Em prefácio ao livro "Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-1945)", publicado há 35 anos pelo sociólogo carioca e professor na Universidade de São Paulo (USP) Sergio Miceli, Antonio Candido diz que Carlos Drummond de Andrade não se vendeu, apenas serviu ao regime ao ser chefe de gabinete de Gustavo Capanema no Ministério da Educação, entre 1934 e 1945. Outros, acrescenta, venderam-se.

"Ele se valeu de critérios de juízo de sua geração", rebate Miceli. "Eu quis frisar o padrão de cooptação dos intelectuais e artistas pelo Estado Novo, um modo de inserção que preservou, aos olhos dos que 'serviam' e dos que se 'venderam', a fantasia de que estavam logrando dissociar a prestação de serviços ao Estado da feitura da obra pessoal."

Miceli, de 70 anos, que é autor de livros fundamentais sobre mitos da modernidade latino-americana, como Mário de Andrade e Jorge Luis Borges, afirma que hoje a regra é outra: "Os intelectuais públicos são originários de um campo intelectual profissionalizado". A seguir, trechos da entrevista ao Valor.

Valor: No Brasil, rachado em dois após os movimentos de junho de 2013 e as eleições de 2014, percebe-se declínio da participação dos chamados intelectuais públicos?

Sergio Miceli: A tradição dos intelectuais públicos se alicerça em capital de notoriedade simbólica, mobilizado como lastro de um posicionamento político, sintoma de um campo intelectual mais autônomo em relação à mídia e às demais forças (partidos, igreja). Hoje no país há a concorrência entre, de um lado, a mídia impressa e eletrônica e, de outro, a universidade pública com protagonismo crescente das ciências humanas em detrimento da centralidade antes desfrutada pela literatura. Acirrou-se o embate entre dois sistemas de produção, circulação e consumo de bens culturais, ambos com pretensões de exercer a hegemonia em matéria de autoridade simbólica.

Valor: Nesta segunda década do século XXI repete-se a polarização político-cultural-artística dos anos da ditadura, quando só havia dois lados na arena pública?

Miceli: A pergunta sugere a polarização norteada por clivagens ideológicas e doutrinárias, mas o que está em jogo é o confronto entre modelos concorrentes em matéria de arbitragem cultural. A mídia brasileira costuma lidar com o mundo econômico, social, político e cultural como doxa, isto é, um sistema de juízos taxativos sobre o que é bom ou mau, corrupto ou virtuoso, belo ou feio, inovador ou careta, justo ou injusto. No limite, opiniões de senso comum, naturalizadas. Ora, as divisórias do mundo social têm a ver com interesses e não só com ideias, têm a ver com níveis de renda e propriedade, padrões distintos de educação, universos de experiência profissional, sistemas de valores e parâmetros de gosto, derivados das espécies e montantes de capital: econômico, social e cultural.

Valor: A questão se reduziria, então, ao culto de pretensos valores éticos para recalcar a realidade?

Miceli: O racha aludido deriva de diagnóstico sumário segundo o qual quase tudo que sucede no país tem a ver com o Estado, com o governo, com os políticos do PT, mas não só, com a esquerda, com os intelectuais, instâncias e protagonistas que estariam ameaçando as perspectivas de investimento privado, as expectativas dos empresários, o livre jogo de forças no mercado, e por aí vai. Em vez de enxergar o mundo social como espaço de conflitos e de lutas de interesses, envolvendo negociações entre trabalhadores e capitalistas, entre assalariados e rentistas, entre grupos com projetos e horizontes de futuro distintos, quer se fazer crer na virtualidade de uma sociedade imantada pelo condão da ética e da virtude. Os movimentos sociais de 2013 foram incensados enquanto se prestavam à exaltação da agenda de reclamos e queixas da mídia.

Valor: Mas na selva violenta das redes sociais os debates continuam em alta temperatura...

Miceli: A selva violenta da web, para usar sua expressão, é em boa medida o decalque caricato da doxa disseminada pela mídia, ou seja, a profusão babélica de opiniões movidas pela ignorância, ressentimento, inveja, no resguardo do anonimato, vozes que se alimentam de materiais da mídia, num processo de diluição e de simplificação característico do "trickle-down" inerente ao procedimento padrão da indústria cultural.

Valor: Umberto Eco reclamou da multidão de imbecis que opina sobre tudo na rede.

Miceli: Os milhões de pessoas - não de imbecis - que opinam sobre tudo espelham o nível educacional, o baixo capital cultural, o encolhimento dos espaços públicos e a indigência da informação jornalística disponível. O espaço comezinho concedido aos milhões não lhes permite atuar de outro modo. Bem mais grave é o fato de a cobertura jornalística depender cada vez mais de profissionais semicultos, que não dominam os assuntos, com noções perfunctórias de contenciosos de grande complexidade. A ausência dos intelectuais se explica por razões fáceis de enunciar. Os intelectuais são consultados por telefone a se pronunciar a fim de dar "recheio" a matérias prontas nas quais figuram apenas a título de enfeite-caução. A maioria de resenhas de livros ou de espetáculos é hoje encomendada a jornalistas que, com frequência, elogiam trabalhos de colegas e insultam intelectuais, destratados como especializados em excesso e propensos ao linguajar obscuro. Uma turma numerosa de intelectuais empregados na universidade ou dela procedentes tem colaborado, dispondo-se a macaquear o estilo aceitável e a redigir textos de vulgarização.
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Reportagem por João Marcos Coelho
Fonte: Valor Econômico online, 14/08/2015
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