­sões. O outro é o nosso li­mite. E Lacan nos faz en­tender que, na tensão entre a pulsão e a cul­tura, não temos outro re­curso além da lin­guagem. E ela é sempre dúbia. Assim, na vida so­cial como no trân­sito, somos ca­pazes de ler a si­na­li­zação e pro­cu­ramos nos con­duzir de modo a evitar aci­dentes.
    
As redes so­ciais, no en­tanto, são o so­ma­tório de in­di­vi­du­a­li­dades re­co­lhidas a seus res­pec­tivos ni­chos ou trin­cheiras. Muitos se en­cas­telam no pró­prio ego e perdem horas no pingue-pongue nar­cí­sico em torno de vidas alheias. Não co­mu­nicam ideia, su­gestão ou ati­vi­dade. Apenas pra­ticam o ona­nismo ci­ber­né­tico.
    
O outro deixa de ser real. É vir­tual. E o emissor ca­nibal já não pre­cisa conter as suas pul­sões e mo­derar a sua lin­guagem. Julga-se ina­tin­gível. Acima de qual­quer pa­drão ci­vi­li­za­tório, capaz de ditar re­gras de edu­cação re­cí­proca, ele se ar­vora em juiz im­pla­cável com di­reito de ofender e ri­di­cu­la­rizar os réus de suas amargas emo­ções.
    
Na in­fovia, o ego im­plode o su­pe­rego e abre o canal para que ve­nham à tona as pul­sões mais pri­mi­tivas. O as­sas­sino vir­tual pro­move a morte sim­bó­lica de todos que estão fo­cados no alvo de seu ódio: Ma­risa Le­tícia; Maria Júlia Cou­tinho; Le­o­nardo Vi­eira; réus da Lava Jato etc. A di­fe­rença é que não aperta o ga­tilho, apenas di­gita.
    
Esse gozo pul­si­onal, que im­pele à sa­tis­fação ime­diata, ig­nora toda es­cala de va­lores. E in­fan­ti­liza, faz a pessoa re­tro­ceder à fase da ir­res­pon­sa­bi­li­dade. Des­titui-se o su­jeito ra­ci­onal que ela de­veria ser. As “feras” do in­cons­ci­ente afloram. O réptil que ha­bita cada um de nós ex­pele, enfim, o seu ve­neno.
    
O su­jeito ra­ci­onal exerce vi­gi­lância sobre si mesmo e de­lega po­deres às ins­ti­tui­ções (ju­di­ciais, po­li­ciais etc.) que têm por função as­se­gurar à so­ci­e­dade um mí­nimo de har­monia. Essa re­pressão cria as con­di­ções de su­bli­mação e, por­tanto, de cul­tura e ci­vi­li­dade. Sem ela, o outro se torna ob­jeto de ab­jeção.
    
Não po­demos sa­ciar todos os nossos de­sejos. Os li­mites são in­trín­secos à nossa li­ber­dade, que se funda nas op­ções, nas es­co­lhas, e não na pulsão. Porém, na era pós-ci­vi­li­dade o in­cons­ci­ente se vê livre de suas amarras e re­jeita a su­bli­mação. Isso fa­vo­rece a pos­tura anti-hu­ma­nista de des­prezo pelos di­reitos hu­manos e pela de­mo­cracia.
    
É hora de fa­mí­lias, es­colas e ou­tras ins­ti­tui­ções so­ciais cui­darem da edu­cação di­gital das novas ge­ra­ções. Não basta do­minar as novas tec­no­lo­gias. Elas são apenas fer­ra­mentas. Uma so­ci­e­dade de co­nhe­ci­mento se cons­trói com con­teúdos hu­ma­nís­ticos res­pal­dados pela ética e pela glo­ba­li­zação da so­li­da­ri­e­dade. Sem avançar nessa di­reção, cor­remos o risco de in­vi­a­bi­lizar o pro­jeto de uma hu­ma­ni­dade an­co­rada na jus­tiça e vo­ca­ci­o­nada à paz.
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* Frade Dominicano. Escritor.
Fonte:  http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12351-era-da-pos-civilidade 20/02/2017