quarta-feira, 27 de abril de 2016

A importância da imaginação para o pensamento


Aristóteles, em seu livro “De Anima”, estabelece que o homem é um animal dotado de algumas faculdades, consideradas por ele como especiais, sendo elas a imaginação e o intelecto. Dito de outro modo, para o filósofo grego, a base de todo o conhecimento humano provém da sensibilidade, já que o intelecto precisaria, portanto, de tal elemento, para se atualizar e se tornar inteligível. Sendo assim, a abstração se daria por meio da percepção sensível, ou seja, os elementos fornecidos pelos sentidos (visão, tato, audição, paladar e olfato) seriam o substrato do qual a inteligência se utilizaria para efeito de constituição de um saber, ligado à materialidade e às coisas do mundo. No dizer do filósofo: “O fato de pensar depende do sujeito que pode exercer este ato; o ato de sentir, por outro lado, não depende dele: sendo para isso necessário que o sensível lhe seja concedido”.

Ademais, ainda segundo Aristóteles, a faculdade imaginativa é a que possibilitaria, ao indivíduo, produzir imagens advindas do contato direto com os objetos materiais presentes na realidade, e sendo que tais imagens ficariam retidas na memória. Assim, essas imagens poderiam ser acessadas sem que houvesse a necessidade de nova experiência sensível com vistas a “reacendê-la” em nosso intelecto.
Como assevera o professor e profundo estudioso do assunto, Herbert Davidson, Aristóteles não foi capaz de esclarecer, de forma clara e evidente, a natureza desse processo intelectivo; ele não conseguiu estabelecer a que tipo pertence tal intelecção, ou mesmo, no que consiste esta atividade em seu sentido estrito. Logo, o referido filósofo baseou-se tão somente em analisar a conexão existente entre as faculdades intelectiva e imaginativa, ao definir que o intelecto seria dependente das imagens fornecidas pela imaginação, bem como a sua atuação derivar-se-ia delas (as ditas imagens sensoriais). O autor, também, destacou que a indefinição, proposta por Aristóteles, no que tange ao intelecto e suas funções e/ou propriedades, gerou uma série de interpretações e, consequentemente, diversos comentários (referentes tanto à tradição helenística quanto à medieval) a esse respeito.

Desta feita, embora existam lacunas no que toca à relação entre o que é dado pela sensação e o que é estabelecido pelo intelecto, tais concepções baseiam-se, em grande medida, na chamada descrição aristotélica do processo de cognição, que trata da recepção da forma de um objeto específico do qual se extraiu a sua materialidade.

O filósofo Averróis, por sua vez, define como formas materiais a relação existente entre as formas dos objetos físicos e as formas da alma oriundas tanto dos dados externos quanto dos sentidos internos (sentido comum, imaginação, cogitação e memória), através do qual os inteligíveis podem ser assim acessados ou mesmo adquiridos. Nesse sentido, a aquisição de algo que é universal — como o conceito de cor ou a de uma espécie animal, por exemplo — passaria, necessariamente, pela afecção material de um dado objeto, a ser percebido sensorialmente, e depois depurado na alma. Por causa disso e em razão dessa interferência, no plano da percepção, é que um cego jamais poderia adquirir o conceito de cor.

Vê-se, pois, que a construção de um determinado conceito (o inteligir sobre algo) está vinculado às imagens que se tem acerca de uma determinada coisa. Por essa lógica é que, para Averróis, os inteligíveis pertencentes a um indivíduo não são completamente idênticos aos de outro indivíduo. E tais inteligências, sobretudo o intelecto potencial e a faculdade cogitativa, estão também sujeitas à mudança, bem como vinculadas a cada um desses indivíduos — enclausurados em suas formas perceptuais e imagéticas —; não obstante o fato de existirem outras formas de inteligência, apontadas pelo mencionado filósofo, em muitos dos seus comentários com relação a Aristóteles, dentre as quais podemos citar: as inteligências separadas (dos corpos celestes), as inteligências agentes e a inteligência em ato puro (Deus: o primeiro motor), e todas elas prescindindo, parcial ou totalmente, da materialidade.

Na visão de Averróis, o nosso processo cognoscitivo (como se dá o nosso conhecimento) envolve a recepção e a captura de uma substância que é separado da matéria, embora tenha o seu início nos dados provenientes dos sentidos, passando, doravante, pela imaginação até atingir o seu ápice no intelecto. Com efeito, o sensível é tudo o que pode ser captado pelo intelecto, visto que para este pensador: “a alma não conhece nada sem a imaginação, do mesmo modo que a ação dos sentidos depende da presença do objeto sensível”.

Portanto, um filósofo também importante e que merece ser citado nesse contexto teórico é David Hume. Uma vez que, na concepção de Hume, o conhecimento é fruto da experiência e só pode ser adquirido por via das sensações. Para este filósofo, qualquer noção, sendo ela simples ou complexa, somente pode ser concebida a partir do modo como é então percebida, ou seja, o pensamento deriva-se e compõe-se de impressões sensíveis. A impressão seria, nesse caso, a causa direta da ideia surgida na mente. A lembrança de tal impressão é o que geraria a noção que se tem sobre a coisa vivida e experimentada na prática. De tal modo que, a experiência (sensorial) que se tem de um limão, por exemplo: o seu cheiro, a sua cor e o seu sabor (puxado para o azedo) é o que constituiria a noção e o conceito que se tem desse objeto a que se pode chamar de limão; é o que serviria de base para o nosso entendimento disso que se diz ser um limão. Em poucas palavras, graças aos sentidos é que obtemos o material necessário para a formação de um conhecimento que tem correlação direta com a realidade.

Para Hume, existe um problema relativo às noções complexas que não têm correspondentes complexos na realidade material. Razão pela qual é que determinados conceitos, como o de anjo ou mesmo o de pégaso (o mito do cavalo alado), não podem ser conhecidos e nem tampouco percebidos. Nessa vertente é que surge a seguinte pergunta: de que impressões surgiram tais noções? Para o filósofo, essa questão só pode ser respondida, na medida em que: uma noção complexa possa ser decomposta em suas noções simples, sendo estas constituintes daquela. Dessa forma, então, é que podemos dizer que a mente produziu um conceito complexo acerca das duas noções (a de anjo e a de pégaso) a partir de noções advindas de impressões simples; ou seja, a imaginação realizou a junção entre a impressão de um animal — no caso o cavalo — e a impressão de um par de asas, formando assim uma ideia de uma criatura que não existe, mas que pode ser construída por meio de uma associação mental de impressões “reais”. Com isso, a mente humana teria um papel criativo, de acordo com as próprias palavras do filósofo Hume, ao afirmar que a mente nada mais é do que “uma espécie de teatro”, nele influindo diversos elementos que “se sucedem em suas entradas e saídas de cena, e se misturam numa infinidade desordenada de posições e de tipos”.

Por fim, na mesma linha dos autores citados anteriormente, o filósofo Gilles Deleuze propõe a seguinte análise sobre o tema em questão: “Nada se faz pela imaginação, tudo se faz na imaginação. Ela não é nem mesmo a faculdade de formar ideias: a produção da ideia pela imaginação não é mais que uma reprodução da impressão na imaginação. Certamente, a imaginação tem sua atividade, mas esta atividade mesma é sem constância e sem uniformidade, fantasista e delirante, ela é o movimento das ideias, o conjunto de suas ações e reações. (…) Como liame de ideias, ela é o movimento que percorre o universo, engendrando dragões de fogo, cavalos alados, gigantes monstruosos”.
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Fonte: http://www.revistabula.com/6403-a-importancia-da-imaginacao-para-o-pensamento/
Imagem da Internet:  drawing-paint-imagination-1030x643.jp

Os conflitos expostos de um Brasil-fenda

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ENTREVISTA | Vladimir Safatle

Por Guilherme Guerreiro Neto e Rosane Steinbrenner
A leitura que o filósofo Vladimir Safatle faz do cenário político atual indica o esgotamento de um ciclo histórico da Nova República. Esse fim de ciclo é acompanhado de certa melancolia, gerada pela desconfiança na classe política, que nos paralisa e impede uma ação transformadora, uma intervenção de mudança efetiva. Safatle esteve esta semana na Universidade Federal do Pará, em Belém, e tratou dessas e outras questões na conferência de abertura do Congresso de Estudantes da UFPA (CONEUFPA).

Após a conferência, Safatle seguiu até a livraria Fox para um encontro sobre sua obra mais recente, chamada O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (Autêntica). No caminho entre a universidade e a livraria, ele falou ao PRIMEIRAS LINHAS sobre a fenda latente, agora escancarada, que é o Brasil desde sempre; a ruína do modelo político de coalizão, do qual o “lulismo” é o auge; o momento de covardia institucional que a redemocratização representou; e a necessidade de acionar o poder instituinte ante a crise democrática que se impõe.
Vladimir Safatle é professor livre docente do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo, a USP. É também um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy e do Laboratório de Pesquisa em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise. Entre outros livros, publicou Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento (Martins Fontes) e A esquerda que não teme dizer seu nome (Três Estrelas).
“O Brasil sempre foi dividido. Nunca foi um país, foi sempre uma fenda. Sempre houve essa divisão. Ela não tinha se expressado na rua durante um tempo porque a direita brasileira sentia vergonha em relação à ditadura militar, e também porque a direita não tinha figura política que a representasse.”
O Brasil precisa, hoje, mais de um psicanalista ou de um cientista político para entender o que se passa?
Não precisamos de ninguém, no sentido de uma interpretação que dê conta de entender. Faz anos que nós imaginávamos que poderíamos chegar nesse ponto. Era muito claro, de uns cinco anos para cá, que o modelo econômico implementado tinha batido no teto, que tinha criado uma frustração relativa enorme, que isso ia explodir. Era claro também que não conseguimos nem renovar a classe política, quanto mais constituir novas alternativas. E que o sistema político da Nova República era um sistema de travas no qual, entre outras coisas, a força do poder econômico corrompendo o jogo eleitoral estava muito evidente. Esse cenário de hoje era um dos cenários possíveis. É verdade que era o mais dramático, mas era um dos cenários possíveis. Não há nada estranho de termos chegado a esse ponto. Estranho é que tenhamos deixado chegar até aqui.

E por que chegamos? O Brasil dividido é sintoma do quê?
O Brasil sempre foi dividido. Nunca foi um país, foi sempre uma fenda. Sempre houve essa divisão. Ela não tinha se expressado na rua durante um tempo porque a direita brasileira sentia vergonha em relação à ditadura militar, e também porque a direita não tinha figura política que a representasse. Eles tentaram criar o [Fernando] Collor. Deu no que deu. Eles sabiam que a chance da esquerda ganhar depois do Collor era enorme. Então cooptaram alguém que vinha da esquerda, que era o Fernando Henrique [Cardoso]. Durante muito tempo, eles tiveram um tipo de representação no jogo político por alguém que não era organicamente vinculado à direita, mas que se tornou; por um partido [PSDB] que também não era organicamente ligado à direita, mas que foi se tornando, numa metamorfose medonha. Deu um pouco a impressão de que o país estava conciliado. Só que essa conciliação era irreal. Estamos falando de um país que não conseguiu se conciliar nem para ter uma narrativa única a respeito da ditadura militar. Não conseguimos nem fazer isso. Que a divisão exploda, eu mesmo não vejo como um problema. De uma forma ou de outra isso ia acontecer. Não temos um país com um acordo mínimo sobre o que pode e o que não pode ser feito. Então, pelo menos, que isso fique claro. A pior coisa numa situação na qual não há conciliação é você procurar uma conciliação extorquida. Existe um antagonismo absoluto no Brasil. A primeira coisa que se tem que fazer é falar isso em alto e bom tom.

Esse é um dos problemas da tentativa de coalizão que o PT articulou durante seus governos?
O modelo de política de coalizão não é só do PT, é o modelo da Nova República. Todos os consórcios de poder da Nova República tentaram implementar a mesma lógica de grandes coalizões. Que é um pouco a ideia de que é possível criar uma experiência de governabilidade colocando no mesmo consórcio todos os setores da política brasileira. É verdade que o “lulismo” foi o auge disso. O Lula conseguiu transplantar todos os conflitos da sociedade brasileira no interior do Estado. Por exemplo, o conflito entre os desenvolvimentistas e os ortodoxos na economia era um conflito entre o Ministério do Planejamento e o Banco Central. O conflito entre agronegócio e ecologia era um conflito entre Ministério da Agricultura e Ministério do Meio Ambiente. O conflito entre os defensores dos Direitos Humanos e o Exército era um conflito entre Secretaria Nacional de Direitos Humanos e Ministério da Defesa. Como o Lula tinha esse papel de mediador universal, ele conseguiu fazer esse transplante. Algo que seria, normalmente, uma situação de completa esquizofrenia, foi visto como grande habilidade política. Quando o George W. Bush veio ao Brasil, teve um momento que, para mim, é o mais paradigmático. Ele foi à Granja do Torto e fez um discurso dizendo que o Lula era seu maior aliado na América Latina. Enquanto isso, na rua, estava acontecendo uma grande manifestação, patrocinada pelo partido do Lula, pelo PT, contra a vinda do George W. Bush. Você percebe como é completamente esquizofrênico o processo? Mas isso era só um modelo, que é a essência da política brasileira. É a atualização do modelo varguista, é a atualização de um certo tipo de populismo, que [Ernesto] Laclau descreveu muito bem, em que você vai tentando organizar as demandas contraditórias da sociedade a partir da eleição de um significante vazio. No caso, o próprio Lula. Esse tipo de modelo ruiu de uma vez.
“Nenhum país fez uma redemocratização tão travada, tão ruim quanto foi a brasileira. E todo mundo queria acreditar que havíamos conseguido criar uma redemocratização sem grandes conflitos. Não, nós adiamos os conflitos.”
Qual é o balanço que se pode fazer da Nova República?
A Nova República foi um momento de covardia institucional brasileira inacreditável. Foi uma das piores alternativas de saída da ditadura. Nenhum país fez uma redemocratização tão travada, tão ruim quanto foi a brasileira. E todo mundo queria acreditar que havíamos conseguido criar uma redemocratização sem grandes conflitos. Não, nós adiamos os conflitos. Teria sido muito melhor que esses conflitos tivessem aparecido lá atrás, porque era o momento em que a esquerda estava mais fortalecida e ela poderia não ser cooptada — como acabou sendo. Mas foram aparecer agora.

Por isso há tantos fantasmas da ditadura na democracia brasileira?
Com certeza. Nós estamos representando uma peça que aconteceu nos anos 1960. Você percebe quanta discussão sobre comunismo numa época em que não existe mais comunismo? Não tem ninguém. Quem? O PCB? O PCB no Brasil é um partido geriátrico, tem 20 pessoas, você vai contar nos dedos. É completamente surreal. Mas significa o quê? Que estamos simplesmente representando uma experiência traumática que ficou em latência durante 50 anos. E que explodiu agora de novo. É muito engraçado, são quase os mesmos personagens. O Lula faz o papel do [Getúlio] Vargas, a oposição faz o papel da UDN, o Fernando Henrique faz o papel de Carlos Lacerda da rua Maranhão…

E a Dilma?
A Dilma faz o papel de um João Goulart dramático. De um sujeito que é jogado para dentro do processo, que não é exatamente o representante maior de processo nenhum. Para mim, essa situação de fim do governo Dilma parece mais, na verdade, com a Isabelita Perón, parece com o fim do peronismo na Argentina. O mesmo tipo de fraqueza, de incapacidade. A mesma ideia. O Lula teve uma ideia digna do Perón: colocar alguém na Presidência que, desculpem, é um holograma. A Dilma não representa ninguém nem nada. Ele queria fazer um jogo meio [Vladimir] Putin — [Dmitri] Medvedev e deu no que deu.

Voltando ao que você falou sobre a falência do modelo de coalizão, o que se percebe, numa tentativa de sobreviver, é a insistência do governo nesse modelo, distribuindo o que sobrou da fratura política. O que é possível projetar?
É a maneira como o PT sabe governar. Não consegue fazer de outra forma. E nem se quisesse ele poderia mudar. Essas coisas não são assim. Você paulatinamente vai criando a capacidade de mobilizar, de ter legitimidade, de ter um certo ethos. Quando você perde, é como um cristal que se quebra. Não vai colar de novo. São 14 anos no governo. Nunca, na história democrática brasileira, um partido ficou tanto tempo no governo. Depois de tanto tempo no governo, você muda seu modus operandi de uma forma tal que eles não saberiam nem como fazer de outra maneira. Tem aí duas questões. A primeira é: de fato, esse processo de impeachment é um golpe tosco e primário. Não há muito o que questionar. É a velha história de tentar sacrificar a pessoa que está na frente para conservar todos os operadores de bastidor. Nesse sentido, a primeira coisa que o governo faz hoje é tentar sobreviver. De uma certa perspectiva, não se pode deixar um impeachment como esse passar. O preço para a sociedade brasileira vai ser enorme. O tamanho do vazio de garantia institucional que se vai abrir é inacreditável. Isso é por um lado. Por outro, para não ficar pensando só em curto prazo, as alternativas de governo representados pela experiência do “lulismo” em geral, com a Dilma no meio, esgotaram-se por completo. Não consigo imaginar o que pode ser um governo Dilma nos próximos dois anos e meio. Acho que ninguém imagina, muito menos o próprio governo. Dentro dessas circunstâncias, talvez a solução menos pior — porque não há solução boa neste momento — seria que ela convocasse um plebiscito, em acordo com o Congresso, para saber se a população quer que ela continue e que o Congresso continue — porque não adianta trocar o presidente com um Congresso onde quase um terço dos parlamentares está indiciado em algum tipo de crime. Feita a consulta, você pode convocar eleições gerais. Mas acho importante que fosse feito um plebiscito para a população decidir se quer ou não continuar. Se o governo tiver a capacidade de propor algo dessa natureza, consegue criar uma coalizão até com os pró-impeachment. Uma parte da população que é pró-impeachment, com certeza, preferiria assim, zerar tudo e começar de novo. Em situações de crise, o que a democracia faz é chamar o poder instituinte. Essa sempre vai ser a melhor saída. Existe uma crise no Brasil. Uma crise profunda. Não há outra coisa a fazer a não ser chamar o poder instituinte. E o poder instituinte delibera.
“Poderia ser um belo momento para que nós abandonássemos um certo primado dessas instituições de estrutura representativa e tentássemos construir instituições que possam garantir uma presença mais efetiva de democracia direta”
Essa ação poderia combater aquilo que você chama de uma perspectiva de melancolia?
Acho que sim. Porque dá, de novo, a força de decisão ao poder instituinte. As saídas que vão aparecer aí serão saídas feitas não pela classe política, não pelos operadores de bastidor, não pela imprensa. Vai ser uma saída feita pela decisão popular. Por mais que essa decisão popular possa ter lá suas limitações, pelo fato de haver uma estrutura de partido, de divisão de tempo… Mas isso é menor diante do impasse que foi gerado. E até essa história de “ah, mas tem uma onda conservadora que vai nos levar”, para mim, é meio da ordem do desonesto. Porque não há uma onda conversadora, há uma esquerda desagregada. Quando você tem uma esquerda desagregada, o pessoal conservador faz a festa, vai para cima mesmo. Não tem um contraponto. Não é que tenha um fortalecimento conservador, tem uma quebra do contraponto. Esse é o problema. Não sei quem está impressionado com a direita botar 400 mil pessoas na rua. Eles sempre conseguiram fazer isso no Brasil. Se precisasse botar 200 mil pessoas, 300 mil, eles botavam. E vão continuar botando. Existe, de fato, uma parcela da população brasileira de classe baixa, média, alta que é conservadora, sempre foi. Só que tem uma outra parcela que não é, mas está desarticulada.

Mas essa parcela desarticulada, em certo sentido melancólica, não corre o risco de ser colocada de lado pela parcela que está eufórica, pela direita que deixou de se envergonhar?
Só se ela quiser. Se não quiser, ela é capaz de se organizar, é capaz de produzir novas alternativas, é capaz de criar novos atores políticos, é capaz de recolocar o jogo em outra posição. Você viu como estão as pesquisas eleitorais caso a eleição para presidente fosse hoje? Um pouco a frente, está a Marina, com 21%, que pode não ser de esquerda, mas também não é representante mor do pensamento conservador. Tem o Aécio, que do ponto de vista eleitoral é o melhor candidato que eles conseguiram montar, com 19%. E tem o Lula, que depois de toda essa confusão — isso é realmente impressionante — ainda consegue ter 17%. Ou seja, eles estão em empate técnico. Qualquer coisa pode acontecer. Acho que é por isso que o impeachment apareceu. Quando eles viram essas pesquisas, falaram: “não, mas espera aí, corremos o risco de não ganhar” (risos). De resto, você tem o Ciro Gomes, com 6%, tem o [Jair] Bolsonaro, que tem 6% — era de se esperar que essa franja fascista da sociedade brasileira acabasse se encarnando em alguém — e você tem a Luciana [Genro], com 3%. Percebe? Não se configura uma onda conservadora do ponto de vista eleitoral.

Como reconstruir as instituições depois da crise?
Poderia ser um belo momento para que nós abandonássemos um certo primado dessas instituições de estrutura representativa e tentássemos construir instituições que possam garantir uma presença mais efetiva de democracia direta. O Brasil poderia modificar qualitativamente sua experiência democrática em vez de tentar fazer reforma política, começar a discutir se senador tem que ter quatro ou oito anos de mandato, se vai ser voto distrital ou misto. Essas questões, francamente, são manobras diversionistas para um problema que é muito mais sério: a distância da população em relação aos processos decisórios.
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*  https://medium.com/@primeiraslinhasufpa/entrevista-vladimir-safatle-2ac52837322#.pafswf3dq

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Dicionário vai alterar o conceito de família

CAMPANHA CRIADA PELA AGÊNCIA DE PUBLICIDADE NBS

“Houaiss” prepara novo verbete com base em contribuições feitas via redes sociais

O que é a família no mundo de hoje?

Clarissa Thomé
O Grande Dicionário Houaiss terá uma nova definição para a palavra “família”. O verbete está sendo construído com base nas contribuições dadas pelas redes sociais e vai substituir o atual, segundo o qual “família é um grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (esp. o pai, a mãe e os filhos)”, entre outras acepções. A ideia é provocar a discussão em torno do tema com a aprovação em comissão especial da Câmara dos Deputados do Estatuto da Família (PL 6583/13 = Projeto de Lei número 6583 de 2013), em setembro passado.
O texto aprovado, que ainda será votado em plenário, estabelece que família é núcleo formado por homem, mulher e seus descendentes e exclui relações homoafetivas.
A campanha #todasasfamilias foi criada pela agência de comunicação NBS. “O relatório aprovado é de um anacronismo gritante. Basta olhar a nossa volta para ver a diversidade das famílias. Então, tivemos a ideia de usar as vozes das pessoas, para que elas trouxessem seus olhares e mudassem o significado no dicionário”, afirmou o vice-presidente de criação da NBS, André Lima.
O projeto começou com um perfil no Facebook, reunindo depoimentos de famílias com diferentes formações: pai e filho, pais adotivos e suas crianças, duas mães ou dois pais e seus filhos, casal hetero que cria os netos e bisnetos.
Uma das histórias é a da publicitária Yasmin Barbosa, de 25 anos, e de sua irmã, Júlia, de 10. Um pouco antes de morrer de câncer, aos 49 anos, a mãe delas perguntou se Yasmin preferia que uma das tias assumisse a criação da caçula. Yasmin tinha 19 anos, Júlia, 4. “Eu não aceitei de jeito nenhum. Minhas tias moram em outros Estados, eu não queria que a Júlia saísse do seu ambiente familiar”, afirmou Yasmin.
Ela reconhece que o início foi difícil. Ainda fazia faculdade, saía de casa muito cedo e voltava tarde. Júlia ficava aos cuidados de uma babá. “Hoje, estamos mais adaptadas. Flui naturalmente, corrijo dever de casa, busco na escola, tenho um papel de mãe.” Os fins de semana são dedicados à irmã.
A publicitária aderiu à campanha. “O estatuto só faz com que pessoas que não se enquadram no padrão ‘pai e mãe’ se sintam ainda mais excluídas. Nossa família pode ser mais estruturada do que muitas famílias tradicionais por aí”, reagiu.
BIANCA REPSOLD (À ESQUERDA) E RENATA RIBEIRO SÃO MÃES DE VALENTINA
Este casal homossexual é um exemplo de vários que existem hoje, inclusive com crianças
A publicitária Bianca Repsold, de 35 anos, e a jornalista Renata Ribeiro, de 39, também aderiram à campanha pela mudança de verbete no Houaiss. Juntas há 14 anos, elas são mães de Valentina, de 1 ano, gestada por Bianca. Agora é Renata que está grávida das gêmeas Ana e Nina. O pai biológico é um doador, com quem elas não têm contato. “Esse estatuto é zero ameaçador. Todo mundo conhece alguém com núcleo familiar não tradicional”, crê Bianca. As duas escrevem o site Sweet Child of Moms, em que contam a história da chegada de Valentina e, agora, das gêmeas. Até agora, a campanha recebeu cerca de 3 mil sugestões pelo site www.todasasfamilias.com.br (clique aqui).
A recorrência da palavra amor é um dos aspectos que chama a atenção na campanha. Resultado que contrasta com o relatório do deputado Diego Garcia (PHS-PR), aprovado pela comissão especial. Para Garcia, o afeto “não é o elemento adequado e necessário para atribuição de deveres jurídicos em matéria de família”. “O afeto, subjetivo e individual, não poderia ser elemento apto para sustentar deveres jurídicos. Sua ausência não leva ao desaparecimento de deveres intrínsecos aos vínculos oriundos da relação familiar estabelecida na relação de casamento ou união estável entre homem e mulher, ou na relação de filiação”, escreveu. Procurado pelo Estado, o deputado não foi encontrado.
As sugestões de novos verbetes serão selecionadas e encaminhadas à equipe do Houaiss. Para o filólogo Mauro Villar, diretor do Instituto Antônio Houaiss e coautor do dicionário, a campanha é uma oportunidade “excepcional, por dar voz a milhares de pessoas, incluindo grupos cuja opinião interessa ser ouvida”. “Nos dicionários, as definições das novas palavras e das acepções novas das palavras existentes são feitas a partir do contexto em que aparecem. É um processo eficaz, mas mais ‘frio’ do que o propiciado por essa campanha”, afirmou Villar. Quando o verbete for reescrito, a alteração será feita na edição online.
SUGESTÕES dadas para o verbete «família»:
Convivência
«Conjunto de pessoas unidas através do amor, da convivência e do interesse verdadeiro pelo bem-estar mútuo e social.» (Camila Doval)
Laços
«O que compõe um lar, tendo como base laços de amor e afeto.» (Patrícia Azevedo)
Afeto
«Pessoas unidas pelo afeto e/ou parentesco, independente do sexo, gênero ou idade dos membros.» (Luís Barbosa)
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Fonte: O Estado de S. Paulo – Metrópole – Domingo, 24 de abril de 2016 – Pág. A17 – Internet: aqui.

Uma em cada 5 mulheres agredidas em SP é de classe média ou alta

Mesmo com Lei Maria da Penha, muitas mulheres não fazem denúncias por temer represálias

Para promotora, números não significam que pessoas desses grupos estejam sendo mais vítimas de violência, mas comprovam que agressões acontecem em todas as classes sociais

SÃO PAULO - As estatísticas da Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo revelam que, em média, 780 mulheres foram agredidas por mês somente na capital (uma por hora), em 2015. Promotores e magistrados ouvidos pelo Estado observam que mulheres de classe média e média alta aparecem cada vez mais nesse grupo. E as autoridades estimam que hoje, em cada 100 casos, de 15 a 20 vítimas pertencem a essa classe social.

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Para a promotora Silvia Chakian, do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), os números não significam que as mulheres de classe média alta estão sendo mais agredidas, mas comprovam que esse tipo de violência está em todas as classes sociais. “Trabalho no atendimento às vítimas que moram na área central da cidade, como Baixada do Glicério, mas também atendo casos dos bairros nobres, como Higienópolis e Jardins. Posso dizer que recebo todos os tipos de vítima: pós-graduadas, profissionais bem-sucedidas, empresárias. E a sociedade tem dificuldade de compatibilizar isso: como uma empresária, uma CEO de uma grande empresa, sofre violência dentro de casa?”, indaga. 

Relação assimétrica. Na avaliação de Silvia, as mulheres conquistaram nos últimos anos mais espaço e poder na sociedade, mas muito pouco dentro de casa e a relação dentro dos lares continua, na maioria dos casos, assimétrica, na qual se verifica a “hierarquia de gênero” – com as mulheres exercendo papéis sociais desvalorizados, em condição de subserviência, de subordinação em relação ao homem. “Atendemos no Ministério Público mulheres que têm autonomia financeira, mas que dentro de casa são vulneráveis e sofrem violência. E têm, portanto, muita dificuldade em denunciar.”
A maioria dos casos é de mulheres agredidas e espancadas pelos companheiros. Mas há também muitos processos de outros crimes, principalmente estupro, agressão e ameaça.
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Violência. Um dos casos mais complexos é o da psicóloga Patrícia (nome fictício), hoje com 50 anos de idade. Em 2005, ela decidiu se separar do então marido e começar um relacionamento com um namorado que teve no começo da adolescência. Logo nos primeiros dias de convivência, começaram os espancamentos. “Ele era usuário de drogas, um viciado, na verdade. E me batia sem eu falar absolutamente nada, sem motivo”, relata.

As agressões eram sempre acompanhadas de ameaças. O companheiro dizia que mataria o filho dela e outros membros da família, se o abandonasse.

Durante cinco anos, o nível das agressões cresceu. “Apanhava todos os dias. Eram socos no rosto, na barriga, na cabeça, no corpo todo. Ele me jogava na parede, me chutava. Depois, quando passava o efeito da droga, dizia que estava arrependido, mas ameaçava que mataria meu filho se eu fosse embora”, lembrou a psicóloga.

O companheiro chegou a ser preso durante uma das agressões e ficou seis meses na cadeia por causa da aplicação da Lei Maria da Penha. Mas, segundo a vítima, ela retirou a queixa a pedido dos filhos do agressor. “Eles me convenceram de que não voltaria mais a me procurar e estavam passando fome por causa da ausência do pai.”

No entanto, assim que saiu da cadeia, o réu foi diretamente para a casa da mulher e as agressões recomeçaram. “Ele dizia que havia aprendido a bater sem deixar marcas. Eu apanhava do pescoço para baixo.”

Por causa do relacionamento, abandonou o emprego de psicóloga de uma empresa e abriu uma loja de motos, a mando do agressor, que faliu por causa das dívidas. “Acabei perdendo tudo.”

Há cinco meses, Patrícia fugiu da casa onde ficava “trancada” e está vivendo com os pais. “Aproveitei um dia que saímos juntos e ele se distraiu. Eu saí correndo, cheguei na casa da minha mãe e implorei para ficar aqui”, diz a psicóloga.

Ela prestou nova queixa contra o então companheiro e ele está sendo processado pela Justiça. Enquanto a sentença não é definida, Patrícia raramente sai de casa. “Tenho recebido apoio do meu filho, da minha neta e do meu ex-marido, que é um homem muito bom. Eu sei que vou conseguir recomeçar.”

Medo. Para a Promotoria, é comum as mulheres demorarem a procurar as autoridades para denunciar o agressor. “É muito importante que, assim que a violência aconteça, a mulher busque ajuda. Infelizmente, há muitas mulheres que morrem acreditando na mudança do parceiro, que vai conseguir mudar o comportamento do autor da violência”, disse a promotora Silvia Chakian. 
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- Atualizado: 24 Abril 2016 | 12h 00
Fonte:  http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,uma-em-cada-5-mulheres-agredidas-em-sp-e-de-classe-media-ou-alta,10000027720 

A dura tarefa de ser crítico em tempos de massificação

A dura tarefa de ser crítico em tempos de massificação
O crítico profissional passou a ser marginalizado como alguém cuja opinião é irrelevante 
(Foto: Wikipedia)

 A massificação cultural versus o exercício da crítica

Estes são momentos difíceis para os especialistas em determinados assuntos e que são pagos para emitir sua opinião. A voz oracular da autoridade está sendo substituída pela voz de uma pessoa qualquer, o estudioso reconhecido por sua erudição foi destronado pelo colaborador anônimo da Wikipedia. Como as avaliações de qualidade estão cada vez mais sendo feitas pelas comunidades online, como o botão “Curtir” do Facebook, os aplicativos da Yelp, e os algoritmos que preveem as preferências dos consumidores com base em compras anteriores, o crítico profissional passou a ser marginalizado como alguém cuja opinião é irrelevante ou, na pior das hipóteses, como a personificação de um elitista e de um patriarcado antidemocrático.

Poucas pessoas estão em posição melhor para responder a essa inversão de papéis e à massificação de hábitos, opiniões, valores etc. do que A. O. Scott, um crítico de cinema do New York Times. Como ele menciona em Better Living Through Criticism: How to Think about Art, Pleasure, Beauty, and Truth, seu novo livro em defesa de sua profissão e da capacidade de crítica do ser humano, o “crítico” foi sempre visto de forma pejorativa em uma posição intermediária entre um “agente funerário” e um “cobrador de impostos” em termos de popularidade. Os artistas tendem a ver os críticos como parasitas que se alimentam da criatividade, enquanto o público em geral pergunta o que lhes dá direito de opinar sobre assuntos que pertencem a todos. “A crítica não é agradável”, admite Scott. “A crítica procura falhas, enfatiza os aspectos negativos, estraga o prazer alheio e não poupa os sentimentos delicados de outras pessoas.”

Mas esse juízo crítico é essencial. Sem juízes atentos e desinteressados, todos estariam à mercê dos interesses dos comerciantes. “A cultura agora é dominada pelo consumo”, disse Scott, e cabe ao crítico proteger o público da influência do marketing, das fraudes e dos aparentes sucessos de bilheteria. A crítica, portanto, “não é um inimigo do qual a arte precisa se defender, ao contrário, sua função é de proteger a integridade da arte”.
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Fontes:  http://opiniaoenoticia.com.br/cultura/a-dura-tarefa-de-ser-critico-em-tempos-de-massificacao/
  Em inglês - http://www.economist.com/news/books-and-arts/21696918-everyones-critic

‘‘Todos os vínculos foram explodidos”

Ab’Sáber: “O lulopetismo como grande fantasia de um brasileiro herói está acabando” . Foto: Luiza Sigulem
O psicanalista Tales Ab’Sáber mostra como o pacto social costurado por Lula se desfez, criando espaço para as forças da direita e atualizando a longa tradição de crise política do País. Ab’Sáber abre a série de artigos, entrevistas e reportagens que debatem o Brasil
Tales Ab’Sáber é um psicanalista que pensa a política. Professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele é autor de Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica e de Dilma Rousseff e o Ódio Político, entre outros livros. Ao analisar a crise que implode o Brasil e afeta até relações familiares, Ab’Sáber destaca que o período petista, repleto de avanços sociais,  acabou por promover uma espécie de congelamento da política, rompido depois que a direita herdou a rua dos protestos de 2013, politizados originalmente à esquerda. “Emergiu um discurso que estava desmobilizado, mas que existia. Olhando de um modo benévolo, houve um descongelamento da política”, afirma o psicanalista. “E a direita casou a crise da corrupção com o ataque à mística lulista.”
Para Ab’Sáber, a reviravolta faz parte do jogo democrático. Daqui para a frente, a direita vai ter de mostrar a que veio, indicar qual a civilização que almeja e controlar as manifestações de ódio em suas fileiras. A esquerda, por sua vez, terá de começar tudo de novo. “No momento, a longatradição de crise política brasileira produz um estado de transe”, diz Ab’Sáber. “Todos os vínculos foram explodidos.” Há, é claro, muito a lamentar, a começar pela perda de oportunidades no campo da economia e da geopolítica: “Em Cuba, Obama está completando um movimento que Lula começou. O Brasil tinha interesses estratégicos. Tudo isso foi destruído como se nunca tivesse existido”.
Brasileiros – O que aconteceu com o carisma pop, midiático, do ex-presidente Lula, como retratado em seu livro sobre o lulismo?
Tales Ab’Sáber – Nos últimos anos, houve avanços muito significativos no Brasil. O pacto político bem tramado por Lula juntou forças econômicas do baixo da vida social com o alto da vida social. Foram quatro eleições para presidente da República. Não foram quatro dias. De um certo modo, o tempo petista congelou a política. Esse processo isolou uma dimensão do País, que explodiu no último ano e meio. O pacto do lulismo se desfez. Emergiu um discurso que estava desmobilizado, mas que existia. Olhando de um modo benévolo, houve um descongelamento da política. E a direita percebeu o fenômeno antes mesmo de a Justiça entrar nessa caçada artificial de Lula, nesse processo quase inquisitorial. No Brasil, só Lula viveu isso como político.
Nem Getúlio Vargas?Talvez tenha alguma semelhança com Getúlio Vargas. Uma pressão de todos os lados para cima do governo, que em Getúlio passava fortemente pelo Exército. Dessa vez, nessa crise toda, o Exército foi impecável. Não piscou. Manteve a posição que sempre deveria ter mantido no Brasil. É uma conquista. Agora, voltando ao ponto, a direita percebeu que precisava corroer a mística lulista.
Como fez isso?De um modo bastante hábil. Os grupos que movimentaram essas ações de direita são organizados. Desde o começo do ano passado, se organizaram de um modo quase profissional. Eles têm várias camadas de textos. Casaram a crise da corrupção com o ataque à mística lulista. Sabiam que quanto mais gente colocassem na rua, maior seria a repercussão na mídia. E conseguiram fazer esse movimento, essa bola de neve. Gente na rua, grandes grupos de mídia, mais gente na rua, mais mídia. O movimento social foi na frente.
Quando surgiu?Essa direita se apresentou pela primeira vez na crise de 2013. Ela herdou a rua do movimento originalmente à esquerda, feito pelos jovens que faziam política independente, também sem líder. O Movimento Passe Livre disparou um processo, politizado à esquerda, de demandas socializantes mais fortes do que o governo. Em seguida, a direita entrou no mesmo processo, com ações políticas independentemente de partidos. Há algo de bom nisso. Significa uma cidadania política mais estruturada.
Não é estranho que 27 anos depois da queda do muro de Berlim, o Brasil esteja dividido entre direita e esquerda?É muito estranho, mas temos que admitir que essa estranheza se construiu também sobre as ambiguidades do que estamos chamando de esquerda, o campo lulopetista. Esse campo tem um movimento estranho e não pensado. Em uma face, opera de modo a convocar as contradições sociais do Brasil. Na outra face, opera com os interesses do grande capital. Está inclusive sendo processado por causa do seu vínculo com o grande capital. O que passamos a chamar de esquerda não é uma esquerda tradicional. É uma espécie de social-democracia mínima. A falência política desse projeto se deu pelos lugares arcaicos. O pacto com as grandes empreiteiras não foi feito pelo PT. Desde a criação de Brasília, o Estado e as grandes empreiteiras estão misturados. O PT embarcou nesse barco. O curioso é que houve um movimento próprio da democracia que cobra do PT, como se o PT tivesse feito isso.
Tivesse criado o pacto com as empreiteiras?Isso é uma mentira ideológica. O barco sempre esteve aí. Um dos problemas da esquerda brasileira foi ter aceito o barco. Esse é um problema político. A esquerda não consegue pensar sobre o vínculo político com o que há de arcaico no Brasil, que serviu fortemente para o PT durante quatro eleições.
Serviu no sentido de financiar campanha?Esse é um aspecto. É o aspecto que está sendo criticado. Mas acredito que serviu mais para estabilizar a entrada do grupo de homens ligados a Lula e dos sindicalistas ligados ao PT no condomínio do poder brasileiro. O fato de não contradizer a tradição política brasileira foi um dos elementos que deram força política para Lula nos seus dois mandatos. Então, não era apenas a questão do dinheiro envolvido. Era a questão de que o PT não desestabilizaria o jogo do Brasil.
Abriu até portas para a atuação das empreiteiras em outros continentes, como na África.Essa era a hipótese de o governo, através desse pacto entre Estado e empreiteiras nacionais, construir grandes empresas globais, de tentar colocar o pequeno capital brasileiro em uma escala mundial. Esse, dizem, é o ponto desse projeto que teria cruzado grandes interesses americanos. Não temos nenhum documento sobre isso. É algo a ser investigado. Pode ser teoria conspiratória, paranoica, para explicar a nossa própria falência interna e digerir esse processo.
De qualquer maneira, o presidente Barack Obama acaba de visitar Cuba. O Brasil investiu na ilha e quem aparentemente vai se beneficiar da abertura são os Estados Unidos.Esse é um elemento trágico. Reflete a limitação da grosseria ideológica dessa nova direita, desse papo de Guerra Fria em 2016. Não tem nenhum cabimento. É delírio total, mas é delírio interessado, que produziu energia social para derrubar o governo. Não tem vínculo com a realidade, mas funcionou como linguagem e produziu força política. A força desse delírio, que não corresponde a nada, é real. Ela convocou massas para a rua, virou força política. Isso fala do nosso atraso, não fala de nossa capacidade de entender o mundo contemporâneo. Obama está completando um movimento que Lula começou. O Brasil tinha interesses estratégicos. O investimento no porto de Cuba permitiria ao Brasil ter uma posição geoeconômica, geopolítica, muito importante. Tudo isso foi destruído como se nunca tivesse existido. Elementos ideológicos arcaicos que produziram um movimento para destruir o sistema da política petista destruíram também os elementos progressistas de desenvolvimento.
Como a figura de Dilma Rousseff contribuiu para isso?O problema é complexo. Mostra a importância da personalidade do político em um processo democrático em que os homens estão disputando o lugar de liderança em um jogo de forças muito complexo. Do mundo de Lula para o mundo de Dilma ficou muito claro que a personalidade e as possibilidades psíquicas do líder contam enormemente no processo da política. A diferença de Lula para a Dilma é extremada. É de 180 graus. Eles são de esquerda, tinham o mesmo projeto, estavam em uma mesma construção macroeconômica, macropolítica, mas o modo de operar a política era diametralmente oposto. O problema da presidente tem uma série de aspectos. O principal é que a presidente sempre operou a política como uma tecnocrata, uma burocrata, uma pessoa que dá ordens, que está acostumada a uma posição de poder que é própria da burocracia, própria da estrutura de mando e de decisão direta. O campo da política envolve construções mútuas de consenso, de posições aproximadas. A presidente Dilma nunca foi capaz de fazer isso. Evidentemente ela agia de boa-fé, mas tinha tanta certeza de seu projeto e tinha um elemento arrogante de ser melhor e superior aos outros que acabou produzindo o seu isolamento. É triste dizer isso. Nesse sentido, o maior erro político de Lula, na minha opinião, foi a invenção política da presidente Dilma. Ela não é uma política. O PT tinha várias alternativas possíveis para esse lugar da sucessão do Lula.
Será que Lula não quis sombra?Ele não quis nenhum outro político operando o grande poder. De algum modo, ele quis poder demais. Aconteceu o trágico, a Húbris dos gregos, que é quando os heróis desafiam os deuses. Quando o herói desafia os deuses, o próximo passo é sua ruína. É um mito grego, mas aconteceu com Lula.
Em vez de Dilma, quem ele poderia ter escolhido?Uma pessoa interessante, que poderia ter um destino completamente diferente, é Marta Suplicy. Ela não saiu do PT porque é uma louca desvairada ou porque quer o poder a qualquer custo. Ela viu fechadas as portas. Ao mesmo tempo, tem força para construir um caminho próprio. E no PT tem ainda outros nomes, como Tarso Genro. Vários outros poderiam ocupar o espaço com habilidades e experiência de político. Não quer dizer que não fossem levar porrada, que não tivessem dificuldades imensas com a crise econômica. Mas o modo duro e difícil da presidente não conseguiu aquilo que Maquiavel fala em O Príncipe, que é aumentar o seu poder e integrar a sua comunidade. A ação do político deve visar isso. A presidente trabalhou de um modo que ficou totalmente sem poder. Já faz quase um ano que  ela está sem poder.
Quando se referiu a Dilma Rousseff, você usou o verbo no passado. Para você, o governo dela já acabou?O governo acabou em junho, julho do ano passado. O esvaziamento do lugar do governo na política brasileira não aconteceu agora, nas portas do impeachment. O impeachment é o resultado, trabalhado pela direita, desse esvaziamento do governo, que aconteceu paradoxalmente quando ganhou a eleição. É impressionante o modo como o PT entrou para o quarto mandato, como se não tivesse força nenhuma. É incompreensível a descoordenação no Congresso. O PT fez a maior bancada de deputados no Congresso. Como o PT não teve nenhuma condição de produzir efeitos a favor do governo no Congresso? Não teve. Sofreu derrotas simbólicas, humilhantes, para Eduardo Cunha e a nova direita organizada ao redor dele.
A própria eleição de Eduardo Cunha foi resultado de um embate controverso.Mais uma vez, má política. Dilma não percebeu que não tinha força para vencer o inimigo e aumentou a força dele. Botou o inimigo em um processo agressivo contra ela. Na política, quem vai perder uma parada não joga todas as fichas nela. Tenta pelo menos tirar alguma energia do processo. O governo perdeu todas as fichas, o tempo todo. Não acho que isso seja só uma crise da presidente Dilma. É uma crise do PT. A presidente Dilma tem grandes dificuldades políticas, mas o PT estava completamente desorgânico nesse processo. O PT precisa fazer uma autocrítica e entender onde perdeu o pé do mar do processo político. Ele se afogou e isso já faz tempo. Já faz mais de um ano.
Como o mensalão contribuiu para isso?O mensalão contribuiu muito. Não porque tenha existido, mas porque foi o momento histórico em que o PT teve a oportunidade de alterar esse processo. Foi um momento em que o Lula ainda tinha força. Foi a denúncia do pacto do PT com os mecanismos tradicionais brasileiro de corrupção, que não foram inventados pelo PT, mas aos quais o PT aderiu, por poder. O PT errou gravemente e Lula estava dirigindo o processo. Em vez de politizar o problema à esquerda e de revelar a estrutura corrupta brasileira e criar mecanismos, propor uma reforma que interviesse nisso, o PT demandou a impunidade tradicional da direita. E descobriu que, para ele, essa impunidade não vale. Isso é dialético. Na medida em que não vale para o PT, a partir daqui passa a não valer para a direita também. Não é por acaso que nesse panorama de crise radical, os tucanos estão quietos. Não é por acaso que Aécio Neves e Geraldo Alckmin começam a ser vaiados nas ruas. Sabe-se que o PSDB está envolvido em esquemas idênticos. O próximo passo deve ser a hora da direita.
Na sua opinião, em 2005 o PT deveria ter assumido a própria corrupção e exposto a dos outros partidos?Assumir a própria corrupção, expor o estado geral de corrupção e ser protagonista da reforma que o País estava pedindo. Só o PT poderia fazer isso, porque Lula estava forte. E porque Lula construiu o seu lugar político como crítico à corrupção brasileira. Tinha toda a legitimidade para fazer isso. Era uma jogada complexa, mas mudava completamente a posição de ser aquele político tradicional brasileiro, que é pego em esquemas de desvio de dinheiro público, fica negando, e espera controlar a Justiça para apagar o processo. Nesse sentido, há algo de verdade na crítica da direita. Isso reproduz o velho Brasil. O que não é verdade é a direita dizer que não participa disso. Ela participa. O problema é que o PT não pôde revelar esse processo do Brasil e ser protagonista disso. Ele virou objeto desse processo e não sujeito.
Nesse meio tempo, aflorou no Brasil um ódio impressionante. Esse ódio é inerente a um País com passado escravocrata? Estava camuflado e aflorou agora?Esse ódio contemporâneo precisa ser bem entendido. Ele não é 1964. Ele não é a posição antissocial e antipopular da formação escravocrata do Brasil. Mas ele também é. Há uma dialética interna complexa desse ódio de 2016, porque os elementos modernizantes precisam ser compreendidos. Essa direita está olhando para os Estados Unidos. A vanguarda desse movimento à direita propõe que o processo social passe completamente à margem do Estado, que o Estado reduza radicalmente a sua ação na vida social e econômica. É um neoliberalismo apaixonado, acreditando que há no Brasil tanto capital. E que o capital pode dar conta da vida social. Essas pessoas estão iludidas.
Isso não acontece nos Estados Unidos?Acontece, embora o governo americano, em um modo diferente, em uma escala diferente, seja um governo bastante intervencionista, principalmente no mundo. Ele é muito intervencionista a favor do seu mercado. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos há uma longa tradição de sociedade de mercado em que o mercado tem poder suficiente para se equiparar ao Estado. Não é o caso brasileiro. Todas as vezes que se tentou afastar o Estado do espaço da construção da nação, principalmente no governo Fernando Henrique, não aconteceu nada. O País simplesmente parou, porque o capital brasileiro não ocupou o espaço. Ele não tem poder de organizar a vida social. Ele é dependente do Estado. E neste jogo há essa zona perversa em que o capital e o Estado se misturam, se confundem, que é o campo da corrupção. Voltando ao ponto, essa direita tem elementos hipermodernos. Ela imagina que o Brasil é os Estados Unidos. Dizem que são superliberais, que não têm nada a ver com a escravidão, com o autoritarismo brasileiro. Não é bem verdade. No mesmo campo, existem pessoas inteiramente autoritárias. Existe a tradição de desprezo e violência em relação à vida popular brasileira. Isso precisa ser acompanhado e controlado politicamente, assim como as intensidades odiosas, antidemocráticas, que habitam a nova direita também.
Não é muito grave o fato de as pessoas não poderem usar vermelho sem correr o risco de serem agredidas?Qualquer risco de ser agredido é muito grave. Que esse pessoal tenha começado a espancar pessoas, a calar pessoas, e eles fazem isso, é muito grave. Seria importante que os elementosdemocráticos e liberais do movimento criticassem a sua própria violência. Afinal de contas, quem eles são? Eles são hiperliberais ou são autoritários que querem tomar o poder? Daqui para a frente, se realmente o governo entrar em uma crise terminal, esse movimento vai ter que explicitar qual a civilização que eles pretendem para o Brasil.
Ou qual a barbárie.Ou qual barbárie. Eles deram um golpe de força para derrubar um governo legítimo. São responsáveis pelo que criarão. Nesse sentido, precisamos fortificar a democracia. Só a democracia pode ler esse processo. Qualquer grupo autoritário quer apagar os instrumentos de leitura, que são as leis, a imprensa, os instrumentos de acompanhamento e avaliação. Daqui para a frente são esses caras que vão ter que responder pelas suas ações, pelas suas posições, se eles são antissociais, se eles são antidemocráticos, se são antipopulares. Até agora eles só acusam a esquerda de ser corrupta. Mas quem são eles?
No âmbito pessoal, pode ter havido nos últimos tempos um afrouxamento da compostura por parte de manifestantes?Quando pessoas elegantes descem no nível da massa, elas viram massa. É o psiquismo de massa, é o mesmo que vai para o futebol, onde também se grita contra o torcedor, o inimigo. Esse desrecalque dá prazer, mas não há dúvida de que ele é violento. Existe inclusive toda uma estratégia para ocultar essa dimensão violenta, antissocial, antidemocrática que é muito forte nessas manifestações. No entanto, isso é a conversão do indivíduo em massa. É a conversão psíquica, que dá prazer. É desrecalque. Ao mesmo tempo, essa expressão violenta é energia política. Esse ódio, que no limite seria sadismo, é o campo arcaicíssimo da guerra, em que o inimigo é o inteiro mal e há liberação para destruí-lo. A guerra libera pulsões arcaicíssimas e primitivíssimas. Cada um precisa sobreviver por si mesmo. Esse movimento foi no limite disso. Não é por acaso que começaram a perseguir e espancar algumas pessoas também. E a calar.
Batendo panela?Uma das estratégias mais fortes nesse momento foi calar a voz do inimigo. No Brasil, as panelas não foram utilizadas como na Argentina, no Chile. Lá elas sinalizavam que as panelas estavam vazias. Era a comunicação de um mal-estar. No Brasil, as panelas sempre foram utilizadas para calar a fala da presidente. É um outro lugar. É a última mediação. Bate na panela porque não pode bater na pessoa. É uma ação política de calar. Essa direita tem uma longa tradição autoritária. Uma parte desse pessoal fez uma ditadura de direita de 20 anos, com tortura, com desaparecimento de pessoas, com censura. O que uma parte desse grupo produziu no Brasil não foi um parque de diversão.
Essa nova direita tem líderes?Na verdade, são vários grupos jovens. É uma politização forte à direita, uma coisa que a esquerda há muito tempo não conhecia. São apaixonados, e organizados de modo semiprofissional ou profissional. Uma das coisas interessantes seria pensar quem financiou esses processos, porque esses processos foram muito trabalhados.
Como?Ainda não está claro o vínculo com grupos liberais de direita brasileiros e com americanos também, que pagam para que movimentos desse tipo se produzam no mundo. É uma privatização do que a CIA fazia antigamente. Hoje think tanks de direita fazem. É um movimento político mundial. Existe. A esquerda tem que conhecê-lo, denunciá-lo. Nesse sentido, não tem liderança, mas tem muita organização. Organização quase profissional, burocrática. Eles têm jornalistas, assessor de imprensa, publicitários.
Financiamento também?Financiamento, grupos de interesse, mas existe uma paixão política também. Tem muito a ver com o Tea Party americano. Nos Estados Unidos, em um nível ainda mais radical do que aqui, esse movimento é a direita do Partido Republicano, que está dando em Donald Trump. Nos Estados Unidos, é um perigo.
E aqui?Precisamos ver. Por enquanto, só tem a ação negativa de destruir um governo. Não sabemos o que esses caras são no poder, porque eles inclusive são muito divididos. Tem a parte mais arcaica, autoritária, desse pessoal, que apoia Jair Bolsonaro, mas parece que são no máximo 10%. E tem os neomercadistas, os novos jacobinos do mercado (os radicais do mercado). Esses caras evidentemente não podem apoiar Bolsonaro.
Podem apoiar José Serra?Eles tendem para o PSDB, que tem uma tradição neoliberal no Brasil. Mas eles também criticam o PSDB. Acham que o PSDB é muito estatista e que faz parte do arcaísmo brasileiro. Eles também têm um projeto civilizatório próprio, que é em grande parte ilusório. Uma certa faceta pode ser autoritária e violenta.
No poder, representam ameaça aos avanços sociais do governo Lula?Não só aos avanços sociais do governo Lula, mas aos avanços sociais da Constituição de 1988. Há uma tendência hiperliberal de criticar os estabelecimentos constitucionais de que o Estado tem que investir em educação, em saúde, principalmente em saúde. Seria um ataque à Constituição. Mas já há uma tendência geral, inclusive dos governos, de fugir dos compromissos de investimento social previstos pela Constituição de 1988. Esses caras já andaram falando que é arcaísmo o Estado ter que pagar por essas coisas, na mesma hora em que nos Estados Unidos existe um discurso à esquerda, que diz que o Estado tem que pagar mais por essas coisas.
Quais as perspectivas para o futuro?Com a corrosão da mística lulopetista, que a direita estrategicamente conseguiu produzir, as pessoas precisam reinventar o circuito da esquerda. Há muitos que não apoiam exatamente o governo petista e da presidente Dilma, mas que entendem que o processo de impedimento do governo é ilegal, forçado politicamente. O problema é que ele é forçado politicamente, mas não é inteiramente ilegal. Eles abriram um processo de 
impeachment no Congresso baseado em um pedido de setores da sociedade, baseado em erros do governo. Não podemos chamar de golpe. Isso é política na democracia. A direita está forte porque a esquerda ficou fraca. E como a esquerda, depois de quatro Presidências da República está tão fraca? Corrupção é o grande tema jurídico legal, mas agregada à corrupção está a ideia de que o governo Dilma é inepto para governar o País.
O que por si só não justificaria um impeachment.De jeito nenhum. O inepto, temos que aguentar. Podemos fazer movimento político, mas temos que lidar com ele. Há elementos ilegais. Só que as pedaladas fiscais também não justificariam, porque elas são clássicas de governo. O problema está no fato de que se criou uma máquina de poder e corrupção gigantesca na Petrobras. De qualquer forma, está acabando o lulopetismo como grande fantasia de um brasileiro herói, que ao mesmo tempo era um patriarca dos pobres e uma máscara para vários interesses das elites progressistas que se articulam a esse herói. Esse grande movimento de uma política messiânica está acabando no Brasil. A esquerda vai ter de aprender a existir sem essa estrutura antiga. Essa é uma estrutura do passado da América Latina, das estratégias de chegada ao poder por meio da liderança hiperinvestida. A esquerda tem que se pensar como movimento social. Nesse sentido, a direita está na frente. Eles estão se organizando, vão fazer institutos, vão fazer ações em vários níveis da cultura.
A saída para o lulopetismo é começar de novo?É reorganizar a esquerda nesse quadro contemporâneo, que não é mais aquele que fundou o PT e deu a energia social para Lula. No momento, a longa tradição de crise política brasileira produz um estado de transe. Diferentemente de momentos revolucionários, em países centrais e desenvolvidos, há uma fragmentação das vozes, uma fragmentação da leitura da realidade. O resultado dessas crises políticas muitas vezes tende a ser regressivo. Em vez de ser uma revolução progressista, é conservadora.
Esse seria o fato novo dessa crise?Esse é o estado de transe do Brasil. Essa crise atualiza o transe. É aquilo que Glauber Rocha viu no Terra em Transe. Vozes soltas, que não se encontram. Por causa da estabilidade da nova democracia, esse transe tende a ser incorporado em um processo novo. Uma certa estabilidade deve permanecer quando o pacto político e a falta de integridade simbólica nacional explodem todos os vínculos. Foi o que aconteceu agora. Todos os vínculos foram explodidos. A própria direita que está na rua são muitas direitas. Estamos no velho transe brasileiro. Talvez a novidade seja uma integridade institucional, que permita atravessar o processo. 
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Fonte: http://brasileiros.com.br/2016/04/todos-os-vinculos-foram-explodidos/

sábado, 23 de abril de 2016

O individualismo matou a esquerda

MARIO TRONTI
Filósofo e Político italiano

Entrevista com Mario Tronti
Senador italiano pelo Partido Democrático

Alessandro Zaccuri
Jornal Avvenire
20-04-2016

Certamente não está melhor. «Ao contrário, nos últimos anos, a situação se agravou», diz o senador italiano Mario Tronti sobre a emergência antropológica por ele denunciada, «a partir da esquerda», em 2011, com uma carta aberta compartilhada com Pietro Barcellona, Paolo Sorbi e Giuseppe Vacca.

Os dois últimos signatários recentemente participaram no debate com o honorável Gianni Cuperlo e o senador Stefano Lepri promovido pelo jornal Avvenire [órgão oficioso da conferência dos bispos italianos - CEI], cujos resultados foram publicados na edição do último dia 10 de abril.

Filósofo, militante de longa data do Partido Comunista Italiano, antes, e, hoje, do Partido Democrático, além de teórico reconhecido do operarismo (o seu livro mais recente é Dello spirito libero, Ed. Il Saggiatore), Tronti declara que ficou impressionado com as três palavras que mais se destacavam no título daquela síntese: «Política, vida, liberdade», lista ele. «É daí que se deve recomeçar.»

Eis a entrevista.

Comecemos pela política?

Mario Tronti: Em uma crise muito forte, infelizmente, assim como as relações sociais e as relações humanas sobre as quais a sociedade se funda. Nesse contexto, as iniciativas legislativas podem ter a função, bastante positiva, de levantar a discussão, mas a tendência a resolver todo problema no plano jurídico impede que se enfrentem as questões de fundo, neste momento dramaticamente desconsideradas.

A que se refere?

Mario Tronti: Ao tema da vida, em primeiro lugar, cuja ligação com a política é indissolúvel e indispensável, assim como entre história e morte. O clima de tensão, desencadeado pela ameaça terrorista, alimenta um sentimento de insegurança que afeta a cotidianidade das pessoas, prestando-se a instrumentalizações que, em vez de resolver o problema, contribuem para agravá-lo.

E a vida?

Mario Tronti: Está cada vez mais confiada ao domínio das tecnociências, expressão que não indica, de fato, o desejável assujeitamento da técnica às razões da ciência. Ao contrário, é a ciência que se põe a serviço de mecanismos e procedimentos cujo objetivo está, em última instância, na fabricação de vida humana. Afirma-se um sentimento de onipotência que impede de reconhecer e respeitar todo limite, exaltando um individualismo paroxístico [muito intenso, agudo]. A convicção que está se difundindo é que, na presença de uma instrumentação técnica adequada, nada é impossível, e tudo se torna lícito.

No passado, a esquerda teria combatido essa tendência. Por que não hoje?

Mario Tronti: Algo se desgastou, é preciso admitir. Eu estaria tentado a dizer que novamente venceu o mercado, mas especificando que o mercado nada mais é do que a representação simbólica da descompensação em ato nas relações sociais. Trata-se de um poder que se afirma ilimitado e que, nas últimas décadas, estendeu a sua influência até mesmo para dentro das pessoas, com o resultado paradoxal de que hoje, quanto mais se prossegue em direção à esquerda extrema e radical, mais se recolhem concessões e consensos relativos com a chamada «cultura dos direitos» [o único que importa é o indivíduo e suas vontades e necessidades, mesmo que artificiais!]. Quem opõe alguma resistência é a esquerda moderada, que, antigamente, teria sido chamada «de governo» e que, por si só, não deveria desempenhar essa função. Prevalece, sobretudo, a ilusão de que ser progressistasignifica estar sempre à frente. Uma convicção bastante ingênua, para a qual hoje é melhor do que ontem, e amanhã será ainda melhor.

Qual é, na sua opinião, a chave de ignição do processo?

Mario Tronti: O individualismo, que já derrotou também o campo daqueles que deveriam se opor a toda forma de exploração, a toda imposição do mercado, à crescente artificialização da vida. A sociedade «líquida», denunciada uma vez por Zygmunt Bauman, já é aceita e até elogiada como fato incontestável em toda a sua vagueza e inconsistência.

Em que medida a família está envolvida nessas transformações?

Mario Tronti: Apesar da deterioração geral, na Itália, a família conseguiu suportar o impacto, impedindo a explosão de conflitos sociais que permanecem latentes. Vai nessa direção a permanência dos jovens em casa, onde as reivindicações de revolta são, de alguma maneira, amordaçadas. Sim, a família funciona ainda como pequeno empreendimento econômico, mas não sou tão otimista em relação à formação das novas gerações. Nesse âmbito, parece-me que o ruído de fundo proveniente do lado de fora finalmente prevaleceu, pondo seriamente em discussão o papel educativo da família.

A responsabilidade é novamente política, então?

Mario Tronti: Até uma certa fase da sua história, a esquerda italiana conservou a capacidade de se encarregar das necessidades sociais, ao mesmo tempo em que promovia os direitos pessoais. Pessoais, repito, e não individuais, porque o ponto nodal ainda é esse. Na Itália, a crise dos grandes times populares (o Partido Comunista, por um lado, a Democracia Cristã, por outro) andou de mãos dadas com a dissolução do conceito de pessoa. Produziu-se, assim, um vácuo que nada, até agora, conseguiu preencher, nem mesmo em termos de agregação política.

Cinco anos atrás, o senhor foi definido de «marxista ratzingeriano»: hoje se sente um pouco bergogliano?

Mario Tronti: Entramos em uma nova época, é evidente, assim como é evidente que o Papa Francisco é o único que levanta a voz contra os fenômenos de exploração e injustiça. A sua mensagem é eficaz na América Latina e na África, mas temo que ele seja menos ouvido na Europa. É preciso desfazer o preconceito segundo o qual, exceto pelas pobrezas que vêm «de fora», no nosso continente, o problema da marginalização estaria resolvido. Não é assim, e Bergoglio faz bem em nos lembrar disso também com gestos exemplares, como o de sábado em Lesbos [ilha grega onde o papa visitou os refugiados sírios e trouxe 12 deles para o Vaticano!]. Comprometida com a luta pelos direitos civis, a esquerda corre o risco de perder de vista a dimensão das necessidades. A sua tarefa, ao contrário, deveria ser em dar concretude política à visão «franciscana», sugerida com insistência cada vez maior pelo papa.

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Para acessar a versão original desta entrevista, clique aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 22 de abril de 2016 – Internet: clique aqui.