domingo, 14 de fevereiro de 2016

'Proustmania' invade a cabeça dos cariocas



 
 Malu Mader leu os sete volumes de "Em busca do tempo perdido" nos últimos três anos, 
e se apaixonou pelas viagens ao passado. -
Ana Branco / Agência O Globo
 
Famosos ou anônimos encontram inspiração no livro ‘Em busca do tempo perdido’

Ler ou não ler: eis a questão. Quem encara os sete volumes de “Em busca do tempo perdido”, o livro-tudo de Marcel Proust escrito entre 1908 e 1922, já vê o enigma no título: vai dar tempo? Mais fácil buscar no Google o famoso trecho da madeleine, o bolinho plissado banhado em chá, que detona, no protagonista, a memória de sua infância e de toda uma vida.

Mas o Rio é uma caixinha de surpresas... O babado é que, à boca miúda, anônimos ou famosos, os cariocas andam molhando o bolinho (ou, conforme for, o biscoito) no chá da Paris de Proust, em busca dos gozos da alma e das filigranas do passado.

De artistas em comunidades pobres a damas da aristocracia local; de intelectuais da periferia a atrizes top como Malu Mader (que leu a obra completa nos últimos três anos), em grupos de leitura, em casa ou no tédio do trem da Central, uma proustmania invade o salão e vence a doença do nosso tempo: a falta de tempo.

— Proust, assim como a psicanálise, é o antídoto contra a ingestão rápida e indiscriminada de ideias junk — avalia a psicanalista e empreendedora Anna Victoria Lemann, mais conhecida como Toia, criadora do primeiro grupo da atual safra.

Seu professor, o filósofo gaúcho Marcelo Backes, que comanda três grupos de Proust, formou, nos últimos anos, mais de cem novos leitores de “Em busca...”. Ou seria mais exato dizer “leitoras”?

— A estatística é clara: dos que seguem nosso programa, de 50 páginas por semana com debates, e acabam de ler em 19 meses, 80% são mulheres. Na nossa sociedade ainda organizada patriarcalmente, elas encontram tempo e se interessam muito mais por ficção. Algumas leem escondidas para não amedrontar os homens com sua capacidade e seu saber. Outras arrancam a capa para ler na praia sem afugentar os rapazes — relata o mestre.

Cabe contextualizar: a maioria dessas mulheres vêm de um estrato social bem elevado, atesta o professor.

— Da mesma forma que propicia a alguém como eu viver bem dando aulas sobre Proust, o interesse por “Em busca...” está vinculado sociologicamente a um certo caráter aristocrático que a sociedade carioca apresenta — diz Marcelo.

É caso de Ecila Vidal Mutzenbecher, 67 anos, socióloga, economista e produtora, que leu seis volumes em francês até os 20 anos. Só recentemente voltou ao livro porque “não podia morrer’’ sem ler “O tempo reencontrado”, o sétimo, póstumo.

— Morei numa casa grande em Santa Teresa, palaciana como a da infância de Marcel, com uma escada de mármore e três quartos para cozinheira, lavadeira e bordadeira. Essa escadaria é como uma madeleine, libera memórias da forma de ser e viver que se buscava ali e de figuras míticas como a do temível Vovô Barão.

Túnel do tempo no Trem da Central 

 
O professor Marcelo Backes já formou 100 novos leitores de Proust, 80% mulheres 
- Ana Branco / Agência O Globo
 
Mas o Rio, a gente sabe, é uma cidade de contrastes, com memórias de múltiplas classes... Filho de um nordestino e uma mineira, Alexandre Damascena viveu até os 5 anos na Maré e depois se mudou para o Cesarão, conjunto habitacional em Santa Cruz, onde mora até hoje.

— Conheci Proust através de uma banca de livros usados na feira de Santa Cruz. Minha mãe sempre me dava um livro de presente se eu a ajudasse a carregar as bolsas com as compras. Escolhi o livro porque o título me lembrava uma música da Legião Urbana, “Tempo perdido”. Não tinha a menor ideia de quem era Proust e só fui ler, anos depois, quando estudei Teatro.

Hoje diretor de uma escola de Drama em Santa Cruz, mestre e doutorando em Literatura Brasileira pela UFRJ, ele deve muito de seu percurso à aventura proustiana, que iniciou a bordo do trem.

— Foi uma viagem longa e com muitas paradas. Mas o caminho de Santa Cruz até o Centro, onde eu estudava, durava duas horas. O jeito de matar o tédio era ler, ler e ler. E veio o prazer, associado ao desejo de construção do conhecimento, tanto científico como emocional.

Ciência, desejo, conhecimento e emoção: é neste entrelaçamento que parece estar a chave dos encantos que levam cada vez mais pessoas a se lançarem nesse voo-livre. A atriz Malu Mader, que ganhou o livro quando rodava a série “Anos dourados” (ver detalhes na entrevista da página 32) mas só se dedicou à sua leitura nos últimos anos, abriu portas.

— A experiência literária de Proust vai além da invenção de uma linguagem, é quase uma descoberta científica. Ele conseguiu dar forma e beleza a essa mistura de memória e esquecimento. E desde a primeira página nos faz penetrar no seu mundo de sonho, vivendo intensamente, como se fôssemos ele, as mesmas experiências de amor, de ciúme e da revelação da vocação artística — escreve Malu, num detalhado e-mail sobre o escritor e sua obra.

Acompanhado dos prazeres evocativos de um cafezinho com cigarro, grande explicador de qualquer tipo de entrelaçamento histórico-cultural, o compositor, escritor, cantor, performer e eterno demiurgo Jorge Mautner faz sua exegese da importância proustiana em todos os domínios.

— A neurociência já descobriu que nossos neurônios são pura emoção. E a Física, cuja inspiração anda sempre em dívida com a Arte, já demonstra, nos últimos estudos, que a menor partícula do mundo subatômico determina a existência das maiores… Assim como o detalhe, na memória. Neste mundo quântico, singularidades se entrelaçam e ao mesmo tempo não se entrelaçam com outras. Não há explicação. São as associações que importam.

CIÊNCIA E EMOÇÃO 
 
Jorge Mautner, explicador universal: Proust é importante pelos entrelaçamentos da memória. 
Como já se sabe, os neurônios são pura e moçãoa 
O Globo - Ana Branco / Agência O Globo

Não por acaso, o acaso é citado pelo professor Marcelo como o grande “inspirador” de tudo o que ocorre de importante na nossa vida. Daí a sedução provocada pelo “modelo” da madeleine (no seu caso, o cheiro do sabonete Phebo preto, quase tão clássico como Proust).

— O que é planejado deixa a gente num caminho em que já estava, mais ou menos bom. Decisivo, definitivo, mesmo, é quem, ou o quê, te arranca do caminho. O segredo é saber jogar adequadamente com o imprevisto.

Nesse jogo, cada um tem a sua madeleine, queira ou não. Ou, como diz Malu, “não é preciso ler Proust para saber do que se trata”. Há quem resista a essa ideia, por motivos que o próprio Proust apresenta em sua tese sobre a memória involuntária. Com a palavra, Toia:

— Quando podemos identificar a nossa madeleine, ela já deixou de ser madeleine! É uma experiência sensorial no presente que mobiliza memórias perdidas. Ela nos pega de surpresa... Ir atrás dela voluntariamente não vale! Marcel, no livro, quando tenta repetir, a mágica não funciona mais.

Uma coisa, contudo, ninguém apaga: a memória do que foi uma madeleine, e o fato de que, quando a gente se esquece dela, ela volta, só pra contrariar. E madeleines não faltam numa cidade como o Rio, tão rica em possibilidades para os sentidos e de busca de sentido para o que não tem. Assim, até celebridades sem tempo para nada, como Pedro Bial, caem na espiral numa situação bem específica.

— É quando chove e vou à praia em Ipanema, caminhar sozinho sob o aguaceiro. Ali é meu sertão.

Falando em sertão, Bial, um apaixonado por outra grande obra nas duas dimensões (extensão e qualidade), “Grande sertão veredas”, recorda de Guimarães Rosa se gabar de não ter lido o “Ulisses” de Joyce, pois o Ulisses da “Odisseia” de Homero já bastava. Tudo isso para confessar que nunca conseguiu embalar na leitura de “Em busca...” até conhecer a edição em quadrinhos da Jorge Zahar:

— Aí, sim, devorei. Há uma coisa descritiva pré-cinematográfica. Após o cinema, fica difícil ler coisas tão longas… Há muito o que fazer e, claro, ler.

O próprio cinema é a madeleine da alma criadora de Domingos de Oliveira:

— Quando prestei atenção pela primeira vez no rosto da minha mãe enquanto me tinha no colo, compreendi o que é o close-up. A primeira vez que flipei um livro com pequenos desenhos no canto da página, compreendi que era livre para sempre e podia estar em vários lugares ao mesmo tempo, como sempre desejei.

As emanações de Ipanema e arredores também falam à memória da atriz Cláudia Abreu, que, em pleno estrelato, descolou um grau em Filosofia na PUC-Rio.

— Sentir o cheiro de maresia sentada nas pedras do Arpoador, cheias de musgos, e a visão do Dois Irmãos me trazem um Rio que não existe mais.

Da praia à roça é o percurso proustiano do cineasta Sérgio Rezende, que, recentemente, leu os sete volumes “de enfiada”, por causa de um texto de Deleuze.

— Tenho várias madeleines. No entanto, há coisas que imediatamente me remetem a momentos do passado. O mar do Arpoador, a adolescência e o cheiro de cavalo, a infância. O resto são canções, filmes e fotos. Mas nada comparável às iluminações de Proust.
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Reportagem por
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/proustmania-invade-cabeca-dos-cariocas-18661877

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