segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A hipermodernidade segundo Lipovetsky

Juremir Machado da Silva*
gilles
Filósofo, autor de dezenas de livros de repercussão internacional, entre os quais O Império do efêmero, A Era do vazio, A Sociedade pós-moralista, O Luxo eterno, Metamorfoses da cultura liberal, Tempos hipermodernos e Da leveza, Gilles Lipovetsky estará em Porto Alegre no dia 19 de novembro deste ano para receber o título de Doutor Honoris Causa da PUCRS, por proposição do Programa de Pós-Graduação da Famecos, e para palestrar no XIII Seminário Internacional da Comunicação. Intelectual liberal, especialista em consumo, ética e comportamento, Lipovestky tem desenvolvido o conceito de hipermodernidade para caracterizar o mundo atual.

 Nesta entrevista para o Caderno de Sábado, ele define o hipermoderno em dez termos fundamentais para a existência cotidiana dos indivíduos.

Felicidade – “A noção de felicidade não mudou muito desde a antiguidade, desde os gregos. A felicidade é, antes de tudo, estar em paz consigo mesmo, estar de acordo consigo mesmo. Amar a si mesmo. Gostar da vida que se leva. O que mudou é a maneira de alcançar a felicidade. Na hipermodernidade, há uma oferta acelerada de instantes fugitivos de felicidade – comprar um carro, fazer uma viagem, trocar a cor do papel de parede, enfim, ínfimas manifestações típicas do hiperconsumismo –, mas a verdadeira felicidade, como definida antes, é mais rara, mais difícil, menos disponível. A felicidade material avança, mas não a espiritual no seu sentido mais antigo e clássico. Não existe uma hiperfelicidade nos termos pensados pelos gregos”.

Utopia – “As grandes utopias caducaram: socialismo, comunismo, progresso garantido por leis da história… Vivemos sem grandes utopias coletivas. A última utopia é a dos ecologistas, embora seja um tipo particular de utopia baseada no medo, no terror. Diz-se o tempo todo que se as coisas continuarem como estão o planeta vai explodir. As utopias clássicas falavam de esperança. Temos, porém, muitas pequenas utopias à la carte, pessoais, particulares, singulares, sonhos de cada um: combater a miséria, preservar o patrimônio histórico, proteger a infância, melhorar o mundo, diminuir o sofrimento, ajudar os desfavorecidos, enfim. As utopias coletivas e sistemáticas é que desapareceram. Nada disso elimina o sonho de fazer coisas, de empreender, de reformar, de criar. As grandes utopias ideológicas, que pretendiam mudar o mundo como totalidade, cederam lugar às pequenas utopias realistas num mundo flexível e mutante”.

Moda – “No sentido tradicional, a moda desapareceu. A moda era vista como uma série de rituais, de cerimônias e de grandes desfiles que impunham a tendência da estação. Isso, de certo modo, acabou. Surgem 50 novas tendência por dia. Não há hegemonia. A proliferação de tendências anula a possibilidade do domínio de uma tendência única. A multiplicação ao infinito das tendências é uma boa notícia, pois significa uma democratização do gosto. Cada um faz o que quer. A moda, na modernidade, era despótica, tirânica, impositiva. Hoje, não. O pior que podia acontecer a alguém era estar fora da moda. Funcionava como uma exclusão, quase um estigma. Já não é mais assim. Há muito mais liberdade, experimentação, diversidade e autonomia. A moda tornou-se um sistema aberto e menos um modelo de hierarquia social. Talvez apenas os adolescentes conservem uma noção impositiva de moda, de tendência, de sinais precisos de integração ao grupo. A moda ficou menos distintiva e mais adulta. É uma escolha pessoal. De certo modo, a moda foi colocada no seu devido lugar. É só uma moda”.

Beleza – “Com a beleza está acontecendo o contrário do que ocorre com a moda. Se a moda está aberta à diversidade de tendências, não se dá o mesmo com a beleza. Há um padrão despótico de beleza. A beleza do corpo, especialmente o feminino, é regulamentada por uma norma rígida e única: a magreza. Não existe alternativa legítima a esse modelo. Impossível realmente imaginar uma pin-up, uma estrela, uma top-model, enfim, que não corresponda ao imperativo da magreza absoluta. É o modelo da hipermagreza. A moda tornou-se mais tolerante. A beleza, ao contrário, tornou-se mais despótica, autoritária e inflexível. A proliferação de imagens – cinema, televisão, fotos, publicidade – reforça o modelo dominante e castiga qualquer divergência. A consequência disso é a hiperdimensão tomada pelas dietas, pelas academias de ginástica e pelas cirurgias plásticas. Ser magro é um imperativo categórico. Toda infração à norma é malvista e criticada”.

Leveza – “A leveza sempre desempenhou um papel na história da humanidade, mas era algo secundário, fixado, muitas vezes, do ponto de visto das narrativas mitológicas. Ícaro sonhava voar. O povo sempre se tornou leve pela alegria. Hoje, a leveza é um princípio de realidade, um instrumento de ordenação social. No esporte, a patinação sinaliza um desejo extremo de leveza e movimento. As novas tecnologias, produtos das nanotecnologias, exprimem de modo radical o imperativo da leveza em nossas sociedades. Um celular de 100 gramas carregado no bolso põe o homem em contato com o mundo. O consumismo está baseado em tecnologias da leveza. Tudo diminui de tamanho. Vivemos num universo que funciona a partir da leveza e da velocidade. Mais leve, mais rápido, eis o princípio fundamental da nossa época. Paradoxalmente quando mais temos leveza objetiva, material, mais a vida parece pesada. As agendas estão saturadas, a vida é complicada, a depressão faz estragos, os problemas se multiplicam, tudo estressa. Trocamos o sonho da revolução e da liberação total pelo sonho da leveza. Não é improvável que a nova grande utopia coletiva da sociedade hipermoderna seja a da leveza total, radical e perfeita”.

Saber – “Uma ilusão de muitos na atualidade foi imaginar que se poderia obter conhecimento exclusivamente por meios tecnológicos. Não é assim. O uso da tecnologia não dispensa o trabalho fundamental da escola. A educação, mais do que nunca, é essencial. Não se chegará, pela tecnologia, a eliminar a importância da pedagogia, do ensino, do estudo e dos professores. A formação de espíritos livres e críticos requer mestres, análise, discussão, questionamento e interpretação. A sociedade hipermoderna baseia-se no cognitivo. É uma economia do conhecimento. O capital inteligência é que agrega valor. O conhecimento é o patrimônio decisivo da nossa época. Capital cognitivo. Investir no saber é a regra do presente e do futuro. Investir no saber não é despesa, mas uma exigência da inovação. Tudo passa pela inteligência dos homens. A informação abre caminhos”.

Política – “A desconfiança que predomina vai persistir. Há uma espécie de despolitização provocada pelos limites ideológicos dos partidos políticos, cada vez mais parecidos, pelos escândalos de corrupção e pelo fato de que as pessoas estão mais informadas. Os políticos estão afundados numa crise de perda de credibilidade. A política, contudo, é fundamental nas democracias. Será preciso reinventá-la. Em contrário, o mercado fará as regras e dominará tudo. Não podemos diabolizar o mercado, mas temos de impor-lhe limites. A lei do mercado na política é um desastre. O mercado cria riquezas. A política fixa regras. Sem isso, a injustiça torna-se intolerável. Num mundo liberal, precisamos de forças que se equilibrem e contenham”.

Futuro – “A modernidade pensava ter decifrado o futuro. A filosofia da história dizia que a humanidade avançava com um sentido, em certa direção determinada. O futuro, de certa forma, estaria inscrito nas leis da história e nos genes do presente. Não é assim. O futuro está em aberto, exposto às incertezas e aos saltos da história. Isso cria ansiedade e temor, mas é uma sorte, pois a margem de manobra humana aumenta. Se o futuro estivesse predeterminado, nossa margem de liberdade seria ainda menor. O futuro depende de nós nas condições concretas em que vivemos. Podemos fazer projeções. O futuro produz esperanças, em função do desenvolvimento da ciência, e temor, por causa das ameaça da intolerância, dos conflitos e do ódio. Como viveremos juntos? Eis a questão. A educação contará muito para isso”.

Mídia – “A mídia não tem o poder que denunciam muitos dos seus críticos, mas tem muita influência. Não pode ser a culpada de tudo que funciona mal. Não deve ser o bode expiatório, a suspeita de sempre. Ela é uma bolha gigantesca que tudo engloba. Satura a existência com informações em tempo real. Funciona na base da hiperinformação. O excesso tornou-se a sua lei. Ao mesmo tempo, entretanto, confunde e esclarece. No essencial, por não ser controlada por partidos, ajuda a disseminar esclarecimento. Na hipermodernidade, cumpre papel acelerado de informar e entreter”.

Poesia – “Sempre me questiono sobre isso. A poesia foi um gênero fundamental. Entre os antigos, esteve no ápice das artes. Depois de uma carreira milenar de sucesso, perdeu espaço. Desde os anos 1970 que não existem mais grandes escolas de poesia. Existem pequenos círculos de praticantes e de amantes da poesia, mas a aura se perdeu. A grandeza da poesia dos românticos, dos simbolistas ou dos surrealistas se apagou. A poesia morreu? Claro que não. Encontrou novas formas de expressão: na música, na fotografia, no cinema e até na arquitetura, com suas construções abertas e anárquicas. A fria arquitetura funcionalista cedeu lugar à poesia da busca do devaneio e, do ponto de vista interior, do conforto e da singularidade. Desaparecida como gênero dominante, ela reaparece por toda parte como manifestação cotidiana. No facebook, as pessoas não param de se enviar fotos de um pôr do sol ou de um sorriso de criança. É poesia”.

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Atentados – Estupefação.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/

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