quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Em defesa de Bob Dylan

Manuel S. Fonseca*

earlydylanstudio
Não tinham o direito de se servir de Bob Dylan para fazer o que fizeram. É só o que o jovem de calções que eu era e que admirou, bebeu, cheirou, dançou e inalou Bob Dylan tem a dizer. Querem fazer-me do grande Bob Dylan um pequeno e obscuro escritor.

Bob Dylan é grande por ter sido transgressor, profeta assimétrico, rebelde contra os conservadores, rebelde outra vez contra os iconoclastas de feira, mas sobretudo por ter marcado a música popular do século XX. Usou para isso palavras e escreveu-as, à mão, à máquina, para aí num Remington de escritor. Ultimamente num laptop, quem sabe. Mas as grandes e maravilhosas palavras que escreveu, escreveu-as para uma arquitectura que envolve sons, para uma construção a que chamamos música.  Soprou palavras e as palavras mudaram um tempo. Em cima de um palco incendiou um tempo. Não dentro de um livro.

Eu bem sei que, hoje, a um homem já não se chama um homem, a uma mulher já não se chama uma mulher, a nada se chama nada, porque a tudo se chama tudo. Confundem-se as estradas. Mas Bob Dylan caminhou tanto na mesma estrada que merece que dela se diga o nome. A enigmática estrada da Literatura não foi a estrada de Dylan. Porque há uma estrada da Literatura: faz-se escrevendo para o papel, para a publicação em páginas, para a emergência das palavras numa folha de papel, criando tessituras dramáticas que só existem nessa forma autónoma e só nessa forma específica, de papel e letras, geram o mistério de um inexplicável tumulto emocional. Alfabeto e lábios imóveis, um par de nervosos olhos que lê, são essas as loucas ferramentas dessa nação. A Literatura é uma imensa montanha com 25 séculos e tem uma tradição – ó raio de palavra que me saíste descomandada e ainda me vais perder!

A arte de Dylan é feita de som, com fúria ou sem fúria. A arte pela qual lhe deram, hoje, o Nobel é feita do silêncio íntimo de uma página de papel. Mesmo os silêncios da música de Dylan, na tradição de todos os silêncios da música, são distintos do silêncio da palavra cativa do papel. E é essa diferença entre os silêncios que faz a grandiosidade da tradição de tantas artes. São diferentes, mas se as chamarmos pelo nome, elas vêm. Procuram o mesmo instante, têm a mesma aspiração de sublime ou de caos, uma danada vontade de beleza, destruição e eternidade, mas são diferentes: uma, a Música; outra, a Literatura; outra, a Pintura. Cada uma com o seu silêncio, nem o silêncio da Arquitetura rima com os silêncios das outras.

Dylan escreveu. Escreveu contra a morte, contra o esquecimento, como todos os escritores, Mas escreveu numa barca de Caronte de cordas e percussão, de graves e agudos. A épica montanha que se chama Literatura, do alto dos seus 25 séculos, dispersa em epopeias ou elegias, lendas e narrativas, romances e haikus, odes ou epigramas, tem outra identidade. E não me venham com a conversa de que eu estou a levantar barreiras ou compartimentos estanques. Não é dizendo que a Literatura é o que não é, que se lhe renova a grandeza. Ou, nome que parece que foi usado, a universalidade.

Talvez um dia o mar desfaça e arraste essa montanha a que um dia chamámos Literatura – how many years can a mountain exist / Before it is washed to the sea? Não devia é o Prémio Nobel da Literatura ter atirado, como uma pequena vaga, Bob Dylan contra a montanha. Ele não se chama, nunca se chamará, Nob Dylan.
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* Escritor português.
Fonte: Site português:  http://www.escreveretriste.com/2016/10/em-defesa-de-bob-dylan/13/10/2016

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