sábado, 15 de agosto de 2015

Ricardo Abramovay: “O discurso catastrofista do clima esgotou-se?”

O economista Ricardo Abramovay (Foto: André Conti/Estadão Conteúdo)

O economista diz que é preciso mostrar como será possível manter a qualidade de vida e os confortos materiais numa sociedade menos poluente

ALEXANDRE MANSUR
O economista Ricardo Abramovay conversou comigo por telefone. De vez em quando, educadamente pedia licença para atender o neto, Joaquim, de 4 anos. Faz sentido. Se a conversa é sobre o desafio de enfrentar as mudanças climáticas, o jovem Joaquim é parte interessada. Afinal, ele e seus contemporâneos herdarão o planeta. Abramovay, pesquisador da Faculdade de Economia e do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, diz que não conquistaremos apoio popular pregando vida simples e limites ao crescimento para resolver a crise ambiental. E que devemos apostar na economia de mercado e nas soluções tecnológicas para preservar nosso conforto com menos emissões poluidoras.

ÉPOCA – As mudanças climáticas são um consenso científico. Mas não social. Por quê?
Ricardo Abramovay –
Várias razões. Uma delas é melhorar a forma como os próprios cientistas se comunicam. Essa forma é geralmente opaca e cifrada, com códigos que poucos entendem. As revistas científicas usam uma linguagem própria, distante da popular. Isso gera um sentimento de desconfiança em relação ao conhecimento científico. Não é um obstáculo incontornável. Está na hora de os cientistas se preocuparem como sua mensagem é recebida. Além disso, quando se fala das consequências das mudanças climáticas, costuma-se enfatizar o aspecto catastrófico. E essas previsões existem se continuarmos no mesmo rumo. Mas esse discurso esgotou. Precisamos enfatizar a possibilidade de que a vida pode ser muito melhor numa sociedade descarbonizada (com menos emissões de gases geradores de efeito estufa). Temos uma parcela da população global que começa a ter acesso à renda e a confortos materiais. Se dissermos que eles não poderão consumir esses bens e serviços em nome do clima, estaremos derrotados de antemão. Precisamos mostrar que reorganizar a sociedade, as cidades e as formas de produção para emitir menos gases pode oferecer uma qualidade de vida tão boa ou melhor do que temos hoje.

ÉPOCA – A comunidade acadêmica conseguiu transmitir à população outros consensos, como a relação entre tabaco e câncer ou a associação entre consumo de gordura e problemas circulatórios. Por que com o clima é mais difícil?
Abramovay –
Há um texto de um antropólogo japonês que analisa a comunicação no caso da Baía de Minamata, no Japão (onde milhares de pessoas se contaminaram com rejeitos químicos industriais entre os anos 1930 e 1950). Nos primeiros anos, havia uma confusão. Os cientistas contratados pelas empresas diziam uma coisa. Outros diziam outra. As mensagens eram compartimentadas. Era difícil chegar a uma conclusão. Só houve uma mobilização real contra as indústrias poluidoras depois que surgiu uma junção de movimentos sociais e universidades para melhorar o discurso. No caso do cigarro, houve forte campanha de questionamento da ciência movida por grupos negacionistas. Alguns deles são os mesmos que agora agem para questionar a ciência do clima. Além disso, hoje temos o IPCC (painel da ONU para a ciência do clima), que emite relatórios obscuros. Os textos são negociados diplomaticamente. Acabam saindo numa linguagem pouco clara.

ÉPOCA – Como os cientistas deveriam comunicar?
Abramovay –
Uma das dificuldades é que enfrentar as mudanças climáticas envolve mudar estilos de vida e formas de produção econômica em larga escala. Hoje, temos duas correntes de pensamento diante disso. A primeira é a dos decrescimentistas. Eles defendem o fim ou a redução do crescimento econômico. Afirmam que é preciso impor limites à produção, à exploração de recursos naturais. E que precisaremos mudar nosso estilo de vida para lidar com menos, aceitando abrir mão de algumas coisas, pregando um estilo mais frugal, um retorno à simplicidade. A outra corrente de pensamento aposta na inovação humana. Segundo eles, dá para crescer com menos emissões se acelerarmos as inovações na agricultura, na indústria, na energia, nos transportes e no uso de recursos digitais. A primeira corrente, no fundo, é pessimista. Não vamos mudar a natureza das pessoas. Precisamos apostar na segunda corrente. Faremos uma transição das grandes usinas elétricas por redes de pequenas geradoras solares, eólicas e outras descentralizadas. Trocaremos o transporte baseado no automóvel individual para sistemas que usam transporte coletivo com novas alternativas, como carros compartilhados elétricos sem motorista.

ÉPOCA – Limitar a queima de combustíveis fósseis afeta as grandes empresas de energia, cujo valor de mercado é associado às reservas de óleo e gás. Como enfrentar os interesses dos que sairão perdendo com essa transição para uma economia boa para o clima?
Abramovay –
Já parece estar em curso uma reavaliação do valor delas. O próprio mercado financeiro começa a definir os ativos como abandonados. Alguns analistas dizem para fundos de pensão serem cautelosos ao investir nas companhias com reservas de combustível fóssil. Há grande risco político de medidas para a taxação do carbono. E, com o avanço exponencial das energias renováveis, temos a possibilidade de ficarmos menos dependentes dos combustíveis fósseis. Claro, sem otimismo excessivo. Ainda precisaremos desses combustíveis por muito tempo. Mas é impressionante o avanço da China, por exemplo. Ela tem as maiores empresas de energia solar e eólica. A forma como encara seu crescimento não nos permite mais dizer que é a oficina mecânica do mundo. Sua economia é cada vez mais guiada por inovação.

"Trocaremos o transporte individual por transporte coletivo e carros elétricos sem motorista"
 
ÉPOCA – Ter um regime autoritário ajuda a China a redirecionar a economia com uma visão ambiental de longo prazo?
Abramovay –
Alguns pensadores dizem isso. Mas a experiência alemã atual nos oferece um contraponto. Ela gerou uma indústria sofisticada voltada para a sustentabilidade. Só o regime democrático consegue nos fazer avançar assim. É a melhor condição para uma discussão esclarecida sobre os rumos do desenvolvimento. A internet hoje é uma cacofonia generalizada, como diz Umberto Eco. Precisamos aproveitar melhor seu potencial. Podemos usar o espaço digital para avançarmos, usando ferramentas que permitam consultar os cidadãos e expor argumentos de forma organizada.

ÉPOCA – Alguns militantes dizem que não há saída para as mudanças climáticas dentro do capitalismo, que busca estimular o consumo de bens e recursos naturais.
Abramovay –
É curioso como parte das propostas radicais para enfrentar as mudanças climáticas, como as de Naomi Klein (ativista canadense), envolve voltarmos para uma economia local, abrir mão de coisas e atacar o próprio capitalismo. Eles apostam que o clima será a oportunidade para os movimentos sociais acabarem com o capitalismo. Mas o que está em jogo é outra coisa. Precisamos descobrir como a oferta de bens e serviços pode atender às necessidades sociais usando menos recursos naturais numa economia de mercado. É um desafio à inventividade.

ÉPOCA – As próximas gerações vão nos condenar por não termos agido a tempo?
Abramovay –
Não sei se funciona bem assim. Lembro coisas absurdas que meus pais faziam. Desde bater em criança ou agir com preconceitos em relação ao papel do homem e da mulher. Hoje sabemos que eles não tinham informação suficiente para agir ou pensar de forma diferente. Mesmo que tivessem, existe uma distância entre ter a informação e conseguir organizar a mudança social. Alguns acreditam que, se os gases de efeito estufa tivessem cheiro e cor, as pessoas reagiriam mais.

ÉPOCA – Algumas dessas soluções tecnológicas para o clima sofrem resistência dos próprios ecologistas, como o uso da biotecnologia na agricultura. Como superar isso?
Abramovay –
Só conseguiremos reduzir as emissões de carbono que desequilibram o clima com muita tecnologia. A saída é pela ciência e não por uma volta às origens da humanidade. Precisaremos de biotecnologia para aumentar a eficiência da agricultura urbana e a oferta de alimentos. Teremos de usar a robótica e até a nanorrobótica (que envolve máquinas microscópicas). Usaremos soluções químicas e materiais sintéticos para uma economia regenerativa, que reaproveite mais os rejeitos. Precisamos estudar a fundo o mundo natural e encontrar formas eficientes para usar os recursos do planeta. Uma floresta é totalmente eficiente em reaproveitar energia e matéria-prima. Não tem lixão ali. É uma lição para nosso processo industrial que termina com várias toneladas de rejeitos. A massa total das formigas da Terra é maior do que a dos 7 bilhões de humanos. Elas consomem calorias equivalentes a 30 bilhões de pessoas. E não deixam lixo para trás. São campeãs de reciclagem.
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Fonte: Revista Época online, 10/08/2015

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