sábado, 21 de novembro de 2015

LÓGICA HIPERMODERNA DO MARTÍRIO


Gilles Lipovetsky*
 
          Filósofo francês reflete sobre o que leva 
os jovens ao terrorismo 
e a falta de esclarecimento 
ante a conversão radical.

          Por que em Paris? Por que jovens franceses se tornam fanáticos religiosos? Não é surpreendente que tenha sido em Paris por várias razões. Tivemos duríssimos atentados em janeiro contra o jornal Charlie Hebdo e o  mercado Casher. Paris tornou-se  alvo dos jihadistas por seu laicismo, bem francês, pela proibição do uso do véu pelas mulheres islâmicas nas escolas públicas, o que fez da França um demônio. Em segundo lugar, a França atacou militarmente a África, o Iraque e agora a Síria. Isso produz retaliações. A cultura laica francesa é abominada pelos fanáticos islamitas. Era sabido pelos especialistas que haveria novos ataques. A aceleração foi brutal. E não deve parar por aí. Mais complexo e sociológico é saber a razão da radicalização de jovens franceses. Como pode ser que franceses educados em nossas escolas laicas, que viam e ouviam nossas rádios e televisão, caiam na armadilha do fanatismo, essa loucura assassina, chegando a ir receber treinamento na Síria e a voltar para se explodir com uma bomba na Europa? Essa situação mostra que há algo errado em nosso modo de socialização. Vivemos em sociedades cool, de comunicação, de compreensão e de hedonismo. Como se dá que jovens decidam mudar de vida, adotando um estilo austero, assumindo a violência como método de ação e negando todos os nossos valores?

            Eles querem ser mártires. A noção de martírio tinha perdido o sentido nos últimos 50 anos. Cultivamos o prazer, a festa, a alegria e a leveza. Não a morte. Ninguém mais queria morrer por uma causa. Isso pode ter ainda acontecido na II Guerra Mundial. Morria-se por uma nação. O que está acontecendo? Será o retorno de valores tradicionais de uma cultura totalmente diferente da nossa? Não. O comportamento desses jovens é paradoxalmente um efeito da sociedade da leveza, que, pelo hiperconsumismo, nos últimos 50 anos, devastou todas as formas tradicionais de enquadramento social. Ninguém mais controla o comportamento dos indivíduos. Entramos numa época de desorientação sistemática. Para a maioria das pessoas o mal-estar dessa sociedade traduz-se em depressão, estresse, ansiedade e outras doenças psicossomáticas. Há, porém, pessoas que reagem de outra forma a esse vazio. O jihadismo prospera graças a esse vazio terrível. Com seus gurus, toma conta de desesperados, encontrados, muitas vezes, nas prisões ou na Internet, oferecendo-lhes conforto e uma missão. São pessoas que se radicalizam em algumas semanas ou meses.

            No comportamento desses jovens é tudo menos esclarecido. A ignorância é que os condena. Não possuem conhecimentos religiosos sólidos nem políticos. Não são herdeiros de uma tradição, mas apenas extraviados. Desse modo, resultam da hipermodernidade, que elimina os controles antigos e nada põe no lugar deles. O que procuram? Uma nova estrutura, uma paixão, um sentido, uma direção, uma intensidade, uma valorização. Alguns buscam as sensações fortes nas drogas. Outros, no fanatismo. Querem uma maneira de existir. Mesmo matando e morrendo. Encontram na sedução da morte uma atração que lhes garante uma sensação de potência e de significado. O Estado Islâmico será destruído, assim como a Al Qaeda foi sufocada, mas esse tipo de jovem vai continuar procurando o extremo em outro lugar.

            O Ocidente conhece outras formas de radicalização e de busca desesperada de sentido ou de alívio para o ressentimento como as seitas ou os serial-killers. A sociedade hiperindividualista e hiperconsumista desorganiza os enquadramentos sociais e deixa os indivíduos soltos. Há quem não aguente. Os jovens de antigamente tinham como modelo os pais e avós. Não era preciso se questionar sobre  o que ou como ser. Conversões sem sólida formação religiosa levam ao radicalismo quando há desequilíbrio psicológico e desamparo. Há um vazio que precisa ser preenchido. Tem a ver com o reconhecimento tratado por Hegel. As pessoas não suportam viver sem reconhecimento. Alguns o buscam na barbárie e no martírio.
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·      Filósofo. Doutor Honoris Causa da PUCRS, autor de “Metamorfoses da Cultura Liberal” (Sulina).
·      Fonte: Correio do Povo impresso. Caderno de Sábado, 21 de novembro de 2015, pág.2. 
    Foto da Internet: Assembleia Nacional Francesa colorida em azul, branco e vermelho numa forma de resistência ao eco cego das conversões radicais de franceses jihadistas.

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