quarta-feira, 15 de julho de 2015

Michel Houellebecq, o implacável. Entrevista.

 Juremir Machado da Silva*
 
 
O escritor depois dos ataques terroristas

Feliz, ao lado da companheira, a jovem Ignez, Michel Houellebecq nos recebeu para jantar no seu apartamento no bairro mais oriental de Paris, chamado de Chinatown. Chegamos antes para uma hora de entrevista gravada. O mais importante escritor francês da atualidade iria receber na noite seguinte, num jantar chique para 300 pessoas, o prêmio literário da Biblioteca Nacional da França por seu livro Submissão. Conforme o regulamento, ele não pode ganhar uma segunda vez o Prix Goncourt, o Nobel francês, por ter sido laureado em 2010 por O mapa e território. Submissão, que trata da chegada ao poder dos muçulmanos na França, em 2022, deveria ter sido lançado no dia em que aconteceu o atentado a Charlie Hebdo. Depois disso, Houellebecq vive constantemente sob proteção policial. Os seus livros já venderam cerca de três milhões de exemplares.

Irônico, provocador, culto e impiedoso com o politicamente correto e com o fanatismo religioso, ele se revela por inteiro aqui enquanto luta para não ter a sua vida privada devassada por uma reportagem no jornal francês Le Monde e prepara uma exposição de fotografias para o prestigioso Palais Tokyo. Houellebecq é um dos melhores escritores do mundo atualmente.

Caderno de Sábado – Na última vez que eu estive aqui, em novembro de 2014, dizendo que não podias revelar o conteúdo do novo livro, contaste a história e disseste que colocarias fogo na França. Falavas metaforicamente, claro. Depois disso, aconteceu o atentado a Charlie Hebdo e o livro saiu. Como viveste tudo isso e como te sentes agora?
Michel Houellebecq – Foi um choque. A violência atingiu limites inimagináveis. Deu-se uma ruptura entre mim e a esquerda, mas também há ruptura na França. A sensação é de que o conflito é irreversível e a guerra civil inevitável. Isso tem mais a ver com meu livro do que com os atentados. Esse período dramático ainda não acabou. Eu esperava que meu livro incendiasse a França, mas, evidentemente, não da maneira que aconteceu. O mais difícil de aceitar é que, no fundo, os fatos são inexplicáveis. Há dez anos, o número de muçulmanos era o mesmo, mas se falava pouco disso. Agora, é o único assunto em pauta.

CS – Sentiste medo quando os atentados aconteceram?
Houellebecq – Não. Isso não quer dizer grande coisa. De qualquer maneira, hoje, quando saio na rua, estou sempre sob proteção policial. Não ando sozinho. Tem sempre um policial comigo. Depois dos atentados, passei uns dias na casa do cantor Jean-Louis Hubert. Era uma questão de bom senso. Eu me sentia sufocado em Paris. Perdi meu amigo Bernard Maris no atentado contra Charlie Hebdo. Fiquei muito triste e chocado com os acontecimentos. O atentado contra Charlie coincidiu com o dia do lançamento de Submissão. Mesmo não sendo místico, ser vítima desse tipo de coincidência deixa a gente com uma sensação estranha, como se o destino estivesse agindo. Nunca me senti culpado. Não tenho essa importância. Eu me senti esquisito. Coisas irracionais me passavam na cabeça. Com meu livro Plataforma aconteceu o atentado em Bali. Desta vez, foi pior, pois eu estava na capa de Charlie Hebdo no dia do atentado. Fiquei muito perturbado.

CS – Isso pode influenciar a tua maneira de escrever?
Houellebecq – Talvez. A ideia de destino passou a ter força para mim. Era algo que não me ocorria antes. Fiquei mais sensível às coincidências. Enfim… A França vive um tempo de ódio, de intolerância, de ruptura e de pré-guerra civil. Mas não tenho medo.

CS – Uma guerra civil é, de fato, possível?
Houellebecq – Claro que sim. As instituições republicanas não conseguem frear a situação. Na verdade, não sabemos por que, em determinando momento, as coisas não podem mais funcionar como antes. A fratura é grave demais. A gente sente isso. A esquerda reage muito mal a esse tipo de constatação. É uma reação mais impressionante que a da direita. Como sabemos, a direita não se interessa pela vida intelectual. É indiferente ao que pensam os intelectuais. Já a esquerda sempre se sente comprometida com o pensamento. Pela primeira vez, os intelectuais estão abandonando essa esquerda à qual sempre estiveram associados. Mesmo os professores estão largando a esquerda. São vão restar alguns artistas. O cenário político tem mudado muito. A Frente Nacional, de Marine Le Pen, poderá ganhar as eleições, não as próximas, mas as de 2022. Isso mexe com a esquerda. A Frente Nacional já não é antissemita. Jean-Marie Le Pen era antissemita. Marine não é. Tudo isso configura um novo quadro desestabilizador.

CS – É importante mesmo que o autor esteja presente na obra?
Houellebecq – Não falo no sentido autobiográfico. É como a câmera num filme. Cada um vê o mundo de uma maneira e isso aparece. Eu não tenho olfato. Cada um tem um sentido menos ou mais desenvolvido. Quem lê tudo de um autor, estabelece uma relação pessoal com ele. É isso.

CS – Tu dizes também que o leitor, quando o ama o livro, quer encontrar o autor e conviver com ele. Teus leitores querem te ver?
Houellebecq – Passei mais tempo da minha vida com Balzac do que com pessoas das minhas relações. Quem lê e gosta, entra no mundo do autor. Quem gosta de ler, passa boa parte da vida fazendo isso.

CS – É muito difícil escrever de novo depois de uma obra-prima? A solução é criar um personagem que sirva de porta-voz para o autor?
Houellebecq – Foi o que Joris-Karl Huysmans, de quem falo em Submissão, fez, mas não é a única fórmula possível. Eu nunca fiz isso. Meus personagens não são meus porta-vozes mesmo quando se chamam Michel ou moram no Chinatown de Paris. Tentei, para me renovar, alterar radicalmente os cenários em alguns dos meus romances. “Plataforma” deveria ter sido totalmente ambientado na Tailândia. Um livro não ocidental. Não consegui. Huysmans contou, depois de uma obra-prima, a história de uma decepção. Foi coerente.

CS – Qual é a tua obra-prima?
Houellebecq – Partículas elementares e A possibilidade de uma ilha. São meus livros mais bem acabados. Submissão não tem a mesma clareza. É bem feito, mas menos ambicioso. A ambição é importante num livro.

CS – Em Submissão, doutorandos questionam o professor sobre a possibilidade de definir poetas maiores e menores. Faltam critérios?
Houellebecq – O personagem toma a questão como idiota, mas não é. Trata-se de uma distinção boba, cultural. Ninguém sabe de verdade. A reputação adquirida condiciona a leitura e os novos julgamentos.

CS – Todos os teus personagens centrais estão preocupados com uma questão: o que fazer depois do fim das conquistas amorosas e sexuais?
Houellebecq – Sim. Sempre se pode colecionar miniaturas de avião ou fazer um curso de enologia. Alguns nem começam a vida sexual. A maioria se entedia depois que ela acaba. Em “Submissão”, o personagem, um professor universitário, encontra na organização da obra de Huysmans para a Pleiâde uma atividade de substituição do sexo, mas, concluído o prefácio, ele fica sem saber o que fazer. Finda a temporada de caça, só resta aos homens colecionar algo.

CS – Como os acadêmicos receberam a tua sátira ao que eles fazem?
Houellebecq – Não se manifestaram. Eles não têm acesso à mídia. Um professor de Letras serve para formar outro professor de Letras. É auto-reprodutivo. Mas não deixa de ser importante como vida social. Os acadêmicos escondem-se atrás da indiferença. Mesmo que ficassem indignados, porém, ninguém ficaria sabendo fora das universidades.

CS – A mídia para ti, na França, é quase toda de centro-esquerda. A alternância no poder político, um jogo entre gangues rivais?
Houellebecq – Le Figaro é de centro-direita. A alternância política é isso mesmo: campos em lutas internas e externas pelo controle do poder. Eles falam em nome da sociedade, mas isso é só retórica.

CS – O sushi é o único tema de consenso na França da atualidade?
Houellebecq – Entre as mulheres jovens e sofisticadas. Diz-se que não engorda e passa uma imagem de refinamento japonês. É só peixe cru com arroz. Eu não gosto. Os muito jovens preferem pizza. Quem busca um terreno de entendimento entre pessoas sofisticadas, escolhe sushi.

CS – Entre o sushi e o patriarcado, o que tu escolhes?
Houellebecq – Os dois não são incompatíveis. O Japão era patriarcal.

CS– The Guardian diz que a originalidade francesa morreu. Verdade?
Houellebecq – Os ingleses vivem preocupados com isso. Não é inveja, pois se acham superiores. Talvez seja a nostalgia de uma referencia.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: Correio do Povo online, 15/07/2015
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