domingo, 13 de dezembro de 2015

CÂNTICOS

Luis Fernando Veríssimo*
Um dos tantos momentos inesquecíveis do filme Chico – Artista Brasileiro, do Miguel Faria Jr., é o dueto do Milton Nascimento e da Carminho, cantando Sobre Todas as Coisas, que o Chico e o Edu Lobo fizeram para O Grande Circo Místico. É aquela música que pode ser chamada de uma cantada sideral: um homem invocando os desígnios do Universo para que uma mulher não resista aos seus avanços, pelo amor de Deus.

“Pelo amor de Deus/ não vê que isto é pecado/desprezar quem lhe quer bem/ não vê que Deus fica zangado vendo alguém/ abandonado pelo amor de Deus.”

“Ao Nosso Senhor/ pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor/ se tudo foi criado/ – o macho, a fêmea, o bicho, a flor –/ criado para adorar o criador.”

E para assegurar que sua união, longe de ofender o Senhor, terá sua bênção:

“Será que o Deus/ que criou nosso desejo é tão cruel/ mostra os vales onde jorram o leite e o mel/ e esses vales são de Deus?”
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No Cântico dos Cânticos, da Bíblia, outro poeta, Salomão, escreveu para sua amada:

“Favos de mel manam dos teus lábios, ó minha esposa. Mel e leite estão debaixo da tua língua, e o cheiro dos teus vestidos é como o cheiro dos cedros do Líbano”.

Os cantares do Salomão são um poema a duas vozes, a do homem e a da sua amada, com intervenções das filhas de Jerusalém, como uma espécie de coro safado.

Ela: “Levanta-te, vento norte, e vem tu, vento sul. Soprem no meu jardim para que se derramem os seus aromas. Ah, se viesse o meu amado para o seu jardim, e comesse os seus frutos excelentes!”.

Ele: “Os teus lábios são como um fio de escarlate, e o teu falar é doce. A tua fronte é qual pedaço de romã entre as tuas tranças. O teu pescoço é como a torre de Davi. Os teus dois peitos são como dois filhos gêmeos da gazela, que se apascentam entre os lírios”.
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O erotismo explícito do Cântico dos Cânticos tem sido um problema para exegetas da Bíblia e fiéis, que recorrem a interpretações muitas vezes absurdas para justificar sua presença no Livro Sagrado. Uma das edições da versão do rei James traz um comentário na margem do texto esclarecendo que se trata de uma metáfora para o amor do Deus pela sua Igreja, o que é bonito, mas torna difícil de explicar os filhos gêmeos da gazela.
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O apelo à linguagem figurada, no entanto, pode ser uma salvação. Os cantares de Salomão seriam, todos, mensagens cifradas, a serem decodificadas. No século 4, havia um conflito aberto entre teólogos e doutores da Igreja sobre dogmas ou sobre as verdades que a Igreja precisava definir e adotar. O que equivalia a definir e expurgar as heresias que contrariavam os dogmas a serem sacramentados. Quais e quantas eram as heresias? Um bispo chamado Epifanius chegou a um número exato de heresias através da História, 80. E deu como garantia de que sua conta estava certa um trecho do Cântico dos Cânticos: “Sessenta são as rainhas e oitenta as concubinas, e as virgens sem número”.
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Não se sabe por que raciocínio Epifanius deduziu que as 80 concubinas do poema correspondiam às 80 heresias execráveis. Mas ilimitados são os sortilégios da poesia, e misteriosos os caminhos da fé.
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* Escritor. Jornalista. Cronista.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4929449.xml&template=3916.dwt&edition=28021&section=70
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