segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A carta de Rosa Luxemburgo sobre a alegria do Natal, em plena prisão

 José Tolentino Calaça de Mendonça*

Diante de um anônimo animal ferido, Rosa Luxemburgo compreendeu que uma comunhão entre os seres humanos e as outras criaturas não é apenas possível. É urgente e necessária.

Um dos textos mais comoventes que eu conheço é uma carta de Rosa Luxemburgo escrita a uma amiga da prisão feminina de Wroclaw, por ocasião do Natal, poucos meses antes da sua execução.
Era o último período daquele paradoxal 1917, e poucos se arriscavam a dizer com certeza a qual destino o mundo de então era arrastado. O texto de Rosa Luxemburgo confirma um compromisso explícito naquele contexto histórico e assume a defesa da revolução então em andamento na Rússia, opondo-se à perspectiva dos "correspondentes dos jornais burgueses", que descreviam a nova situação como um desencadeamento de loucura.

Essa certamente é a parte mais datada, parcial e envelhecida. Rosa sabe que é profética em relação à Alemanha, entrevendo a possibilidade de um pogrom, mas não o é do mesmo modo com relação à Rússia.

Na realidade, o que faz da sua carta um "documento de humanidade e poesia", para citar Karl Kraus, que deveria ser ensinado "às gerações futuras", são as duas partes posteriores.

Era o terceiro Natal que a filósofa e sindicalista passava na prisão. Ela buscou uma árvore de Natal para si, mas não conseguiu remediar outra coisa, senão um arbusto miserável e despojado, que, mesmo assim, carregou para a própria cela.

E isso a levou a se interrogar sobre a "ebriedade alegre" que conseguia armazenar naquele inferno, aquela irredutível espécie de confiança que persistia nela apesar do desconforto e da desolação.

Ela escreveu naquela noite: "Estou aqui deitada, sozinha, em silêncio, envolta nestes múltiplos e escuros lençóis da escuridão, do tédio, da prisão de inverno – e, enquanto isso, o meu coração bate de uma alegria interior incompreensível e desconhecida, como se eu fosse caminhando ao sol radioso em um prado florido. [...] Nestes momentos eu penso em você e eu gostaria tanto de lhe transmitir esta chave mágica, para que você perceba sempre e em qualquer situação o lado bonito e alegre da vida".
E, quando se pergunta mais profundamente o porquê de tanta "felicidade", ela declara: "Eu não o encontro, de fato, e não posso deixar de sorrir ainda de mim mesma. Acho que esse segredo nada mais é do que a própria vida".

A última parte da carta não é menos inesquecível. Rosa Luxemburgo assiste à chegada de carros repletos de pesados sacos de indumentos militares, que as prisioneiras deverão emendar. São puxados por búfalos capturados na Romênia e exibidos como troféus.

Pela primeira vez, ela observa a indizível dor dos animais. É um choque e uma revelação. Quando se atreve a pedir "um pouco de compaixão" por aquelas criaturas esgotadas, o carreteiro lhe responde violentamente: "E de nós, quem tem piedade?". E, na frente dela, recomeça a bater fortemente nos búfalos.

O olhar de Rosa Luxemburgo se fixa, então, em um deles. O animal sangrava, mas permanecia imóvel, com os olhos mais mansos do que ela jamais tinha visto. Naqueles olhos, ela percebeu uma impotência semelhante a de uma criança que estivesse chorando por um longo tempo sem ser ouvida.
"Era exatamente a expressão de uma criança que é punida duramente e não sabe por qual motivo nem por que, que não sabe como escapar do sofrimento e da força bruta... Eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas escorriam dos meus olhos, eram as suas lágrimas. Diante da dor de um irmão querido, é impossível não ser sacudido pelos mais dolorosos soluços como na minha impotência diante desse sofrimento mudo."

Da empatia que ligava naquele momento uma mulher a um anônimo animal ferido, nascia uma nova forma de resistência à brutalidade e à barbárie. "Diante dos meus olhos, vi passar a guerra no seu estado puro": Rosa Luxemburgo compreendeu que uma comunhão entre os seres humanos e as outras criaturas não é apenas possível. É urgente e necessária.
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*A opinião é do padre, poeta e teólogo português José Tolentino Calaça de Mendonça, professor e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa. O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 10-12-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/noticias/550093-a-carta-de-rosa-luxemburgo-sobre-a-alegria-do-natal-em-plena-prisao


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Rosa Luxemburg: Uma carta da prisão a Sonia Liebknecht

*Breslau, antes de 24 de dezembro de 1917.


Sonitchka, meu passarinho, fiquei tão contente com a sua carta! Queria responder imediatamente mas tinha muito o que fazer, e precisava de grande concentração, por isso não pude dar-me a esse luxo. Então preferi esperar uma oportunidade, pois é muito melhor poder tagarelar com você à vontade.

Pensei em você todos os dias ao ler as notícias da Rússia, e preocupei-me imaginando a sua enorme aflição a cada telegrama estúpido. O que de lá chega neste momento são, na maioria, informações de tártaros, e isso é duplamente verdadeiro no que se refere ao sul.1 O que importa às agências telegráficas (aqui e lá) é exagerar o mais possível o caos, e elas aumentam de maneira tendenciosa todo boato não confirmado. Até as coisas se esclarecerem, não tem sentido, não há razão para inquietar-se à toa, por antecipação. De modo geral, parece que as coisas se passam sem nenhum derramamento de sangue; em todo caso, os boatos sobre “combates” não foram confirmados. Trata-se simplesmente de uma áspera luta partidária a qual parece sempre, pela explicação dos correspondentes dos jornais burgueses, uma loucura desenfreada e um inferno. No que se refere aos pogroms contra judeus, todos os boatos nesse sentido são completamente falsos. Na Rússia, a época dos pogroms acabou de uma vez por todas. O poder dos trabalhadores e do socialismo é muito forte para isso2. A revolução purificou de tal maneira a atmosfera dos miasmas e do ar sufocante da reação que Kichinev3 é para sempre passé.Tenho menos dificuldade em imaginar pogroms contra judeus na Alemanha... Aí reina sem dúvida a atmosfera de baixeza, covardia, reação e estupidez propícia para isso. Nesse ponto, você pode ficar totalmente tranqüila no que se refere ao sul da Rússia. Como as coisas desembocaram ali num conflito muito agudo entre o governo de São Petersburgo e a Rada4, logo elas devem se resolver e esclarecer, o que permitirá ter um panorama da situação. De todos os pontos de vista não faz nenhum sentido, não há nenhum motivo para que você, na incerteza, se aflija, cheia de medo e inquietação. Tenha coragem, minha menina, mantenha a cabeça erguida, fique firme e tranqüila. Tudo vai melhorar, é só não ficar sempre à espera do pior!...

Eu tinha uma grande esperança de vê-la por aqui em breve, em janeiro. Agora soube que Mat[thilde]W[urm] Quer vir em janeiro Seria difícil para mim desistir da sua visita em janeiro, mas como é natural não posso decidir. Se você disser que só pode vir em janeiro, então talvez fique como estava; talvez Mat[thilde] W [urn] possa vir em fevereiro? Em todo caso, gostaria de saber logo quando a verei.

Faz agora um ano que Karl [Liebknecht] está na prisão em Luckau5, neste mês pensei nisso com freqüência; faz exatamente um ano você esteve comigo em Wronke e me ofereceu a linda árvore de Natal... Este ano pedi que me comprassem uma, mas a que me trouxeram era muito reles, com galhos faltando – não tem comparação com a do ano passado. Não sei como vou pôr as oito velas que comprei. É o meu terceiro Natal no xadrez, mas não considere isso tragicamente. Estou calma e alegre como sempre.

Ontem fiquei muito tempo acordada – agora não consigo dormir antes da uma, mas preciso ir para cama às 10 porque a luz é apagada –, e então no escuro sonho com diversas coisas. Ontem então pensava: como é estranho eu viver permanentemente numa alegre embriaguês, sem nenhuma razão particular. Assim, por exemplo, estou aqui deitada nesta cela escura, num colchão duro como pedra, enquanto à minha volta, no edifício, reina a habitual paz de cemitério; parece que está no túmulo. Através da janela desenha-se no teto o reflexo do bico de gás ardendo a noite inteira em frente da prisão. De tempo em tempos ouve-se o ruído surdo de um trem que passa ao longe, ou então, bem perto, debaixo das minhas janelas, o pigarro da sentinela que, com suas botas pesadas, dá alguns passos lentos para desentorpecer as pernas. A areia estala tão desesperadamente sob esses passos que todo vazio e a falta de perspectivas da existência ressoam na noite úmida e sombria. E aqui estou deitada, quieta, sozinha, enrolada nos véus negros das trevas, do tédio, da falta de liberdade, do inverno – e, apesar disso, meu coração bate com uma alegria interior desconhecida, incompreensível, como se debaixo de um sol radiante estivesse atravessando um prado em flor. No escuro, sorrio à vida, como seu eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras, transformando-as em luz intensa e felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para essa alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta saber olhar. No estalar da areia úmida sob os passos lentos e pesados da sentinela canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir. Nesses momentos penso em você. Gostaria tanto de passar-lhe essa chave mágica para que você percebesse sempre, em todas as situações, o que há de belo e alegre na vida, para que também você viva na embriaguês, como que caminhando por um prado cheio de cores. Longe de mim a idéia de contentá-la com ascetismo, com alegrias imaginárias. Concedo-lhe todas as verdadeiras alegrias dos sentidos. Só gostaria de dar-lhe também a minha inesgotável serenidade interior, para não me preocupar mais com você, para que andasse na vida com um manto de estrelas protegendo-a de tudo que é mesquinho, banal e angustiante.

Você colheu no parque de Steglitz um lindo buquê de bagos negros e rosa-violeta. Os bagos negros podem ser de sabugueiro – seus bagos pendem em cachos pesados e densos entre grandes feixes de folhas pinuladas, você certamente conhece – ou, mais provavelmente, de alfena: panícula de bagos, elegantes, graciosas, eretas, e folhinhas verdes, compridas e finas. Os bagos rosa-violeta, escondidos sob folhas bem pequeninas, podem ser de nespereira anã; na realidade, eles são vermelhos, mas neste período da estação, já demasiado maduros e começando a apodrecer, têm freqüentemente uma aparência violeta avermelhada; as folhinhas parecem-se com as do mirto, pequenas, afiladas na ponta, o lado de cima verde escuro, semelhante ao couro, o de baixo rugoso.

Soniucha, você conhece o poema de Platen, “Verhängnisvolle Gabel” [Garfo fatal]?6 Você poderia enviá-lo ou trazê-lo? Karl mencionou uma vez que tinha lido em casa. Os poemas de George são bonitos; agora sei de onde vem o verso “e sob o murmúrio do trigo erubescente”. [Umd unterm Rauschen rötlichen Getreides...]7 que você sempre recitava quando íamos passear no campo. Você poderia copiar para mim, quando for possível, o novo “Amadis”?8 Gosto tanto desse poema – naturalmente graças ao lied de Hugo Wolf –, mas não o tenho aqui. Você continua lendo a Lenda de Lessing?.9 Retomei a História do materialismo, de Lange, que sempre me estimula e restaura. Gostaria tanto que você a lesse um dia desses.

Ah! Sonitchka, passei aqui por uma dor violenta. No pátio onde passeio chegam muitas vezes carroças do exército, abarrotadas de sacos ou túnicas velhas e camisas de soldados, muitas vezes manchadas de sangue...; são descarregadas, distribuídas pelas celas, consertadas, novamente postas nas carroças para serem entregues ao exército. Outro dia, chegou uma dessas carroças, puxada não por cavalos, mas por búfalos. Era a primeira vez que via esses animais de perto. São mais fortes e maiores que os nossos bois, têm a cabeça chata, chifres curvos e baixos, e uma cabeça totalmente negra, de grandes olhos meigos, que lembra a dos nossos carneiros. Vêm da Romênia, são um troféu de guerra... os soldados que conduziam a carroça diziam ser muito difícil capturar esses animais selvagens, e ainda mais difícil utilizá-los para carregar fardos, pois estavam acostumados à liberdade. Foram terrivelmente maltratados até compreenderem que perderam a guerra e que também para eles vale a expressão “vae victis” [ai dos vencidos]... Só em Breslau deve haver uma centena desses animais; acostumados que estavam às ricas pastagens da Romênia recebem ali uma ração parca, miserável. Trabalham sem descanso puxando todo tipo de carga e com isso não demoram a morrer. Há alguns dias então uma dessas carroças cheia de sacos entrou no pátio. A carga era tão alta que os búfalos não conseguiam transpor a soleira do portão. O soldado que os acompanhava, um tipo brutal, pôs-se a bater-lhes de tal maneira com o grosso cabo do chicote que a vigia da prisão, indignada, perguntou-lhe se não tinha pena dos animais. “Ninguém tem pena de nós, homens”, respondeu com um sorriso mau e pôs-se a bater ainda com mais força... Os animais deram finalmente um puxão e conseguiram transpor o obstáculo, mas um deles sangrava... Sonitchka, a pele do búfalo é proverbialmente espessa e resistente, e ela foi dilacerada. Durante o descarregamento, os animais permaneciam imóveis, esgotados, e um deles, o que sangrava, olhava em frente e tinha, na cara escura e nos olhos negros e meigos, uma expressão de uma criança em prantos. Era exatamente a expressão de uma criança que foi severamente punida e que não sabe por qual motivo, por que, não sabe como escapar ao sofrimento e a essa força brutal... eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas saltaram-me dos olhos – eram as suas lágrimas. Ninguém pode sofrer mais por um irmão querido do que eu sofri na minha impotência com essa dor silenciosa. Como estavam longe, perdidas, inacessíveis, as pastagens da Romênia, essas pastagens verdes suculentas e livres! Como tudo lá era diferente, o brilho do Sol, o sopro do vento, como eram diferentes os belos cantos dos pássaros ou o melodioso chamado do pastor. E aqui – esta cidade estrangeira, horrível, o estábulo sombrio, o feno mofado, repugnante, misturado com a palha apodrecida, os homens desconhecidos, assustadores, e – as pancadas, o sangue que corre da ferida aberta... Oh! meu pobre búfalo, meu pobre irmão querido, aqui estamos os dois tão impotentes e mudos, mas somos só um na dor, na impotência, na saudade. Entretanto os prisioneiros agitavam-se em volta do carro, descarregavam os pesados sacos e arrastavam-nos para dentro; já o soldado enfiara as mãos nos bolsos das calças e percorrendo o pátio com grandes passos, ria e assobiava baixinho uma canção da moda. Diante de mim a guerra desfilava em todo o seu esplendor.
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Abraços, Sonitchka,
Sua R

Sonitchka, querida, fique calma e alegre apesar de tudo. Assim é a vida. É preciso tomá-la corajosamente, sem medo, sorrindo – apesar de tudo. Feliz Natal!

Rosa de Luxemburg ou o preço da liberdade - Jörn Schütrumpf (org.)

Editora Expressão Popular – 1ª edição – São Paulo – 2006
Tradução: Isabel Maria Loureiro
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Fonte:  http://www.vermelho.org.br/noticia/38712-11

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