domingo, 28 de fevereiro de 2016

“A esquerda sul-americana vai permanecer como um ator político muito forte”

O secretário-geral da Flacso, Adrián Bonilla (Foto: Divulgação/ Eduardo Santillán/ Presidência Equador)

O cientista político equatoriano diz que a derrota de Evo Morales no referendo sobre a reeleição na Bolívia não implica a reprovação do seu governo pelos bolivianos

TERESA PEROSA
Adversários e críticos do governo do presidente boliviano Evo Morales comemoraram a derrota sofrida no referendo convocado por ele, realizado no último dia 21, e que poderia lhe garantir uma terceira reeleição – e um quarto mandato. Seria mais uma derrota dos governos bolivarianos, na esteira da saída de Cristina Kirchner da Casa Rosada argentina e da vitória da oposição nas eleições parlamentares da Venezuela. O professor equatoriano Adrián Bonilla pondera que o revés de Evo – e da esquerda latino-americana – não deve ser superestimado. “Ninguém pode dizer de maneira certeira que a esquerda na Bolívia não voltará a ganhar as eleições em quatro anos, ou em outros países. O que temos é sim é uma recomposição do cenário eleitoral”, afirma.  Bonilla é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Miami e secretário-geral da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso). Em entrevista a ÉPOCA, Bonilla falou sobre os resultados do referendo na Bolívia, o governo de Morales e o estado atual da democracia e da esquerda na América do Sul.

ÉPOCA - Entre os países da América do Sul que têm governos de esquerda, a Bolívia é a que continua com o melhor desempenho, considerando as taxas de crescimento e de desemprego, além do ritmo de investimentos estrangeiros no país. O presidente Evo Morales também sustenta índices de aprovação positivos. A derrota no referendo do último dia 21 é evidência da fadiga do eleitor boliviano com a liderança de Morales e com o seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS)? Morales começa a sentir o desgaste depois de 10 anos no poder?
Adrián Bonilla –
Creio que existem várias coisas. Se alguém compara os resultados do referendo com as altas taxas de aprovação da gestão governamental na Bolívia e com a popularidade da imagem do presidente vai perceber que a aprovação da gestão e a popularidade de Evo Morales são superiores à votação alcançada. Uma explicação pode ser que os eleitores bolivianos não estavam de acordo com a ideia de abrir de forma indefinida a reeleição presidencial. Então, o conceito de eleição indefinida provavelmente é a questão contra a qual votaram os eleitores bolivianos, independentemente de que alguns deles tenham sido motivados pela imagem do presidente. Foi o conceito de reeleição que perdeu, não necessariamente o presidente Morales, ainda que sua imagem estivesse vinculada a essa campanha.

ÉPOCA – Depois de duas reeleições, a oposição boliviana também não conseguiu emplacar um candidato para se opor ao MAS. Isso corrobora essa ideia de que a rejeição dos eleitores bolivianos  foi à reeleição, não ao projeto político?
Bonilla –
  Não era um referendo revocatório ou aprobatório do presidente Morales. Por isso, a rejeição concreta foi à ideia da reeleição. A oposição efetivamente está fragmentada, mas também me parece ser muito cedo falar sobre vitória ou derrota, porque transcorreu apenas um ano do mandato de Morales. Faltam quatro anos para as próximas eleições. Isso é muito tempo e é muito difícil com tanta antecipação começar a pensar em candidaturas.

ÉPOCA – Quem disse não para Morales?
Bonilla –
O que saiu da votação é que a população urbana das cidades votou pelo não, de forma majoritária. O presidente Morales continua sendo muito popular no mundo rural, no campo. Essa é a primeira observação evidente. A segunda é que as províncias do oriente boliviano, aquelas que sempre tiveram uma agenda que tem mais a ver com autonomia, voltaram a votar contra as teses do presidente. Foi reconstituído o antigo mapa boliviano em que as províncias centrais e do oeste - La Paz, Cochabamba, Oruro, etc - votam de uma maneira, e o oriente, a planície amazônica e tropical votam de outra maneira. A divisão histórica da Bolívia voltou a ser evidente. Não temos ainda dados que nos permitam analisar como foi a votação por segmento social. O que foi mais evidente é que a cidade e o oriente votaram pelo não, enquanto o presidente Morales sustenta uma alta votação no campo e nas províncias centrais.

ÉPOCA – Isso é uma evidência de polarização do eleitorado boliviano?
Bonilla –
A polarização não é só um fenômeno boliviano contemporâneo. É um fenômeno latino-americano e tem a ver algumas explicações. Há polarização na Venezuela, houve polarização na Argentina, há polarização no Brasil. O que ocorre na Bolívia não é excepcional. E não é deste momento, mas desde o princípio da administração de Morales. O que ocorre é que, até este momento, o polo de oposição era bastante menor e insignificante em relação à quantidade de votos que as forças que aprovavam o presidente Evo Morales.

ÉPOCA – Analistas argumentam que a esquerda não é uma só na América Latina. Alguns economistas apontam duas tendências: uma "bolivariana", baseada em forte intervenção do Estado na economia – casos da Venezuela, Equador e da Argentina kirchnerista. Outra mais "liberal", que combinaria políticas econômicas ortodoxas com programas sociais, como Peru, Chile e a Bolívia de Evo Morales. O que acha dessa divisão?
Bonilla –
Há várias formas de classificar a esquerda. Uma delas tem a ver com o manejo da economia. Mas me parece que não há uma tendência homogênea. Creio que cada país, independentemente do governo, maneja a economia de acordo com os recursos e a capacidade do Estado de conseguir regulá-la. A Venezuela não se parece com nenhum outro país. Não se pode dizer que o manejo econômico da Venezuela seja igual ao do Equador, ou ao do Brasil, ou ao da Bolívia, para citar os governos de esquerda mais identificáveis na América do Sul. Há questões também de ordem internacional. Aqueles países que se agrupam na Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) têm uma forma de compreender a ordem internacional que não coincide necessariamente com outros países que tem governos que se identificam com a esquerda.Então creio que, para resumir, há várias maneiras de classificar a esquerda e ela não é homogênea na América do Sul.
ÉPOCA – Essa divisão entre a esquerda bolivariana e liberal seria simplista, na sua opinião?
Bonilla –
Pela maneira como se manejam os recursos econômicos, é muito simplista,sim.Tende-se a superdimensionar o modelo venezuelano, que só se aplica à Venezuela. Os outros países não se identificam com ele.

ÉPOCA – Alguns analistas também argumentam que a esquerda com tendências mais liberais na economia teria dado certo, dado que a situação das contas públicas no Chile, na Bolívia e no Peru é positiva, com crescimento econômico e inflação baixa. O senhor concordaria com essa avaliação?
Bonilla –
Creio que o Peru não faz parte dos governos que se identificam com a esquerda. E me dá a impressão que o raciocínio se aplica de forma contrário: naquelas economias mais prósperas uma esquerda mais liberal se adaptou melhor. No Uruguai, na Argentina, no Chile temos um dos modelos mais liberais em termos de direitos, de mobilização, de expressão, por várias razões. Uma delas foi a experiência ditatorial nos anos 1970 e 1980. Outra razão é que são historicamente sociedades mais prósperas que as do arco andino, por exemplo. E creio que o caso venezuelano é ó único caso visível de crise geral, política e econômica. No caso do Equador, por exemplo, o país está enfrentando de forma dramática uma redução das divisas como consequência da dolarização que é uma política extremamente liberal, mas que o governo persiste em sustentar. Então esses casos não me parecem comparáveis. Por causa das circunstâncias extremas do entorno internacional e da ausência de moeda, o Equador está fazendo o possível para superar essa crise. Não creio que se trate de um fracasso da política econômica e sim de um contexto internacional duro. O caso da Venezuela é distinto, porque há um programa econômico que foi dilatado em sua adoção. Da mesma maneira, a economia boliviana, cujo presidente tem um discurso radical, se viu menos afetada que outros pela crise das exportações de bens primários.

ÉPOCA – Por quê?
Bonilla –
 A Bolívia é menos vulnerável, porque não depende tanto de suas exportações e porque tem uma sociedade que se globalizou menos que as outras. Assim como o Paraguai.

ÉPOCA – Os críticos do modelo bolivariano dizem que a derrota de Morales é mais um sinal do enfado do eleitor com a esquerda na América do Sul. Estaríamos próximos do fim de um ciclo na região, em termos da esquerda no poder?
Bonilla –
Estamos diante de um cenário diferente. Da mesma maneira que a chegada de vários governos de esquerda na América Latina não acabou para sempre com as forças que vão do centro até a direita, este é um momento do ciclo em que as forças de esquerda não têm o êxito que antes tiveram. Isso não significa, porém, que elas vão desaparecer. Seguem sendo muito fortes. Ninguém pode dizer de maneira certeira que a esquerda na Bolívia não voltará a ganhar as eleições em quatro anos, nem pode afirmar sobre um resultado distinto no Equador, ou em outros países. O que temos é sim é uma recomposição do cenário eleitoral, não é um "fim da história". Nós temos uma esquerda sul-americana, sobretudo, que vai permanecer como um ator político muito forte em seus países e uma direita que tampouco terminou ou foi extinta durante o triunfo de mais de uma década da esquerda. Isso não pode ser compreendido sem entender que também que há um novo ciclo econômico em toda a América do Sul, que se caracteriza pela estagnação dos índices de crescimento.

ÉPOCA – É culpa exclusiva da situação econômica e das políticas nessa área?
Bonilla –
Creio que sim. Trata-se de um problema de economia, mas também de um problema de política. O caso boliviano é ilustrativo, porque a economia da Bolívia está, nos seus indicadores, bastante melhor do que o resto dos países da América Latina. No entanto, se alguém olha, por exemplo, para o que acontece no Peru, onde tivemos mudanças de governo constantes, onde a votação nos últimos 20 anos tem dado as costas ao governo que acaba seu mandato, de todas as tendências, é algo que precisa ser relativizado. Na Argentina, o triunfo de Macri foi muito apertado, como acaba de ser na Bolívia. Então nada disso nos leva a presumir que tenhamos um cenário sem esquerda nos próximos anos, mas que teremos um cenário em que as forças políticas estão mais equilibradas. Perder por dois pontos em 100% de votantes não é uma tragédia pra ninguém. Não foi na Argentina e não foi na Bolívia.

ÉPOCA – Até que ponto esse revés que sofreu Evo Morales, seguido da derrota do kirchnerismo na Argentina e da derrota do chavismo nas últimas eleições parlamentares na Venezuela, representa a adesão das populações a políticas econômicas liberais?
Bonilla –
É difícil dizer que haja um voto nessa direção porque nas campanhas o tema da economia sempre está ocultado por outros temas. Ninguém pode afirmar certeiramente que os eleitores argentinos votaram por uma proposta econômica, porque este não foi o tema, ao menos do presidente (Mauricio) Macri. Foram outros os elementos simbólicos que motivaram sua campanha. O que é necessário entender é que os eleitores de toda a região estão buscando renovação, mudança. E isso é lógico de se entender, independentemente das ideologias dos governos, pelo momento de estagnação econômica, que se expressa na recessão de economias importantes da América do Sul.

ÉPOCA – O resultado do referendo do último domingo se refletirá de alguma maneira nas eleições presidenciais de 2020 na Bolívia?
Bonilla –
É difícil adivinhar. O que segue evidente é que o conjunto das políticas públicas bolivianas e da ação do partido do governo MAS girou ao redor da fortaleza e da figura do presidente Morales. O uso simbólico da figura do presidente perdeu força nessa eleição.As forças que o respaldam precisam buscar outras pessoas, outros nomes e outros motivos mobilizadores. Isso parece evidente. Mas eu acho que uma votação de 49% não significa necessariamente que o movimento do governo será derrotado nas próximas eleições. É um cenário aberto. Podem ganhar ou perder.

ÉPOCA – Esse resultado terá algum impacto na situação política da região?
Bonilla –
Sim, claro. O que temos nesse momento em toda a região é um um cenário de maior heterogeneidade. O presidente Morales era um dos líderes de maior prestígio da esquerda latino-americana e sul-americana e esse é um golpe político que se refletirá internacionalmente. No entanto, a agenda de entidades como a Unasul ou a Celac sempre se constrói por consenso. De maneira que o peso do voto de um presidente é muito relativo porque os temas de interesse coletivo multilateral na América do Sul requerem unanimidade. Obviamente há algum tipo de impacto, mas na prática isso não será notado.

ÉPOCA – Em alguns países da América do Sul, as instituições democráticas parecem mais fortes que em outros. Por que isso acontece?
Bonilla –
Eu não estou seguro de integrar a Argentina nas democracias que tem debilidade institucional. Desde a substituição do presidente De La Rua, há estabilidade. O que acontece é que a política argentina tem uma retórica muito forte. Mas se alguém observa a fortaleza das instituições, não houve nenhuma grande erosão. Há um debate intenso entre os atores políticos, mas não há perigo de golpe de Estado ou nada do estilo. Não há sequer conflito entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não colocaria a Argentina nesse grupo. Temos democracias estáveis de larga data em vários países da região, com grandes conflitos. Esse é o caso da Colômbia. Se crermos que a América Latina é maior que a América do Sul, temos democracias muito estáveis, como a da Costa Rica que tem sido muito estável. Ela é provavelmente a mais estável no continente em termos históricos, assim como a do Uruguai. Eu acho que, em termos gerais, as crises política e econômica afetam muitos poucos países. Dentro da América do Sul, o caso mais dramático é o da Venezuela. Mas não encontro outro na região nessa situação. Na Bolívia, acabamos de ter um referendo para resolver um problema constitucional importante. P povo votou e foi resolvido o problema. E não tivemos cenários dramáticos em outros países nos últimos anos. Se compararmos a América Latina deste momento, da segunda década do século XXI, com a dos anos 1980 e 1990 do século XX, vamos perceber que a situação é bem melhor em termos de estabilidade institucional.

ÉPOCA – O resultado do referendo, seguido do anúncio do presidente Morales de que aceitava a decisão, são indicativos positivos do estado da democracia na Bolívia e na região?
Bonilla –
A aceitação do resultado por parte do presidente Morales expressa a vigência da institucionalidade boliviana e da democracia e seus instrumentos para dirimir a política, ainda que em contextos de alta polarização. Que um tema de importância suprema, como é o da reeleição, tenha sido resolvido em um referendo, com consulta ao povo, envia uma mensagem positiva para o conjunto da região.
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Fonte: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/02/adrian-bonilla-esquerda-sul-americana-vai-permanecer-como-um-ator-politico-muito-forte.html

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