quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Ler ou reler, eis a questão

Ernani Ssó*
 Graham Greene

Há livros demais e a vida é breve — a vida tem cinema e arte culinária, a vida tem mulheres, música e bares com mesas na calçada, sem esquecermos de sinuca e futebol, de banho de mar e daquela cochiladinha depois do almoço. Conheço gente que se agonia só de pensar que é impossível ler tudo. Mas faça as contas. Noventa e oito por cento dos livros não precisam ser lidos. São lixo, sem remição. O diabo é que os dois por cento restantes ainda são demais. O diabo é que na escola raramente temos de ler algum desses dois por cento. O diabo é que todo ano um ou dois livros são acrescentados a essa lista. O diabo é que mesmo depois de morrermos a lista continuará crescendo.

Olhe, bem no fundo, acho isso tudo uma frescura, ou doença pura e simples. Vamos fazer contas de novo. Quantos livros você lê por ano? Cem, duzentos? Ou vinte ou trinta? Ou você é do tipo Rubem Fonseca, que lê um livro por dia? Eu, que sou praticamente uma tartaruga, fico maravilhado com isso. Mas desses livros, quantos mudaram a sua vida, ou ao menos acrescentaram alguma coisa que lhe fazia falta?

Ou vamos pôr a questão de outra forma. Você já tem uma certa idade e uma biblioteca de uns dois mil, dois mil e quinhentos livros. Se fosse para a famosa ilha deserta, fora manuais de escotismo e a Charlize Theron, que livros você levaria? Eu provavelmente levaria apenas os livros que reli mais de cinco vezes, digamos. Acho cinco vezes uma medida razoável — ninguém relê cinco vezes um livro se ele não o toca fundo ou o diverte muito, forma também de tocar fundo, não? Quantos livros você releu mais de cinco vezes? Eu não sei quantos livros reli mais de cinco vezes, mas duvido que cheguem a quinhentos, talvez não cheguem nem a trezentos. Sei que os que li pulando são muitas e muitas vezes mais.

Mas digamos quinhentos e digamos três releituras no mínimo. Se você releu pra valer esses quinhentos livros, vai descobrir uma coisa mais ou menos evidente: não há nada ou quase nada de novo nos demais livros. Os livros praticamente se repetem, ou nossa cabeça é incapaz de tirar mais deles, ou pelo menos a minha. Um grande livro, de alguma forma, contém muitos outros livros. Quinhentos grandes livros talvez contenham todos os livros. Infelizmente a imaginação, a sensibilidade e a inteligência humanas não são ilimitadas. De um ponto pra frente, cada livro lido não é menos um a ser lido, mas apenas mais um livro lido. De um ponto pra frente, a gente lê meio como quem assenta o fio de uma navalha. Essa papagaiada de jornais e revistas de que toda semana tem uma novidade fundamental na praça é isso mesmo, papagaiada — pura publicidade ou ignorância.

Cabe a você descobrir os seus quinhentos grandes livros. Agora, se você nunca releu um livro, ou no máximo releu uns dois ou três, ou nunca relê mais de uma ou duas vezes, pode parar por aqui. Não temos nada a nos dizer. Nem falamos a mesma língua.

Um dos poucos autores que me pegou depois de adulto foi Graham Greene. Por um desses lapsos inexplicáveis, eu só li Graham Greene aos vinte e oito anos. Tinha topado com inúmeras referências a ele, mas sempre fui deixando para depois, até que encontrei O americano tranquilo numa banca, numa edição de 1981 da Abril, feia que dá pena. Ainda lembro de abrir o volume, de ler os primeiros parágrafos, de começar a gostar devagarinho, até que cheguei nesta frase: “Fechei os olhos e ela se tornou novamente o que costumava ser: o chiado do vapor, o tilintar de xícara, uma certa hora da noite e a promessa de repouso”. Isso não quer dizer muito para a maioria das pessoas, sei, mas foi aí que o Greene se revelou para mim. Há algo na serenidade resignada, ou no tranquilo desespero dessa frase, na atmosfera de solidão, que me levou a pensar na hora: está falando comigo. Mais: por essa frase eu entrevi todo o homem Graham Greene. Então, não li O americano tranquilo, eu o devorei e cada nova página apenas me confirmou essa impressão inicial — os demais livros também, embora O americano tranquilo continue meu preferido com O poder e a glória e Cônsul honorário. Em seguida, passei a recomendar o livro para todo mundo e quando alguém não gostava muito eu, depois de um certo aturdimento, me sentia quase que ofendido.

Depois que a gente releu muito, poucos autores satisfazem inteiramente. Às vezes leio vinte páginas de um livro, vinte de outro e desisto — já encontrei tudo aquilo, escrito de forma muito melhor. Aí releio algum trecho de um dos meus autores preferidos e então sou vítima de uma esperança meio boba, mas invencível: será que não me escapou algum conto do Cortázar, do Borges, do Kafka, do Conrad? Será que não vão descobrir um romance inédito do Stendhal? Como será ler pela primeira vez algo deles depois dos quarenta? Por que não fui previdente e guardei um livro para a velhice? Tive sorte com Graham Greene: O décimo homem. Tive sorte com Rubem Fonseca: “Placebo”. Tive sorte com Cortázar: Ciao, Verona. É estranho, eu os li sem aquele fogo da descoberta, li quase como se lembrasse, como se os textos já fizessem parte de mim ou fossem meus, como se eu me reencontrasse depois de muito tempo e um tanto surpreso me desse conta de que continuo o mesmo, não mudei nada, veja só.

Na adolescência, após o último conto de Poe, me bateu o desespero. Eu já não aguentava relê-lo e tinha certeza, certeza absoluta, como se diz, de que nunca ia encontrar outro autor. Estava enganado, claro, logo logo iria encontrar muitos outros e muito melhores, mas eu tinha dezesseis anos. Agora é um pouco mais complicado, penso quase amargo. Mas não é que há poucos anos descobri um lapso maior que o do Greene? Ele se chama Ítalo Svevo. Até ando pensando em aprender italiano pra ler o homem direito.

É isso, não leio mais um livro atrás do outro como antes. Pulo de um para outro na busca dos livros que eu possa reler. Como não confio na crítica, dependo da indicação dos amigos e de minhas próprias investigações.

Houve épocas de saturação. Aí eu simplesmente lia um monte de romances policiais de segunda classe. A vantagem dos romances policiais de segunda classe é que não pretendem ser nada e então eu podia relaxar, sem exigir nada fora uma historinha com começo, meio e fim. Se o camarada pretende ser qualquer coisa e não cumpre, ou cumpre pela metade, começo a implicar. Podia relaxar, eu disse. Hoje não dá mais. Prefiro ver desenho animado com meu filho.

Às vezes leio entrevistas ou reportagens com escritores que têm bibliotecas de dez, quinze mil livros. É ou não é pra gente se sentir humilhado? Mas não consigo acreditar que existam quinze mil livros importantes para uma pessoa. Quinze mil livros não são uma biblioteca, são uma superstição.

Sei que jamais chegarei a uma biblioteca de cinco mil livros. Pra começo de conversa, não tenho espaço. Mesmo que tivesse ia pensar duas vezes. Não faço o tipo colecionador, embora possua três ou quatro edições de alguns livros. Gosto de edições bonitas como gosto de pratos bonitos — queira ou não, o sabor muda. Se não acredita, compare o mesmo livro numa edição fedorenta caindo aos pedaços e numa edição novinha em folha. Até no tato livro velho não ajuda.

Sabe o que eu faço? Os livros que eu sei que não vou reler, ou que penso que nem valem uma leitura, dou, troco ou simplesmente boto fora. Desse modo minha biblioteca está mais ou menos do mesmo tamanho há anos. Mas ainda assim tem um monte de porcaria.
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* Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.
Imagem Graham Greene
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/ler-ou-reler-eis-a-questao/26/08/2015

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