sexta-feira, 13 de novembro de 2015

UMA QUESTÃO DE CLASSE


Lya Luft*

 

Há alguns anos, um vento novo varreu o Brasil numa grande mudança para os menos favorecidos, novos planos do governo provocando uma energia febril: a subida de milhões de famílias das classes D e E para a classe C, isto é, a classe média, através de programas sociais e outros benefícios.  A ordem do governo era comprar, a onda era “consumir”. Mais ou menos assim: “A elite branca não quer que você tenha nada ( como se pobre fosse só negros e mulatos, ou brancos todos ricos...), mas isso está mudando. Comprem carro. Troquem a geladeira, comprem tevê plana, andem de avião, botem os filhos na faculdade, comprem casa, mobília novinha, eletrodomésticos modernos, façam seguro-saúde, porque vocês são classe C”. A correria e o entusiasmo foram enormes. Pouquíssimos duvidaram, como não acreditar? Créditos quase a perder de vista, juros baixos, podia haver coisa melhor?

Mas os bons ventos de fartura sopraram pouco tempo. O crédito que possibilitou tudo isso encolheu, ou se fechou. Subiram os juros e os impostos, e continuam a crescer. As prestações, até noventa meses para um carrinho, ficaram impossíveis de manter. O salario congelou, e o fantasma do desemprego se tornou uma assustadora realidade que não para de crescer. Milhões de desempregados, grande parte do povo inadimplente. Só na construção civil, esperam-se mais 500 000 empregos formais cancelados até o fim do ano. A informalidade explode.

Casinhas são retomadas, crianças tiradas da escola melhor, milhares de alunos que entraram numa universidade através do Fies são avisados: não há mais dinheiro. “E o empréstimo que eu fiz, como vou pagar, e meu sonhado curso superior, quando vou voltar?” Jovens mandados ao exterior com o tão alardeado e elogiado projeto Ciência sem Fronteiras logo viram também esse dinheiro terminou – se é que existiu. Muitíssimos não têm como pagar alojamento, alimentação, curso nem pensar, e nada para a passagem de volta. “Não há mais dinheiro”, explicação pura e simples para dramas dolorosos. Onde foi parar? Foi o real ou invenção interesseira? Crescem as dívidas: na prática, o que fazer? Escolher as contas indispensáveis e ficar devendo outras, aconselham as autoridades. Quais são indispensáveis?

Não há dinheiro em caixa para socorrer a saúde agonizante, a segurança falida, e o resto do país que visivelmente apodrece. Para as estradas intransitáveis, que movem a economia e poderiam deter o atraso em que mergulhamos, “não há dinheiro nem pra tapara buracos”. Um hospital sem condições traz muitas mortes que seriam evitadas; escolas e faculdades fechando porque não há dinheiro para retirar o lixo dos corredores, deixam jovens sem estudo, às vezes sem ocupação nem futuro. Nos shoppings, deprimentes tapumes substituem lojas grandes ou pequenas: fechou, desistiu (mais desemprego). Todo um exército de empregadas domésticas que passam a trabalhar no comércio, por exemplo, agora demitidas, quer retornar à função  anterior. Porém, novo espectro: muitíssimas famílias desistem dessas funcionárias diante dos problemas trazidos pela nova lei do empregado doméstico, que, como tantas leis mal projetadas, tem o resultado inverso.

A nova onda, a das demissões, chega a funcionários de todos os setores e níveis de qualquer empresa, dos mais simples aos executivos. Ninguém está seguro de seu cargo. O medo dessa situação – que é resultado de inacreditável incompetência, péssima administração, inverdade, febre de poder, e omissão com relação ao povo enganado – deixa todos acuados. Também se desse da classe alta para a média, e desta para a inferior. Se na onda de consumo mais de 3 milhões de famílias subiram degraus D e E para o C, agora milhões fazem o caminho inverso. Todos caem, nesse melancólica mudança, sem enxergar no horizonte figuras confiáveis que nos liderem, sem plano sensato ou ação concreta que nos deem esperança: as previsões são as piores possíveis. Com veem, nem tudo é questão de classe.

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*Escritora

Fonte: Revista Veja impressa – 11 de novembro de 2015, pág.24.

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