quinta-feira, 27 de outubro de 2016

É possível ser idólatra ou iconoclasta à condição de não ser boçal

 Contado Calligaris*
 
Ilustração do Mariza para a coluna do Contardo de 27 de outubro de 2016
 Mariza/Editoria de Arte/Folhapress
 
Em 1995, durante um programa da TV Record, um bispo da Igreja Universal chutou uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. Não sei se era uma manifestação contra Nossa Senhora (para mostrar que ela não é Deus) ou contra as imagens em geral (para mostrar que elas não contêm nenhuma faísca da divindade). 

O bispo foi condenado por vilipêndio e discriminação da religião dos outros. Três anos depois, Marcello Crivella, outro bispo da Universal, cantor, senador e hoje candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro, lançou a canção "Um Chute na Heresia", na qual ele defende o bispo chutador e conclui assim repetidas estrofes: "Se ela é Deus, ela mesmo me castiga". 

Ou seja, deixem nós bispos chutarmos as estátuas dos outros e recebermos a conta no reino dos céus. Então, eu poderia chutar a canela de Crivella e esperar para ver: se tiver uma parcela de divindade nele, Deus me punirá, certo?

Enfim, Crivella expressou diante de seus rebanhos outras ideias interessantes. Por exemplo, sugeriu que filho de mãe que pensou em abortar pode crescer homossexual ou traficante. Também ele declarou que a Igreja Universal elegerá um presidente da República "que vai trabalhar por nós e por nossas igrejas" (eu achava que um presidente, uma vez eleito, trabalhasse pelo Brasil e por seu povo).
Enfim, o discurso que serve para arregimentar um rebanho é quase sempre boçal: ele propõe ideias mínimas que possam ser compartilhadas pelo maior número. A maioria dos presentes desaprova a homossexualidade, o tráfico e o aborto? Pois é, vamos combinar tudo numa ideia só: a mãe que pensa em aborto etc. 

Mas voltemos à "heresia" de quem venera as imagens. Existe uma tragédia de Eurípides (480 - 406 antes de Cristo), "Helena", que é encenada raramente. 

Para entender o enredo, é preciso lembrar como dizem que começou a guerra de Troia (entre 1.300 e 1.200 antes de Cristo). Páris, filho do rei de Troia, viajou para Esparta e se apaixonou por Helena, mulher do rei local, Menelau. Páris raptou Helena (ou Helena fugiu com ele, tanto faz). Menelau e todos os gregos foram para Troia e sitiaram a cidade por dez anos, até Ulisses inventar o famoso cavalo de Troia, que os troianos trouxeram para dentro de sua cidade sem saber que escondia soldados gregos. 

Essa guerra é contada na "Ilíada" de Homero. Na volta para casa, os gregos, e especialmente Ulisses, tiveram percalços infinitos, contados na "Odisseia", também de Homero. 

Agora, na origem dessa história toda, três deusas gregas estavam brigando para saber quem era a mais bonita, e Páris foi chamado para ser juiz. Ele escolheu Afrodite, a qual o recompensou com o amor de Helena. 

Só que, na tragédia de Eurípides, as duas perdedoras conspiraram para que a Helena que foi para Troia com Páris não fosse a mulher de Menelau, mas um ídolo –uma cópia perfeita, como um robô de "Westworld", a nova série da HBO. 

Gregos e troianos se estriparam durante dez anos por um ídolo, enquanto a verdadeira Helena estava escondida no Egito (no fim, "happy ending": Menelau a reencontra). 

Em suma, a guerra de Troia inaugura a literatura e a cultura ocidentais com dois ídolos: Helena e o famoso cavalo. 

Não é de estranhar; seria possível contar toda nossa história (ou, no mínimo, a história da arte ocidental) como uma meditação sobre as manifestações possíveis do que é ausente ou invisível. O objeto amado que idealizamos está no corpo aparente de quem amamos? E nosso corpo é um ídolo de nossa alma? E os mortos, seus retratos e seus monumentos, o que são? E como se manifesta Deus no mundo? 

A cristandade nunca parou de debater como, em Jesus, a natureza humana convivia com a divina –justamente para evitar que ele fosse considerado o ídolo (visível e encarnado) de um Deus invisível. Também discutimos para saber se o pão e o vinho na eucaristia são o corpo e o sangue de Cristo –mesma pergunta: seriam ídolos? 

Claro, somos sempre tentados pela possibilidade de tomar os ídolos pela coisa mesma. Há quem sonhe com bonecos de silicone, há quem venere um imagem como se fosse Deus e há quem ache que Deus pode estar nas letras da Escritura, mas nunca nas imagens. 

É possível ser idólatra ou iconoclasta, amar ou odiar as imagens, à condição de não renunciar à maravilhosa complexidade da experiência humana. Ou seja, à condição de não ser boçal. 
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* Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2016/10/1826498-e-possivel-ser-idolatra-ou-iconoclasta-a-condicao-de-nao-ser-bocal.shtml

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