quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Seria a meritocracia apenas um mito?


Rodrigo Constantino*
 
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É da natureza humana o “confirmation bias”, ou seja, aquele viés que busca sempre confirmar teses já pré-concebidas, em vez de entrar em contato com pontos de vista contrários na tentativa de se construir uma síntese com a antítese, ou talvez reforçar as crenças prévias, mas desta vez com mais embasamento. Na era das redes sociais polarizadas, essa característica ficou ainda mais comum.

Mas a busca desinteressada pela verdade deve nos colocar em constante contato com quem pensa diferente também. E por isso li recentemente dois livros de autores esquerdistas: The Myth of Meritocracy, do britânico James Bloodworth, e A Utilidade do Inútil, do italiano Nuccio Ordine. Ambos têm pontos interessantes contra o capitalismo, ainda que eu discorde de suas conclusões ou propostas. Esse texto vai se ater ao primeiro.

A tese de Bloodworth é a de que o conceito de meritocracia dominou tanto os trabalhistas de esquerda como os conservadores e liberais de “direita”. Todos falam em “mobilidade social”, adotando a premissa de que a meritocracia existe na prática e é fundamental para a sociedade. Em vez de uma “aristocracia de berço”, teríamos um sistema calcado somente no mérito individual. O autor pensa que a promessa é não apenas utópica, como prejudicial.

Um dos primeiros pontos que aborda é que, com base na crença no “self-made man”, a era moderna dispensa a caridade como valor, pois a fortuna é totalmente explicada pelo mérito e o esforço do indivíduo, que teria direito a todas as extravagâncias que o seu dinheiro pode comprar. A meritocracia levaria à insensibilidade, portanto. Algo que não bate com a filantropia americana, por exemplo, a maior do planeta.

Aqueles que ficaram para trás, os destituídos de posses, passaram a ser vistos como responsáveis por seu triste destino. A ideia de que o sucesso é fruto do mérito próprio impõe, como corolário, a ideia de que os fracassos também são responsabilidade do indivíduo. Isso sempre afastou muita gente da defesa do capitalismo, vale notar.

Mas, segundo o autor, apenas em momentos de mudanças econômicas profundas, que criam mobilidade estrutural, há a possibilidade de expansão geral, para todos, com mais espaço no topo. Em condições normais, ele acredita, a economia mais se parece um jogo de soma zero, em que um, para ganhar, precisa tirar do outro. A ascensão de alguém seria a queda de outro:

Apart from at times of rapid social change, there are a finite number of places in each social class – thus one person must move down in order to free up a place higher up for someone else to move up.
Com base nessa premissa, ele conclui que poucos conseguem efetivamente mudar de classe social. A mobilidade social britânica seria menor do que em outros países, e menor do que no passado, em sua “era de ouro”, que se devia às tais mudanças estruturais da economia.

Aqueles que ocupam lugares de destaque na economia e na política são os filhos dos endinheirados e poderosos. Somente 7% dos britânicos possuem escola privada, mas, segundo pesquisas, esses correspondem a uma parcela desproporcional em cargos relevantes, como o de juízes.

Em sua área jornalística ocorre o mesmo: mais de 40% dos colunistas de jornais e 26% dos executivos da BBC estudaram em escolas pagas. Um dos motivos, diz ele, está no “trabalho grátis” cada vez mais necessário para se destacar durante o começo da carreira, algo que só os filhos abastados podem se dar ao luxo de fazer. Enquanto isso, apenas 11% da elite veio de classes sociais mais baixas. Bloodworth não descarta o “elitismo de esquerda” como parte da explicação:

It is increasingly said that the public are ‘disenfranchised’ with politics because of ‘liberal elitism’ over issues such as Europe and immigration. There is undoubtedly a degree of truth to this. Outside of London, the ubiquity in politics of what the political scientist Samuel P. Huntington has termed ‘Davos man’ – rich, cosmopolitan and intensely bourgeois in his tastes – has left many who still value concepts like national identity feeling alienated.

Independentemente disso, ele alega que poucos teriam a coragem de afirmar que a Inglaterra hoje é uma meritocracia. Ao contrário: Bloodworth pensa, como George Orwell, que seu país é uma família com os membros errados no poder. Mas o autor não oferece utopias socialistas como uma fuga simples. Ele reconhece que a União Soviética foi um caos, que o planejamento central fracassou e as estatais nacionais se tornaram antros de ineficiência. Vários trechos do livro derrubam as saídas ilusórias:

In non-capitalist societies, patronage networks exercise an even greater influence on who fills desirable jobs and who gains access to the material rewards conferred on the elite. The best jobs invariably go to those with the best connections to the ruling party or dictator. […] There are of course things that governments and individual companies can do to negate the influence of networks. However, there is nothing – beyond solutions most of us would find unpalatable – that either government or private industry can do to completely eradicate them. […] When it comes to inequality, only a lunatic would argue for total economic equality. The central objection to this is a familiar one: how can complete equality exist without force? And if there must be an enforcer, how does that person remain equal to everyone else? […] This is of course a moot point. Equal opportunity will always be illusory because differentiation is a natural part of growing up. No government could equalise the quality of a child’s parenting even if it wanted to. Equality of opportunity is thus a utopian fantasy.

Qual, então, a solução? O pequeno livro deixa muito a desejar aqui. Parece mais preocupado em atacar a ideia de meritocracia em si. Há mesmo um grande problema com esse conceito? Eis o que julgo o maior erro do autor: confundir a pureza de uma boa ideia com sua colocação em prática, sempre imperfeita. O risco dessa postura é cair na “falácia do Nirvana”, apontar problemas do mundo real sem soluções concretas, ou pior, com propostas que pioram o problema na prática.

Não podemos monopolizar as virtudes. Todos, acredito, gostariam de ver melhores oportunidades para os mais pobres. Ninguém pode achar muito justo um garoto esforçado, inteligente, ser tão prejudicado por falta de melhores oportunidades, por viver num gueto ou favela, por ter que ralar desde cedo para ajudar no sustento da família.

Mas a conversa de adultos vai tocar nos pontos sensíveis da realidade: como melhorar isso de fato sem sacrificar as liberdades individuais? Até que ponto mais governo produz um cenário efetivamente melhor, em vez de produzir efeitos não-intencionais perversos? Será que o discurso contra os méritos individuais não leva ao vitimismo dos acomodados, que aprendem a chorar bem alto para mamar em tetas estatais?

Vamos às premissas: é claro que o berço faz diferença! Nascer em uma família abastada abre todo um leque de opções, como viagens, estudar nas melhores escolas, provavelmente uma educação mais nobre dentro de casa também, um bom networking, capital inicial para investimento, possibilidade de trabalho não remunerado no começo da carreira. Mas eis o importante: além de ser impossível mudar isso sem uma ditadura, essa condição desigual na largada não determina o destino dos indivíduos. Pode influenciar bastante, mas não determina.

Todos conhecem o ditado “avô rico, filho nobre, neto pobre”. Quantas famílias mantêm suas fortunas por várias gerações? E o mais importante: isso é mais comum em países capitalistas que incentivam o mérito ou em regimes intervencionistas com mais estado? As dinastias preferem o welfare state com o crony capitalism, isso está claro. É na simbiose com o governo que elas conseguem preservar seu status quo e criar barreiras para aqueles do andar de baixo.

Sociedades mais liberais, como já foi a americana, possuem, sim, maiores chances de sucesso para quem vem de baixo. O “american dream” não era baseado numa mentira: foi real para milhões de pessoas que, com seu esforço próprio, destacaram-se no mercado. Entendo a antipatia automática por essa ideia: como já foi dito, se o sucesso depende também do mérito individual, então o fracasso é responsabilidade do indivíduo, ao menos em parte. E isso assusta muitos.

Não precisamos fechar os olhos para o fator sorte, para o peso da ajuda familiar, para a importância do networking construído nas melhores escolas, universidades e vizinhança. Mas isso não é tudo, ainda que tenha influência. Existe o livre-arbítrio. Devemos enaltecer a responsabilidade individual, pois os homens são capazes de assumir as rédeas de suas vidas, ainda que nunca totalmente. E quanto mais liberal for uma economia, mais preponderante será o mérito no sucesso, ao contrário do que ocorre em regimes coletivistas estatizantes.

Punir o sucesso nunca foi o caminho para o progresso geral. Ao contrário: é o atalho mais curto para a miséria generalizada. Esse tipo de ataque à meritocracia acaba alimentando a inveja dos mais medíocres, sem melhorar efetivamente a vida dos mais pobres. No final do dia, a mensagem fica parecendo puro consolo para perdedores, especialmente quando o autor diz:

There ought to be no shame in not wanting to compete or in being found to lack the requisite ‘merit’ to do so. Cast out the meritocracy and there needn’t be disgrace in knowing your station.

Essa passagem poderia estar na traseira de um caminhão, acalentando os corações daqueles que abandonaram a corrida por medo de perdê-la, ou que buscam justificativas para seus fracassos, em vez de aprender com eles. Se o livro for um fracasso de vendas, seu autor já tem a desculpa perfeita: não liga para a meritocracia. Mas se for, “por acaso”, um sucesso, então ele teria, por coerência, que admitir não ter tido nenhum mérito nisso. Será que está disposto a tanto?

Dizia eu, no começo, como é importante entrar em contato com ideias opostas, seja para mudarmos as nossas, seja para reforçá-las. No caso específico, saio da leitura com meu apreço pela meritocracia totalmente inabalado. A convicção em sua importância é a mesma, ainda que tenha a perfeita noção de que atingir uma meritocracia plena seja algo utópico, o que nunca duvidei.
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* Economista pela PUC com MBA de Finanças pelo IBMEC, trabalhou por vários anos no mercado financeiro. É autor de vários livros, entre eles o best-seller “Esquerda Caviar” e a coletânea “Contra a maré vermelha”. Contribuiu para veículos como Veja.com, jornal O Globo e Gazeta do Povo. Preside o Conselho Deliberativo do Instituto Liberal. Fonte: http://rodrigoconstantino.com/artigos/seria-meritocracia-apenas-um-mito/?utm_medium=feed&utm_source=feedpress.me&utm_campaign=Feed%3A+rconstantino

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