segunda-feira, 31 de outubro de 2016

"O mundo está ficando leve demais"

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Para Gilles Lipovetsky, ciência e tecnologia disseminam noção de leveza.

Segundo filósofo francês Gilles Lipovetsky, a leveza é a máxima aspiração humana atual a sociedade contemporânea está se movendo sob o imperativo da leveza. Este é o novo tema do filósofo francês Gilles Lipovetsky, de 72 anos, um pensador que já escreveu sobre vários assuntos desprezados por muitos de seus colegas, como a moda e o luxo, e cunhou os termos "era do vazio" e "era hipermoderna". Em "Da Leveza, Rumo a uma Civilização Sem Peso" (Ed. Amarilys), ele analisa como o leve tornou-se a máxima aspiração humana e impôs-se em tudo: tecnologia, economia, publicidade, arquitetura, esporte, arte e política. Sem demonizar o seu tema, mas desvendando o seu uso muito além de um nível de moderação, ele sentencia nesta entrevista ao Valor: "O excesso de leveza prejudica a sociedade, a vida não pode ser leve em tudo".

Valor: Qual a origem desta "civilização da leveza"? 

Gilles Lipovetsky: O progresso tecnológico. Ele permitiu a fabricação de materiais cada vez mais leves. Máquinas que consomem cada vez menos energia. É um fator econômico. Temos aviões e carros mais velozes, mas mais leves. Enquanto no passado a leveza era apenas imaginária, hoje a ciência a faz real. Outro exemplo são os drones ou os smartphones de 200 gramas dentro de nossos bolsos que nos permitem contato com todo o universo! O segundo fator é a relação que temos hoje com os nossos corpos. Tudo condena a gordura e o peso. O corpo pesado é contra a beleza e a saúde.

Valor: Embora vivamos uma epidemia de obesidade...

Lipovetsky: O grande paradoxo é que, quanto mais consagramos a magreza, mais existem pessoas obesas. Existem 40% de norte-americanos acima do peso. Mais complexa é a questão quando há uma crescente paixão pelos esportes de deslizamento, surfe, skate, esqui, ou aéreos, que dão a sensação de leveza. Eles estão de acordo com o grande sonho da humanidade: voar. O terceiro fator, talvez o mais relevante, é o capitalismo de consumo. Ele é totalmente baseado na leveza. Eu chamo de "capitalismo de sedução". Ele celebra os valores leves: o prazer, a felicidade, a vida privada, o divertimento, as viagens... A leveza tornou-se um elemento essencial do crescimento econômico por meio do consumo. Ela não é mais um sonho, uma busca estética, é o "core" da tecnologia e, consequentemente, da economia.

Valor: Como a busca pela leveza altera o comportamento do consumidor?

Lipovetsky: Quanto mais celebram a leveza, mais as pessoas estão pressionadas pelo pesado. A civilização da leveza é regida pela coerção. A conquista da leveza é algo dolorosa. Nietzsche já nos havia alertado sobre isso [No livro, é citada a frase do filósofo alemão: "É bom o que é leve; tudo o que é divino se move com pés delicados"]. Muitas pessoas fogem do consumismo para as sabedorias antigas, como o budismo, a ioga, a meditação. São tecnologias da leveza. É um retiro do peso do consumismo. Uma busca do desenvolvimento pessoal na leveza.

Valor: A leveza é um problema a mais para a economia mundial ou pode ajudar?

Lipovetsky: No passado, o poder era ligado ao peso. O peso de um exército, o peso do castelo, o peso do canhão. Eram as indústrias pesadas. Hoje o que dá poder é a leveza. As empresas mais destacadas são o Google, o Facebook. Vendem mercadorias imateriais. Cada vez mais é a informação, a capacidade de poder gerar o mundo digital, o "big data". Com a nanotecnologia estamos no começo de um novo mundo. Michel Foucault criou o termo biopoder. Eu creio que o que nos caracteriza agora é o nanopoder e leva a uma "microfísica do poder". Esse universo nos promete coisas formidáveis. Vamos poder viver muito e com melhor saúde. Ao mesmo tempo, há ameaças: a sociedade da vigilância, o transumanismo, a inteligência artificial.

Valor: Como tudo, há também dois lados da leveza.

Lipovetsky: Tentei não demonizar a leveza. A leveza do capitalismo de consumo desenvolve uma leveza sem consistência. Não podemos construir uma sociedade sob o princípio da leveza. Por quê? É preciso que os homens trabalhem e trabalho necessita esforço. Existem duas levezas. Uma é consumista. Esta é como a leveza da folha, vai com o vento. Ela não permite construir nada. Creio que, muitas vezes, os homens sofrem porque eles são consumidores em excesso. O consumo é bom. Mas por si só não satisfaz totalmente. É impossível sustentar uma sociedade onde tudo é baseado nas marcas, na moda, em coisas que se vê nas séries de televisão. É um drama? Não. Mas podemos fazer melhor. Desenvolver outra forma de leveza. Mais construtiva. A leveza do artista.

Valor: Na sua opinião, como a leveza mudou a política?

Lipovetsky: A leveza produziu uma cidadania light. Isso se manifesta, sobretudo, na abstenção alta. Os eleitores votam quando querem. No entanto, a política não é leve. A desconfiança é grande. A política suscitou a rejeição do cidadão. O universo da leveza modificou certos aspectos da vida política. Não se pode moldar um político em um talk-show no qual se faz a geologia estética de um líder. Os problemas políticos não são leves: mundialização, aquecimento global, desigualdade social. Não creio, portanto, em uma cidadania light ou uma política leve. É preciso desenvolver o nível de educação política do cidadão.

Valor: No entanto, o seu livro aponta a leveza também na educação.

Lipovetsky: Sim. A educação leve, com poucas disciplinas, é uma educação sem obrigações. Pode haver algo de positivo, mas existe muito mais de negativo quando se busca uma leveza na educação. Não podemos conceber uma educação simplesmente com jogos eletrônicos, internet, vídeo, smartphones. A leveza é parte da vida. É preciso lhe dar essa parte. Os homens precisam da leveza como uma maneira de respirar. Mas o excesso de leveza prejudica a sociedade. A vida não pode ser leve em tudo. 
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Por Jorge Félix, para Valor, de São Paulo.  Caderno: Eu & Fim de Semana, impresso. pág.3.

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