domingo, 31 de julho de 2016

Maffesoli: Crise ou transfiguração da política?

Michel Maffesoli*
 

 A palavra crise está em todas as bocas. Fala-se em crise política, crise econômica, até mesmo em crise espiritual. A etimologia da palavra crise remete ao grego « krinein »: passar o grão no crivo. Ou seja, fazer a triagem. Como se diz, separar o joio do trigo. Os velhos valores da modernidade estão saturados e os novos valores custam a emergir.

Essa saturação dos valores é especialmente evidente na cena política: nada mais parece fazer sentido; os resultados eleitorais traduzem uma volubilidade aguda dos eleitores, espelho da transformação em espetáculo das políticas nacionais.

No Brasil, por exemplo, todo mundo sabe que a corrupção é inerente ao modo de agir de parte considerável dos políticos. É difícil, ou quase impossível, ganhar eleições e governar sem o apoio financeiro das forças econômicas que financiam campanhas e fazem pressão sobre os eleitos. Mas, de certo modo, há um fingimento de espanto. Faz de conta que se está descobrindo tudo isso. A surpresa inclui a percepção, como se fosse uma novidade, de que o Estado, reduzido a uma encenação de suas atribuições, está impotente, sem condições para resolver os problemas cotidianos da cidadania.

Na França, a cena política também chegou ao ponto máximo do espetáculo. Votam-se leis desprovidas de conteúdo, que não satisfazem a situação nem a oposição. Em paralelo ao jogo parlamentar, multiplicam-se as graves e as manifestações numa espécie de remake da Frente Popular dos anos 1930, sem que ninguém, de fato, acredite nisso. A verdade é que o rei está nu e que, como no conto de Andersen, até agora ninguém ousou dizer isto: O Estado não tem condições de garantir a manutenção dos serviços públicos; os eleitos não conseguem executar os programas de campanha e não realizam as reformas necessárias ao dia a dia dos países. As eleições recentes na Itália, com o descrédito, após um começo voluntarista do chefe de governo, Matteo Renzi, último símbolo da reforma e da recuperação do Estado, também indicam uma enorme perda de significado da política.

O povo não espera coisa alguma desses sábios e racionais gestores, assim como não se sente protegido pelo Estado, por sua polícia, seu exército, sua justiça. Se é para chutar o balde, que seja sem meio termo: daí a participação, ou o apoio, em manifestações ou contestações que só tem por programa e objetivo reunir pessoas, promovendo um estar-junto (Noites em pé na França), um encantamento com a encenação de justiceiros, responsáveis, no caso do Brasil, no entender de uma parte do país, pelo afastamento da pessoa que seria a menos diretamente atingida pela corrupção no meio político, e a eleição de personalidades totalmente novas na política, como na Itália, que justamente não querem se comportar como políticos profissionais e tentam apostar em uma nova forma de fazer política.

A esse movimento profundo é possível acrescentar o crescimento da abstenção eleitoral e os diversos modos mais emocionais do que políticos de congraçamento coletivo. Tudo isso parece remeter menos a uma crise do que a uma transfiguração da política. É o modelo da democracia representativa e da autoridade tutelar e totalizante do Estado que não funciona mais. O povo não confia mais nas suas elites e estas só se preocupam com a própria sobrevivência. O senso do interesse geral acabou. Os eleitos não representam mais os eleitores.

Mas, em vez de se lamentar diante da decadência de um modelo de regulação da vida coletiva, na verdade, bastante recente (datado do século XVIII), o melhor é prestarmos atenção no surgimento de forças alternativas, não mais vindas de cima, do alto, mas de baixo; não mais propondo um programa nacional e prospectivo, mas experimentando, por toda parte, de diferentes modos, soluções mais pontuais, locais, singulares, adequadas a problemas específicos. É nesse nível que se podem identificar os diversos tipos de solidariedade, as criações culturais e as alternativas cotidianas formuladas contra o marasmo político dominante. Pois o fim de um mundo não é o fim do mundo.

Termino este artigo com uma palavra sobre o Brexit, cuja repercussão continua e se estenderá por muito tempo. Ou seja, termino falando da vontade afirmada nas urnas pelos eleitores britânicos de deixar a União Europeia. Eis um exemplo claro dessa secessio plebis da qual eu anuncio desde muito tempos os riscos. É preciso salientar que a permanência na União Europeia só foi defendida com argumentos econômicos, ou até mesmo economicistas, sustentados por tecnocratas ou banqueiros. Nada se falou que pudesse remeter ao imaginário das pessoas ou dos povos. Vale lembrar que a alma coletiva da Europa não pode ser definida exclusivamente por uma moeda única e pelos auxílios e subsídios feitos aos seus membros por um orçamento público comum.

O povo britânico não foi convencido pelos argumentos racionalistas das elites, que não souberam utilizar ou acionar imagens e mitos comuns. Sem dúvida, também nesse ponto, será preciso reconstruir uma maneira de convivência, de compartilhamento, de estar-juntos e de adesão e apego a uma terra comum a partir de baixo. Uma Europa das regiões mais do que uma Europa das nações. Uma Europa do consenso popular mais do que uma Europa das negociações tecnocráticas e financeiras. Teremos de recuperar o dinamismo das trocas e das cooperações que deram sustentação ao triunfo das catedrais góticas e dos mosteiros, das descobertas culturais e científicas do Renascimento e das criações e obras desses grandes europeus que foram os romancistas e poetas dos últimas séculos.
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* Michel Maffesoli, sociólogo, 71 anos, é professor emérito da Sorbonne. Autor, entre tantas obras, de A transfiguração do político, a tribalização do mundo e O conformismo dos intelectuais (Sulina).
Neste texto, publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, Maffesoli reflete sobre a crise na política.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=8891 - 31/07/2016

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