sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

“A Forma da Água” de uma Mulher

Maria do Céu Brojo*

Bryan Larsen
Bryan Lar­sen

Um Nobel da Física como braço-direito de Obama para as ques­tões ener­gé­ti­cas cons­ti­tuiu aus­pí­cio não des­pi­ci­endo pela vira­gem que repre­sen­tou. Ste­ven Chu é um inves­ti­ga­dor ousado na pro­cura de solu­ções cien­tí­fi­cas para as alte­ra­ções cli­má­ti­cas. Dedi­cado apo­lo­gista das fon­tes de ener­gia reno­vá­veis. Auda­ci­oso e sen­sato — com­bi­na­ção que não soe pri­mar como usual.

Por­que tudo o que noti­cia atos ou inten­ções do pre­si­dente do mundo é motivo de espe­rança e ren­di­ção, eis quedar-me per­plexa e teme­rosa. Crer nos mes­sias da moder­ni­dade é tão ingé­nuo como levar a sério o homem que da mulher pre­tende o corpo e o espí­rito dela usa para enter­rar a seta no alvo. O mesmo dizem eles, far­tos de rodeios e redon­di­lhas daque­las que de duas, uma: ou pre­ten­dem dar corda ao reló­gio bio­ló­gico que lhes des­perta a neces­si­dade de pro­criar, ou depen­dem de um ama­nhã con­ju­gal como garante de res­pei­ta­bi­li­dade e amparo. Em qual­quer dos casos, um des­gosto que não motiva sequer um jan­tar salvo se a carne, ainda assim, esti­ver pre­ci­sada cres­cer. Fun­da­men­tal a dife­rença entre homens e mulhe­res no governo da libido: a eles subjuga-os, a elas serve-as, ainda que pas­sí­vel de vee­mente des­men­tido. Eles rapo­sas, elas uvas, ou quando o con­trá­rio vai dar ao mesmo.

Numa pales­tra sobre Ray­mond Chan­dler, foi dis­se­cado o dete­tive par­ti­cu­lar Phi­lip Mar­lowe que viria a ins­pi­rar dois lusos suce­dâ­neos: Jaime Ramos e Filipe Cas­ta­nheira que Vie­gas rein­ven­tou. O herói de Chan­dler era con­trá­rio ao este­reó­tipo do homem que nau­fraga nos bra­ços de mulhe­res frá­geis, pre­dis­pos­tas a ado­tar o esta­tuto de “salva-me, por favor!”. Enta­bu­lava nego­ci­a­ções de leito e amo­res com fêmeas cuja fata­li­dade sedu­tora tam­bém advi­nha da auto­no­mia exsu­dada. Não pre­ci­sa­vam dele para nada, tão pouco lhe eram neces­sá­rias como res­pi­ra­ção. Ou eram. Mas como gol­fa­das de ar fresco que não temia lhe arra­nhas­sem a gar­ganta. De hipo­con­dría­cos nada tinha per­so­na­gem e autor.

Mer­gu­lhando na aven­tu­reira nebu­losa de whis­kies, fumo, sus­sur­ros de incon­fes­sas clan­des­ti­ni­da­des e pai­xões, rema­nesce o dete­tive Salvo Mon­tal­ban. Quase sobre­põe o gozo de comer berin­ge­las à par­mesã, aos pra­ze­res esme­ra­dos que na cama lhe ser­vem Lívia, Ingrid e Anna. Fareja-as com o olhar. Pro­cura identificar-lhes a mola que as faz, tal como pro­cede ao per­se­guir, men­tal­mente, um cri­mi­noso. Ceva-as com tanto de des­vairo como de gelo. E elas escor­rem a volup­tu­osa raiva da mulher que não domina nem quer, mas quer, domi­nar o indo­má­vel ceva­dor do ven­tre que abre e no lago húmido des­liza ora manso, ora cruel. Aquele que con­fere forma arre­ba­tada e sabor pró­prio à água las­civa duma mulher é o Mes­sias do momento — intré­pido, auda­ci­oso e pro­vo­ca­do­ra­mente sen­sato. Para a líquida espe­rança ou fan­ta­sia o mesmo cons­ti­tuem Ste­ven Chu, Obama, Mar­lowe ou Montalban.
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Nota: “A Forma da Água” de Andrea Camil­leri – Difel.
*Escritora
Fonte:  http://www.escreveretriste.com/2015/12/a-forma-da-agua-de-uma-mulher/

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