terça-feira, 7 de julho de 2015

Que mudanças o Papa pode introduzir na Igreja?

Leonardo Boff* 
 
Há poucas semanas dei uma entrevista por e-maisl à jornalista Aline Rodrigues Imécio  da  Revista Epoca. Por razões alheias a ela, a revista não foi publicada. Como são muitos que me fazem perguntas semelhantes aquelas que ela me fez, publico-a aqui. Talvez possa interessar a alguns já que o Papa está nestas semanas intencionsalmente peregrinando pelos países mais pobres da América Latina: o Equador, a Bolívia e o Paraguai.

1-) A partir da posse do Papa Francisco assistimos a algumas mudanças no comportamento tradicional de um Papa. Francisco escolheu dormir em um aposento simples na Casa de Santa Marta, utiliza um crucifixo de latão, recusou o carro oficial do Vaticano dentre outros privilégios. O senhor considera que o Papa Francisco pode ser capaz de mudar a imagem da Igreja católica ou pelo menos a imagem que temos do Papa tradicional?
R/ Cabe lembrar que o Papa vem de fora, não vem da velha cristandade européia, agônica e sem futuro pela frente. O modelo de Igreja européia é ter um Papa como uma espécie de faraó ou imperador romano,  com todos os hábitos, paramentos e títulos que herdou dos imperadores romanos, desde  a “mozzeta” (capinha sobre os ombros), símbolo do absoluto poder imperial até a vida nos palácios e os hábitos que os palácios impõem. O bispo de Roma, assim que ele gosta de se chamar que é o título mais antigo, despaganziou a figura do Papado. Não vive no palácio mas numa casa de hóspedes, Santa Marta. Renunciou a todos os símbolos do poder. A famosa “mozzeta” ele a  deu de presente ao secretário para que a levasse para sua casa. Isso decepcionou os europeus em geral e irritou os conservadores, como se o Papa tivesse perdido a dignidade do cargo. O que orienta o Papa é a Tradição de Jesus que é anterior aos evangelhos (estes começaram  ser  escritos 40 anos após execução de Cristo na cruz, chegando até os anos 90 com o evangelho de São João). A Tradição de Jesus que se encontra nas entrelinhas dos quatro evangelhos é o Jesus histórico que suscitou uma grande esperança no povo, pregando o Reino de Deus (crime de lesa majestade porque o único Reino é o de César em Roma), contando estórias cheias de lições, priviligiando os pobres e os considerados pecadores públicos, libertando as pessoas dos formalismos para torná-las livres e disponíveis para o amor incondicional e a inclusão de todos com uma abertura total a Deus, chamado de “Paizinho”(Abba). Pois esses são os parâmetros que regem a conduta do Papa. Ele certamente inaugurará uma nova dinastia de Papas que virão do Terceiro Mundo, onde vivem quase 80% dos cristãos. O Cristianismo hoje é uma religião do Terceiro Mundo, embora sua origem foi do Primeiro Mundo. Essa Igreja do Terceiro Mundo era considerada periférica, mas é a única que demonstra vitalidade, cresce e apresenta-se como uma força moral e política na definição dos destinos da humanidade.

2-) Outra característica bastante presente em Francisco, e que se mostrou ausente em Bento XVI, é a questão do carisma com o público. Ratzinger, por ter um comportamento mais tradicionalista- embora tenha surpreendido com sua renúncia- e fechado não se mostrou um Papa muito próximo aos fiéis, enquanto Francisco faz esforços para que a todo momento esteja perto dos católicos e tentando compreender o que eles esperam da doutrina católica, prova disso foi a proximidade com os brasileiros na última Jornada Mundial, no Rio de Janeiro.  Diante disso, minha pergunta é: o senhor acredita que o fato deste Papa ser mais midiático, estar mais perto do povo, pode fazer com que o catolicismo ganhe mais adeptos ao longo do tempo?
R/ O Papa Francisco deixou claro que não quer saber de proselitismo. Ele quer conquistar as pessoas pela sedução da beleza, da compaixão e do amor sem distinções que se derivam da mensagem de Jesus. Seu primeiro escrito leva esse título:”A alegria do Evangelho”. Em razão disso faz duras críticas à visão doutrinária e dogmática da Igreja que apenas afasta os fiéis e esconde o que há de melhor na prática de Jeus e de sua mensagem: uma mensagem de alegria para todo o povo, como diz o evangelista Lucas.  Evangelho em grego significa “boa notícia”. Para muitos o evangelho e a Igreja se tornaram um pesadelo, tudo menos uma alegria. Ele quer recuperar esse dado originário. Como Cardeal em Buenos Aires já vivia o que mostra hoje: habitava  num pequeno apartamento e não no palácio, fazia sua comida, renunciou ao carro oficial, andava de ônibus ou de metrô e subia as favelas sozinho para se entreter com o povo, entrando nas casas e comendo o que lhe ofereciam. Era a simplicidade completa. Desde jovem, no Colégio Maior havia feito o voto de pobreza, no sentido de dar centralidade aos pobres e viver com os pobres. Por isso escolheu o nome de Francisco para remeter-se a São Francisco de Assis, o poverello e fratello, simples e irmão de todas as criaturas até do lobo de Gubbio.

3-) Existem algumas doutrinas da Igreja Católica que estão bastante ligadas às tradições e que são alvo de muitas críticas. A não aceitação da relação entre homossexuais, o divórcio e o celibato são algumas delas. Porém, o Papa Francisco, desde que assumiu seu pontificado, têm tocado nessas questões. Disse por exemplo, que o celibato pode mudar por não ser um dogma de fé, vem discutindo uma melhor integração dos divorciados na IgrejaCatólica e já disse que  os homossexuais não podem ser julgados ou marginalizados. O senhor acredita que, essas declarações podem sinalizar umtipo de mudança à essas visões mais tradicionalistas da Igreja Católica? Sesim, de que maneira ele poderia fazer isso?
R/  O Papa Francisco recupera na Igreja o bom senso, perdido em grande parte pelo doutrinalismo e tradicionalismo. Essa visão doutrinalesca comete verdadeiros escândalos como se fez na Afria quando o Vaticano exigia que os bispos proibissem a camisinha, em países onde a população está até diminuindo por causa da AIDS. Esta atitude coloca os princípios acima da vida, o que é um erro teológico e uma desumanidade. Este Papa coloca o ser humano no centro, com seus problemas, buscas, desvios e esperanças. A Igreja deve acompanhar a cada grupo. Nas suas palavras “nao deve ter um guarda de alfândega que deixa passar a uns e impede a outros”. A Igreja não deve ser um castelo fehado,mas “uma casa aberta para todos, que permite entrar  a todos, pouco importa seu estado moral ou doutrinal”. Mais ainda: “ela é como um hospital de campanha” que tenta salvar os feridos, pouco importa se não ateus, muçulmanos ou cristãos. Ele se apresenta como um homem plenamente humano, solidário com todos os demais humanos, para além de sua ideologia e religião. Se são humanos, logo são meus irmãos e irmãs, especicalmente, os pobres e os feitos invisíveis na sociedade. Isso pertence à Tradição de Jesus que é antes um modo de viver, mais uma espirtualidade que um conjunto de verdades, espiritualidade feita de valores humanitários de solidariedade, cuidado e amor. Essa é a grande revolução na Igreja e da igreja: deslocar o centro: da Igreja para o mundo e do mundo para os pobres. Isso custa muito aos cardeais e bispos que, vaidosos, se consideram ilegitimamente “príncipes da Igreja”. Estes resistem pois o poder é sempre tentador pelas vantagens pessoiais que confere. O Papa sabe bem distinguir o que é mera disciplina que pode mudar como o celibato, ou a relação com os homoafetivos dos quais disse que “eles trazem qualidades e virtudes que enriquecem a Igreja”. Quando e onde se ouviu isso antes? Está aberto a dar a comunhão aos divorciados porque eles são os que mais precisam e dar uma benção a sua união, pois o amor deles, conta diante de Deus. Como não deve contar para  a Igreja que prega que o nome verdadeiro de Deus é “amor”?

4-) Com as tendências à Reforma da Igreja, o Papa Francisco tem despertado antipatia de alguns membros da Cúria Romana, dizem que a pressãopode ser tamanha, que o ex-porta voz de Bergoglio na Argentina, Guilhermo Marcó, disse que não seria uma novidade que Francisco, assim como Bento XVI, renunciasse. O senhor acredita que às pressões da Cúria Romana a Francisco possam ser tamanhas ao ponto de ele sentir o desejo de renunciar?
R/ Essas pessoas não conhecem quem é Bergoglio ou o Papa Francisco. Ele é terno e fraterno como São Francisco de Assis para tcom todos especialmente com os mais discriminados. Mas é um jesuita. E como tal é um homem de exímia formação, de estratégia e de sabedoria no manejo do poder. Não sem razão mandou diretamente para a prisão o núncio apostólico em Santo Domingo quando se comprovou inequivocamente que era um pedófilo obstinado. Foi chamado a Roma e o Papa logo o encarcerrou. O mesmo fez com aquele alto funcionáro (arcebispo creio) do Banco Vaticano que veio da Suiça com um aviãozinho com cerca de 30 milhões de euros, dinheiro de lavagem dos mafiosos e de alguns cardeais. Do aeroporto foi direto para a prisão. Esse Papa não é de se intimidar. Sofre ameaças de morte, o que já lhe foi comunicado. Ele  sorridentemente respondeu: eu não pedi a Deus que me fizesse Papa. Então que Ele me proteja. E se me matarem, é sinal que Deus me chamou e vou contente para cair em seus braços de Pai amoroso. Aqui se nota a fé profunda, como total despojamento e a determinação deste Papa que conheceu o que foi a bárbara repressão dos militares argentinos.

5-) Dentre as reformas que Francisco pode fazer, o senhor acredita que ele possa dar mais espaço para as mulheres na cúpula da Igreja?
R/ Ele disse várias vezes: não é possível não dar mais espaço às mulheres. Elas são mais da metade da Igreja e têm direito de participar nas decisões sobre o caminho que a Igreja deve tomar. Aventa-se a idéia até de que possa fazer cardeiais a algumas mulheres notáveis por seu engajamento  na Igreja. Cardeal é um título e não precisa a ordenação sacerdotal prévia, como era o Cardeal Richilieu ou o Cardealo Mazarino na França que eram grandes políticos e leigos. E eu acrescentaria um argumento em favor das mulheres. Elas são mais da metade da humanidade e da Igreja. E são as mães e as irmãs da outra metade feita dos homens. Logo a importância delas é fundamental. Finalmente elas nunca trairam Jesus, enquanto os Apóstolos fugiram e Pedro o negou. Foram as primeiras testemunhas do fato maior da fé cristã que é a ressurreição de Jesus. Foram apóstolas dos apóstolos.

6-) No ano passado, o Papa Francisco manifestou interesse em ler o livro do senhor “Igreja: Carisma e Poder”, em que a discussão hierárquica da Igreja é discutida.  Que tipo de mudança o senhor acredita que isto possa representar?
R/ Aquilo que o Papa vem dizendo sobre a Igreja, seus equívocos, as críticas que faz aos conservadores, chamando-os de gente de “quarta-feira de cinzas” , gente “azeda como os vinagre”, tristes como se fossem ao próprio enterro, é muito mais grave do que eu escrevi no livro “Igreja: carisma e poder” em 1982 e ajuzado pela ex-Inquisição em 1984 em Roma. Eu tentei aplicar os princípios da Teologia da Libertação para as relações internas da Igreja. E ai me dei conta como ela, enquanato instituição, é absolutista, autoritária, não respeita os direitos humanos para defender sempre a “santidade da instiuição” (veja a ocultação dos pedófilos enquanto pode até ter que reconhecer que os haviam não somente entre padres, mas também entre bispos e até entre dois cardeais). Se ele tivesse dito naquele tempo seria condenadomuito mais que eu. Agora vivemos em tempos de verdade e de liberdade. Esse Papa ama a transparência, renunciou a excepcionalidade da Igreja como se somente ela é a portadora legítima da mensagem de Jesus. Em ecumenismo já definiu a linha: caminhemos juntos com nossas diferenças mas todos a serviço do povo e do mundo. Esse recíproco reconhecimento e a missão comum como serviço aos demais é o passo que faltava dar e ele, com bom senso apenas, deu.

7-) Por fim, o que  o senhor espera do Papa Francisco e da Igreja Católica para os próximos anos?
R/ Se não o liquidarem (cuidado com os mafiosos que foram na Calábria todos excomungados pelo Papa e eles são vingativos e se associam à gente da Cúria Romana) eu creio que virá uma grande retomada da significação ética, religiosa e política do Cristianismo  que é maior que a Igreja. Já lhe foi sugerido e eu o fiz por carta que convocasse uma Assembléia de todas as Igrejas cristãs para ver como podem enfrentar a globalização que é perversa para os pobres e ao mesmo tempo abre um espaço novo para o encontro dos povos e a possibilidade de entrarem em contacto com a mensgem cristã. Ele nos respondeu que quer fazer isso, mas somente depois de colocar a Igreja internamente em ordem, com a reforma da Cúria, quer dizer, com as instâncis de poder e de condução da Igreja. Isso não é faicl, pois os católicos são uma inteira China, um bilhão e duzentos milhões de fiéis. Como  coordenar essa imensa mole de fiéis? Somente com a decentralização, com um pequeno corpo de peritos em poder religioso que supervisionam as comunidades para manter um mínimo de unidade na diversidade. Para isso aIgreja deve se descodentalizar, se desclericalizar (fazer o celibato optativo), dar mais espaço às mulheres (quem sabe até o acesso ao sacerdócio como fizeram várias igrejas cristãs muito próxima como é a anglicana), se  despatriarcalizar no sentido de só homens terem acesso ao poder religioso e incluir mais os leigos e leigas não na simples participação, coisa que já fazem, mas nas decisões concretas sobre que caminhos tomar neste mundo globalizado. Depois disso viria um encontro com todas as religiões e caminhos espirituais para que juntos mantenham a chama sagrada que arde dentro de cada pessoa que as impulsiona para fazer o bem, amar a verdade e superar todas as divisões e exclusões. Isso seria a glória. E no fundo é isso que todos esperam dos cristãos e das pessoas religiosas e creio que corresponde ao que Jesus, no fundo, queria quando andou entre nós.
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* Teólogo. Filósofo. Escritor. 
Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2015/07/07/que-mudancas-o-papa-pode-introduzir-na-igreja/
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