quinta-feira, 30 de julho de 2015

‘Questão migratória é o principal problema europeu, mais que a crise grega'

 

 Policiais bloqueiam passagem de imigrantes que tentam passar para o lado britânico - PASCAL ROSSIGNOL / REUTERS

 Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, incapacidade da UE alimenta populismo

PARIS - O drama dos migrantes que têm se arriscado no Eurotúnel para chegar ao Reino Unido colocou a questão novamente em pauta. Para Bruno Cautrès, analista do Instituto de Estudos Políticos de Paris, a incapacidade da Europa em lidar com a situação alimenta o populismo que rechaça os refugiados e dá voz a radicalismos.

Qual o significado de mais este incidente em Calais?
Há muito tempo, não somente a França, mas a Europa, não sabe enfrentar esta situação. E temos o sentimento de que é algo cada vez mais grave. Há uma pressão crescente, e esta questão da imigração e dos refugiados se tornou o problema número um da Europa, talvez mais do que a crise grega. Os países europeus se sentem pouco à vontade em aceitar assumir sua parte do problema. É um problema para o qual ninguém parece ter uma solução.

Como você analisa a reação dos envolvidos hoje?
As respostas se restringiram ao âmbito da manutenção da ordem, do reforço da segurança, com envio de policiais. O ministro do Interior francês disse que a situação em Calais reflete o estado dos problemas e das tensões do mundo. Tudo bem, ele tem razão. Mas dizendo isso, ele não diz nada. Fui surpreendido por essa abordagem do governo francês restrita às questões de segurança.
 
Há uma impotência europeia para enfrentar o problema?
As soluções são de longo prazo e onerosas, de nível internacional, nas áreas de políticas de cooperação, de desenvolvimento. As soluções de curto prazo são humanitárias. A Itália teve razão em lembrar que os fundos europeus que lhe haviam sido destinados para enfrentar a situação foram reduzidos. Hoje, é ainda mais difícil, pois muitos governos têm o sentimento de que os cidadãos não acreditam mais na Europa.

Este quadro favorece o discurso da extrema-direita e do populismo, de Marine Le Pen (FN), e também a proposta do ex-presidente Nicolas Sarkozy, de acabar com o Espaço Schengen?
São temas do terreno da extrema-direita que proporcionaram seu sucesso na França, com o objetivo de amedrontar com a ameaça de uma invasão de refugiados e imigrantes. E também de dizer que abandonando a soberania nacional em detrimento da Europa, do Espaço Schengen (espaço europeu em que os países participantes têm fronteira aberta entre si), a França se coloca em perigo. Se o que se passou hoje, ocorresse duas semanas antes do primeiro turno da eleição presidencial, haveria um efeito importante.
---------- 
Reportagem por

O QUE É TER FÉ

 Fr. Betto*

Para Jesus, ela não significa aceitar o que prega uma religião, mas agir levado por amor, solidariedade e justiça

Todos conhecemos pessoas que frequentam a igreja e, no entanto, se comportam de modo contrário aos valores evangélicos: tratam subalternos com desrespeito; sonegam direitos de empregados; discriminam por razões raciais ou sexuais. Pessoas que enchem a boca de Deus e trazem o coração entupido de ira, inveja, soberba; são indiferentes aos direitos dos pobres; omitem-se em situações graves que lhes exigem solidariedade.

E temos à nossa volta, no círculo de amizades, pessoas ateias ou agnósticas que, em suas atitudes, fazem transparecer tudo o que o Evangelho acentua como valores: amor ao próximo, justiça aos excluídos, solidariedade aos necessitados, etc.

O Catecismo da Igreja Católica, aprovado por João Paulo II, em 1992, e elaborado sob a supervisão do téologo Ratzinger, futuro papa Bento XVI, define a fé como “adesão pessoal do homem a Deus”. E acrescenta que é “o assentimento livre de toda a verdade que Deus revelou.” E a portadora dessa verdade é a Igreja.

Assim, só teria verdadeira fé cristã quem submete seu entendimento ao que ensina a autoridade eclesiástica (papa, bispos e pastores).

Devido a essa maneira de entender a fé, o que se crê se tornou mais importante do que como se vive. Criou-se uma ruptura entre fé e vida. A ponto de uma pesquisa na França, ao indagar a diferença entre um empresário sem religião e outro cristão, teve como resposta da maioria um detalhe: o segundo vai à missa de vez em quando. No resto, em nada diferem...

Para Jesus, quem tinha fé? A resposta é desconcertante. Em Mateus 8,10, Jesus declara que o homem com mais fé que até então havia encontrado era um oficial romano, um centurião.

Ora, como Jesus pôde elogiar a fé de um oficial pagão? O episódio demonstra que, para Jesus, a fé não consiste, em primeiro lugar, naquilo que se crê, e sim no modo de proceder. Aquele pagão era um homem solidário, preocupado com o sofrimento de um servo.

A mesma atitude de Jesus se repete no caso da mulher cananeia, que também era pagã. A mulher pede a Jesus que lhe cure a filha. Diante dela, Jesus reconhece: “Mulher, grande é a sua fé!” (Mateus 15,28). Grande, não por causa da crença da mulher, e sim por seu procedimento amoroso.

O mesmo ocorre no caso do samaritano hanseniano, curado em companhia de nove judeus (Lucas 17,11-19). Os judeus, segundo suas crenças religiosas, se apresentaram aos sacerdotes, como recomendou Jesus. Já o samaritano, que não obedecia às prescrições das autoridades religiosas e não se sentia obrigado a submeter-se a elas, retornou para agradecer a Jesus, que lhe exaltou a fé: “A sua fé o salvou” (Lucas 17,19).

Para Jesus, portanto, a fé, antes de se vincular a um catálogo de crenças, a uma doutrina, se relaciona a um modo de viver e agir. Jesus, por vezes, duvidou da fé de quem estava mais próximo dele (Marcos 4,40). Discípulos e apóstolos foram considerados “homens de pouca fé” (Mateus 8,26).

Jesus fez a desconcertante afirmação de que prostitutas e cobradores de impostos terão precedência no Reino de Deus, e não os “exemplares” sacerdotes (Mateus 21,31).

Isso deixa claro quem Jesus reconhecia como crente. Não propriamente quem aceita o que prega a religião, e sim quem age por amor, solidariedade e justiça. Ter fé é, sobretudo, viver de acordo com os valores segundo os quais vivia Jesus.

A Igreja está em crise. Suas autoridades culpam o laicismo, o relativismo, o hedonismo. Ora, será que as autoridades religiosas, e nós, frades, freiras, padres e pastores, não temos culpa nisso, por apresentar a fé cristã como verdades cristalizadas em doutrina, e não expressada em vivência?
------------
* Frade Dominicano. Escritor. Teólogo.  
Fonte: Jornal O Globo online, 30/07/2015
Imagem da Internet
 
 

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Hermann Hesse: o guru dos hippies

Hermann Hesse: o guru dos hippies
Nobel de Literatura, Hermann Hesse é um dos mais importantes escritores alemães do século 20 e sua obra provoca uma espécie de culto místico. O autor do romance “O Lobo da Estepe” quis mudar-se para o Brasil e, depressivo, foi paciente de J. B. Lang e de C. G. Jung

A Floresta Negra, no Sudoeste da Alemanha, é uma das mais belas regiões do país. A área abrange quase a metade do Estado de Baden-Württemberg — que, ao Sul, faz limite com a Suíça e, a Oeste, com a França. A topografia é acidentada com vales, colinas e montanhas cobertas de densa mata de pinheiros que, ao sol do verão, assumem uma cor verde-escuro quase beirando ao preto, daí o nome de Floresta Negra. A Oeste, formando a divisa com a França, serpenteia languidamente o Reno, a mais importante veia aquática europeia, cujas nascentes têm suas origens nos Alpes suíços; em seu percurso penetra o território alemão do Sul ao Norte, onde faz um desvio em direção à Holanda e lá desemboca no rio Maas — formando um intrincado delta cujos braços espraiam-se no Mar do Norte. A Floresta Negra estende-se além do Reno, em território francês, onde as árvores são da mesma família e a cor verde-escuro viceja. O que muda é apenas o nome: os franceses chamam-na de Floresta dos Vosgues.

Em território alemão, no coração desta floresta, encontra-se a pequena e pitoresca cidade de Calw, um nome que soa estranho para os que não vivem na região. A localização geográfica de Calw, cujas origens datam do ano 1075, também é estranha: a cidade encontra-se numa depressão. No linguajar corriqueiro, diríamos que Calw situa-se num buraco. A cidade é cortada pelo Nagold, rio que, em termos de Brasil, seria considerado riacho. Mesmo assim, o Nagold, no passado certamente com mais água, teve uma importante função na história da cidade. Até o século 19, o pequeno rio era a principal via de transporte fluvial para os troncos de pinheiros da Floresta Negra. Eram amarrados em balsa e transportados via rio Neckar até ao Reno, de onde seguiam até à Holanda e, não raro, para a Inglaterra.

Durante quase toda a Idade Média, Calw foi um grande centro de comércio — com estabelecimentos manufatureiros de couro, moinhos, serrarias, marcenarias e artesãos de móveis e de construção de casas do estilo enxaimel, a arquitetura típica da região.

O Sul da Alemanha, a partir do século 17 até meados do século 20, era fortemente influenciado pelo pietismo, o maior movimento reformista dentro do protestantismo europeu após a Reforma Protestante. Os pietistas, profundamente crentes, conservadores e intransigentes a tudo quanto era novo, levavam o conteúdo da Bíblia ao pé da letra e eram, por isso, considerados ortodoxos dentro do protestantismo.

Foi neste ambiente que, em 2 de julho de 1877, nasceu e passou a sua infância e parte da adolescência Hermann Hesse, o mais lido escritor alemão do século 20. Perscrutar a vida desse autor não é tarefa rotineira e quem a enceta deve estar ciente de que, caso tiver percepção para os sentimentos mais intrínsecos da alma humana, acaba perscrutando a si mesmo.

Hermann Hesse, aos 20 anos
Hermann Hesse, aos 20 anos
Hermann Hesse não aceitou e muito menos se conformou com o ambiente no qual nascera e crescera. Muito cedo deu mostras de rebeldia contra a “camisa de força” que lhe fora imposta pelo ambiente pietista. No círculo familiar sua rebeldia contra a extremada religiosidade causou tanto incompreensão quanto preocupação, pois os Hesse, por gerações, eram crentes convictos, engajados na igreja, em serviços missionários e na publicação de literatura religiosa.

Portanto, o jovem foi a primeira ovelha negra de uma linhagem familiar que não conhecia nada além do sacrifício à religião. Mais tarde, Hermann Hesse registrou em seu diário uma observação que explica um dos motivos de sua rebeldia adolescente: “Que pessoas encarem a sua vida como vassalas de Deus e que procurem, isentas de qualquer impulso egoístico, viver a serviço e sacrifício para com Deus foi uma vivência da minha juventude que me influenciou profundamente”.
Hermann Hesse foi um homem que, durante toda a sua vida, teve que lutar contra dúvidas, anseios e aflições. O ambiente familiar pietista, por ser rígido, serviu de húmus no qual se desenvolveram seus futuros devaneios psíquicos por meio dos quais acabou encontrando o seu caminho à literatura. Durante toda a sua vida, Hesse foi um solitário que não suportava pessoas por muito tempo ao seu redor. Mesmo suas mulheres — teve três —, só as tolerava a certa distância. Em sua obra “O Lobo da Estepe” (best seller também no Brasil), Hesse registrou uma frase elucidativa: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos”.

Para compreender a beleza, a profundidade e o sentido da obra literária de Hermann Hesse é preciso entranhar-se nos labirintos da alma do autor. É necessário perceber Hermann Hesse como indivíduo, entender o ambiente em que viveu e conhecer a sua genealogia. Seus parentes, além de pietistas, tinham ampla cultura humanista.

Sua vida é bem documentada, o que vale para os seus ancestrais tanto da linhagem paterna, os Hesse, como da materna, os Gundert. Os bisavós tinham o hábito de guardar todo e qualquer papel, por mais insignificante que fosse. Cartas, apontamentos, cartões postais, simples bilhetes — tudo era guardado. O mesmo costume tinham também os avós e seus pais. Graças a esse cuidado, os registros, documentos e demais fontes de informações existentes sobre a ascendência de Hesse são amplas. A dedicação à literatura e à arte de escrever já eram hábitos que existiam nos dois ramos familiares de seus ancestrais.

O avô paterno, dr. Carl Hermann Hesse (1802-1896), nasceu em Livland, na Estônia, à época pertencente à Rússia. Era casado com uma alemã, médico e conselheiro de Estado, em Weissenstein, na Estônia. Além do russo, falava alemão, latim, grego e hebraico. Como pietista, ministrava aulas bíblicas, fundou um orfanato, escreveu artigos para jornais e é autor de vários livros, entre os quais uma ampla autobiografia em dois volumes. Hermann Hesse, o neto escritor, não chegou a conhecer o avô pessoalmente mas, desde jovem, manteve com ele regular correspondência até sua morte.

O avô materno, dr. Hermann Gundert, nasceu em Stuttgart, na Alemanha, em 1814. Fez seus estudos preliminares no célebre mosteiro de Maulbronn, cujas origens datam do século 11 e a seguir matriculou-se no Tübinger Stift, fundado em 1536, uma instituição de elite, ligada à Universidade de Tübingen. Em seus quase cinco séculos de existência, o Tübinger Stift formou grandes homens da cultura alemã, como o astrônomo Johannes Kepler, o poeta Friedrich Hölderlin, os filósofos Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Friedrich Schelling e o escritor e tradutor Eduard Mörike.

O dr. Gundert era pessoa de ampla cultura. Começou a escrever durante os seus estudos preliminares em Maulbronn. Datam desse período vários dramas, entre eles um sobre Pedro, o Grande. Ampla era a sua vocação para as línguas. Durante a sua formação em Tübingen, estudou latim, grego, hebraico, inglês, francês, italiano, indu e malaiala. Terminados os estudos, passou um período na Inglaterra e de lá partiu para Tschirakal, na Índia, onde inicialmente trabalhou como professor. Não demorou, interessou-se por atividades missionárias e ocupou-se da área de seu interesse, as línguas. Estudou vários dialetos indus, traduziu a Bíblia do latim para o malaiala e compilou o primeiro dicionário inglês-malaiala, trabalho que lhe custou mais de 30 anos de pesquisa e continua sendo obra básica até os dias de hoje. No Estado de Kerala, na Índia, fundou um jornal, escreveu livros escolares, traduziu obras do sânscrito para o malaiala, inclusive um documento budista dos primeiros séculos da era cristã. Casou-se, na Índia, com Julie Dubois, filha de calvinistas da região de Genebra, com quem teve dez filhos, entre os quais Marie Gundert, a mãe de Hermann Hesse. Julie Dubois (avó de Hermann Hesse) nunca chegou a falar e escrever o alemão corretamente, mas, além de sua língua materna, o francês, dominava perfeitamente o inglês e o indu e vários dialetos. Cultivava uma vida ascética, era rigorosa e intransigente.

Gundert regressou à Alemanha em 1859 e assumiu uma editora de literatura religiosa. Viveu em Calw por mais 33 anos, dedicou grande parte desse tempo às pesquisas linguísticas. No Estado indu de Kerala, Gundert é respeitado como grande cientista linguístico. O Estado o homenageou com monumento, nome de rua e placa comemorativa. Gundert escreveu mais de oito mil cartas, que foram usadas por um de seus genros, Johannes Hesse, o pai de Hermann Hesse, para publicação de uma biografia sobre o sogro.

Johannes Hesse (1847-1916), filho do dr. Carl Hermann Hesse, nasceu em Weissenstein, na Estônia. Hermann Hesse — com um avô paterno russo casado com uma alemã, um avô materno alemão casado com uma francesa; o pai russo casado com uma alemã e ele próprio nascido em Calw — tinha dúvidas quanto a sua nacionalidade. Em suas notas autobiográficas, escreve: “Naquela época eu não sabia qual era a minha nacionalidade, provavelmente russa, pois meu pai foi súdito russo e tinha um passaporte russo; a mãe, nascida na Índia, era filha de um suábio e de uma francesa-suíça. Tal origem mesclada impediu-me de ter maior respeito perante nacionalismos e limites fronteiriços”.

Em 1919, ao decidir que a região da Floresta Negra era a sua origem, berço, cultura, pátria, Hermann Hesse passa a se considerar cidadão alemão. Segundo as leis vigentes da época, como filho de um missionário alemão-báltico (russo) casado com uma mulher nascida na Índia, oficialmente o escritor era cidadão russo. Entre 1883 e 1890 e a partir de 1923 tornou-se cidadão suíço. No entremeio, tinha também os direitos de cidadania do Estado alemão de Baden-Württemberg.

Johannes Hesse, pai de Hermann, indivíduo franzino, nervoso, leitor incansável, laborioso em anotar e registrar tudo que lia, ouvia e observava, aos 16 anos resolveu ser missionário. Seus textos, escritos nessa idade, não revelam nenhum fanatismo; ao contrário, era um homem pensativo e ponderado. Além da biografia sobre o sogro, escreveu outras 16 obras. Na Índia, a serviço missionário, casou-se com a viúva Marie Gundert, a filha de Hermann Gundert. Marie Gundert, mãe de Hermann Hesse, era escritora. Publicou vários livros, entre os quais encontra-se uma biografia sobre o naturalista inglês David Livingstone. Falava um inglês impecável, razão pela qual os pais de Hermann Hesse costumavam comunicar-se em inglês.

Hermann Hesse conheceu muito bem o avô materno, Hermann Gundert, com o qual manteve estreito contato. Tinha-o em grande conta e dedicava-lhe uma imensa afeição. No texto autobiográfico “A Meninice de um Mágico”, Hermann Hesse fala com sentimentalismo sobre o avô: “E todas essas coisas pertenciam ao avô, e ele, o idoso, respeitado, po­deroso, com sua densa barba branca, sabia tudo, mais poderoso do que meu pai e minha mãe, estava em poder de muitas outras coisas e poderes… sua sala e sua biblioteca, ele era também um mágico, um homem que sabia de tudo, um sábio. Ele entendia todas as línguas dos homens, mais do que trinta, talvez também a língua dos deuses, talvez a língua das estrelas, ele escrevia e falava o páli e o sânscrito, falava e cantava canções em canarês, bengalês, hindustâni e singalês e recitava orações e textos dos muçulmanos na língua destes. Recebia muitas visitas e eles falavam em todas as línguas”.

Diante desse manancial cultural, com vários escritores entre seus ancestrais, o pequeno Hermann Hesse, fortemente influenciado pelo avô materno e pelo próprio pai, teve, desde tenra idade, uma educação condicionada ao preparo do serviço missionário, como foram seus pais, avós e bisavós. Sob o peso da profunda religiosidade, o jovem Hesse decidiu não se tornar “vassalo de Deus”. Começam assim os conflitos com Johannes, que, embora não fosse um pai extremado, queria o filho como missionário. Prova disso é o fato de que o pai começou a ministrar-lhe aulas de latim desde a infância. Hermann Hesse, mais tarde, comenta esse período em “Meninice de um Mágico”: “Até a idade de 13 anos nunca me preocupei com o que seria da minha vida futura e que profissão deveria seguir”. Uma das coisas que Hermann admirava em seu pai, que falava várias línguas, era o seu estilo claro e preciso ao usar a língua alemã.

Os primeiros intensos abalos psíquicos que Hermann sofreu aconteceram durante seus primeiros quatro anos de ensino elementar na escola que frequentava em Calw, com o irmão mais novo, Hans (1882-1935). Os métodos educacionais eram rígidos. Castigos corporais eram medidas usuais aceitas tanto pelos pais como pelas autoridades. Abusos, com graves lesões corporais, eram frequentes e impunes. Hans sofreu um trauma escolar em virtude dos métodos educacionais pelos quais passou e do qual não conseguiu livrar-se durante o resto de sua curta vida, que terminaria em suicídio. Hermann Hesse abordou essa tragédia nos livros “Demian”, “O Jogo das Contas de Vidro” e “Debaixo das Rodas”. Nessa a personagem principal, Hans Gie­benrath, em referência a seu irmão morto, é retratada como vítima dos métodos educacionais. Nessa obra encontra-se a seguinte passagem: “A escola é a única instituição cultural que, apesar de levar a sério, me irrita. Em mim a escola estragou muita coisa e conheço poucas personalidades que não passaram pela mesma experiência. Para sobreviver nesse ambiente você precisa aprender a mentir e o irmão Hans era um menino sério e é por isso que na escola em Calw quase o mataram, quebraram-lhe a espinha dorsal”.

Em 1891, o pai matriculou Hermann Hesse, de 14 anos, no renomado mosteiro de Maulbronn, onde o avô materno estudara. O astrônomo Johannes Kepler, que nasceu em Weil der Stadt, pequena localidade a nove quilômetros de Calw, frequentou o mesmo ginásio do mosteiro de Maulbronn, três séculos antes de Hermann Hesse (de 1586 a 1589).

“Serei escritor ou nada”

Hermann Hesse
Em Maulbronn, o seminarista Hermann Hesse redigiu algumas peças de teatro em latim — que ele mesmo ensaiava com colegas e as apresentava aos alunos internos. Suas cartas aos pais eram em forma de rima e muitas em latim. Ele gostava do ambiente, mas vivia com receio de acabar virando missionário. Resolveu enfrentar o pai escrevendo-lhe uma carta com uma frase derradeira: “Serei escritor ou nada”. Mais tarde Hesse confessa: “Quanto mais avançava em idade, tanto mais compreendi quanta semelhança eu tinha com o meu pai”.

Depois de sete meses em Maulbronn, Hermann fugiu do internato. Só foi encontrado dois dias depois, confuso e transtornado. Após uma tentativa de suicídio, foi internado numa clínica psiquiátrica. Após o tratamento, ingressou num ginásio em Cannstatt, um bairro de Stuttgart. Não suportando o ambiente escolar, Hermann deixou o estabelecimento e começou a trabalhar numa livraria em Esslingen, onde suportou apenas três dias.

Regressou à casa dos pais em Calw e foi trabalhar como aprendiz na firma Perrot, que fabricava relógios para torres de igreja. Permaneceu no emprego por um ano e meio. Durante esse período, aos 17 anos, Hermann Hesse falava seriamente de planos para emigrar para o Brasil, assunto frequente nos seus apontamentos e escritos.

O relacionamento com a mãe Marie era normal e Hermann costumava dizer que a amava. O relacionamento sofreu uma ruptura abrupta numa época em que Hermann já publicara textos, comentários e seu nome já era conhecido. Hermann redigiu um pequeno texto com o título “Minha Mãe”, convencido de que ela o apreciaria. Enganou-se. A mãe, num gesto indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho do filho. Passado mais de meio século, Hesse recordou com amargura do episódio e disse nunca ter perdoado a mãe.

A partir desse episódio a vida de Hermann Hesse transforma-se numa roda viva. Em 1895 começa a trabalhar numa livraria em Tübingen (que ainda existe), publica algumas poesias e uma obra com o título “Uma Hora Após a Meia-Noite”, escreve regularmente para o jornal suíço “Allgemeine Schweizer Zeitung”, e viaja três meses pela Itália. Ao regressar, trabalha num antiquário em Wattenwyl, na Suíça, e seu romance “Hermann Lauscher” é publicado. Em 1903, volta a viajar pela Itália, desta vez, acompanhado pela fotógrafa Maria Bernoulli. Ao mesmo tempo, publica sua obra “Peter Camenzind” (1904), seu primeiro romance cujo enredo contém muitos paralelos biográficos. “Peter Camenzind” torna-se um best-seller, Hesse casa com Maria Bernoulli e compra uma propriedade em Gaienhofen, no Lago de Constança, na divisa da Alemanha com a Suíça.

Às margens do lago, a criatividade literária de Hermann Hesse desenvolve-se em bom ritmo. Em 1906 publica “Debaixo das Rodas” e em 1910 “Gertrudes”, novela escrita em primeira pessoa, na qual o autor narra os infortúnios de uma dolorosa experiência de amor. Entre 1905 e 1911 nascem os seus três filhos, Bruno, Heiner e Martin. Para distrair-se Hermann Hesse pratica a jardinagem. Na área que circunda a casa, Hesse planta árvores, arbustos e cultiva rosas. Muito do que plantou na época continua a vicejar até hoje sob os cuidados de uma sociedade mantenedora que tem o zelo de conservar a propriedade e cultivar as mesmas plantas, rosas e flores que Hesse cultivara.

Em 1911 Hesse parte para uma viagem à Índia. Queria conhecer o lugar no qual a mãe nascera e onde os pais trabalharam. A viagem estende-se à Indonésia e à China. Ao regressar publica “Da Índia”. Essa viagem à Índia o decepciona por não encontrar lá o que os pais idolatravam.

Enquanto isso Maria Bernoulli começa a ter problemas psíquicos. Hermann Hesse demonstra não ser capaz de lidar e viver com uma situação dessas. Chega à conclusão que, para dar continuidade à sua ocupação literária, precisa de sossego. Maria é internada num hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de parentes e amigos. Resolve mudar-se para a Suíça. Deixa a propriedade e seus bens em Gaienhofen, leva consigo apenas a sua escrivaninha, vai à Berna onde aloja-se na Casa Welti. Em 1914 publica “Rosshalde”, romance no qual fala do fracasso do matrimônio de um casal de artistas. A obra traz marcantes traços biográficos. Em toda a literatura alemã Hesse é o autor que mais traços autobiográficos incluiu em sua obra.

No início da Primeira Guerra Mundial, Hermann Hesse se engaja em projetos e serviços humanitários. Um de seus trabalhos foi a criação de um grupo que se ocupou com a remessa de livros para presos em campos de concentração. Em 1915 publica “Knulp”, obra na qual o autor mostra ao leitor o quanto o homem depende de convenções sociais.

Em 1916 Hermann Hesse é acometido de uma crise nervosa que o prende por meses no sanatório Sonnmatt, em Lucerna, na Suíça. Tem início uma profunda amizade com o psicanalista J. B. Lang. Nesse estado de espírito publica um artigo contra a guerra sob o pseudônimo de Emil Sinclair e começa a ocupar-se regularmente com a pintura aquarelista.

O guru dos hippies

Hermann Hesse
Em 1919 publica “O Regresso de Zaratustra”, obra dirigida aos jovens: “O mundo não está aí para ser melhorado. Mas vocês estão aí para serem vocês mesmos. Vocês estão aí a fim de que este mundo sombrio, com esse acorde e com esse tom de vocês, fique mais rico. Seja você mesmo e o mundo tornar-se-á mais belo e mais rico”. Paralelamente Hermann Hesse muda-se para a Casa Camuzzi, em Montagnola, no Tessino, onde permanece até 1931.

Ainda em 1919 Hesse publica “Demian”, sob o pseudônimo de Emil Sinclair, e faz amizade com Ruth Wenger, com a qual acaba se casando. O casamento dura apenas três anos, de 1924 a 1927. Em 1921 Hesse começa a escrever “Sidarta”, o qual teve que interromper em virtude de um bloqueio psíquico. Hesse cai em profunda depressão. Começa a sua segunda análise psicanalítica, dessa vez, com o renomado psiquiatra C. G. Jung. Em 1922 termina e publica “Sidarta”, sobre o qual Henry Miller escreveu: “Sidarta é, para mim, um medicamento mais eficiente do que o Novo Testamento”.

Nesse entretempo Hesse publicou várias obras, entre elas, “O Lobo da Estepe” (1927). No mesmo ano Ninon Dolbin aloja-se na Casa Camuzzi, aparentemente como secretária. Em 1931 Hesse começa a escrever “O Jogo das Contas de Vidro” e se casa com Ninon Dolbin. Em 1931 Hesse muda-se para a “Casa Rossa”, uma mansão construída por um abastado admirador, H.C. Bodmer, que deu a Hesse o direito de ocupá-la até a sua morte. No muro da porta de entrada Hermann Hesse prendeu uma tabuleta com os seguintes dizeres: “Não recebo visitas”. Certo dia subiu à montanha seu amigo Thomas Mann. Este, ao ler os dizeres, deu meia-volta. Conta-se que nunca mais os dois escritores voltaram a se encontrar. A “Casa Rossa” hoje é propriedade particular.

Em 1943, doze anos após iniciá-lo, publica sua obra máxima “O Jogo das Contas de Vidro”. Em 1946 Hermann Hesse é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.

Não é possível comentar todas as obras de Hesse num texto relativamente breve. Além disso, há resenhas de seus livros em mais de cinquenta línguas. Por esta razão procuramos dar especial ênfase ao homem Hermann Hesse, pois é imprescindível conhecê-lo para podermos compreender e fruir o conteúdo, a beleza e a profundidade de sua obra.

Hermann Hesse ainda era vivo e sua obra já tinha sido traduzida para 34 idiomas. “Parece-me que os japoneses são os que melhor me entendem e os que menos me entendem são os americanos. Mas esse também não é o meu mundo. Nunca chegarei lá”, comentou logo após ter recebido o Nobel. Em meados dos anos 1950, o editor Siegfried Unseld recomprou os direitos sobre a obra de Hermann Hesse por 2 mil dólares. Assinado o contrato, Unseld e o antigo editor foram para o almoço, durante o qual o americano disse: “Se o sr. quiser rescindir esse contrato tão desvantajoso, podemos cancelá-lo”. Unseld não o cancelou e, passados dez anos, as obras de Hermann Hesse tornaram-se su­cesso também nos Estados Unidos quando a juventude hippie, à procura de novas alternativas de vida, confrontou-se com os textos de Hesse, este passou a ser visto como uma espécie de guru. Outro fator que contribuiu para o sucesso de Hesse nos Estados Unidos foi a banda “Steppenwolf” (Lobo da Estepe), que adotou o nome do livro e fez com que a obra influenciasse várias gerações.

Hermann Hesse, além de dedicar-se a seus textos, empenhava grande parte de seu tempo em responder cartas de leitores. Nesse particular, supera Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o grande autor clássico da literatura alemã, que escreveu mais de 30 mil cartas. Hermann Hesse escreveu mais de 40 mil, a maioria delas ainda estão preservadas. Não apenas trocava correspondência com renomados homens da literatura, como Thomas Mann, Stefan Zweig e Romain Rolland, mas também com políticos, chefes de Estado e com milhares de leitores que lhe escreviam pedindo conselhos ou ajuda para problemas da alma humana. Hesse fazia questão de responder pessoalmente às cartas que recebia. Ao responder às perguntas pessoais de leitores, Hesse costumava apelar à moral, à ética, à tolerância e aos fundamentos básicos do cristianismo do qual tentara livrar-se em Maulbronn.

Até agora apenas parte de suas cartas foram publicadas em dois volumes, está previsto o lançamento de uma edição completa de sua correspondência que deverá abranger um total de dez volumes.

Apenas “ler” Hesse não é suficiente. Para entendê-lo é necessário “encontrá-lo” e a melhor maneira de encontrá-lo é aprofundar-se em sua biografia. Em Calw, sua cidade natal, o município criou o Museu Hesse, no qual encontra-se grande parte de seu acervo. Sua casa em Gaienhofen, que hoje está como ele a deixara, também foi transformada em museu, e em Montagnola, nas montanhas do Lago Lugano, encontra-se a terceira parte de seu acervo.

A única arma que Hesse usou foi a caneta

calw2 
É oportuno mencionar um detalhe pouco conhecido da vida de Hermann Hesse: o autor foi grande admirador e profundo conhecedor dos contistas da Renascença Italiana. Em 1920 Hesse selecionou e publicou uma coletânea de 16 contos de autores italianos sob o título “Novellino”, na qual encontram-se cinco títulos de Franco Sacchetti, quatro de Giovanni Fiorentino, dois de Masuccio Salernitano, um de Nicolau Maquiavel, e quatro de autores anônimos. O título de Nicolau Maquiavel é “Belfagor” e foi Hesse que, pela primeira vez, publicou-o em língua alemã. O “Novellino” de Hesse foi republicado na Alemanha numa versão atualizada em 2012.

Otto Maria Carpeaux, ao caracterizar Hesse, escreveu: “A vida de Hesse foi um caminho de sucessivas autolibertações, através de revoltas do individualista contra a escola, contra a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a religião e o Estado querem impor”. A caracterização de Carpeaux é correta. Falta apenas um detalhe: a única arma que Hesse usou foi a caneta.

Quem caminha pelas ruas de Calw encontra Hesse como eu o encontrei. Lá está ele, no meio da ponte sobre o Nagold, seu lugar preferido quando menino, em estátua de bronze em tamanho natural, com o seu inseparável chapéu à mão. O escultor deu-lhe um rosto tranquilo, talvez até feliz, e quando nos acercamos temos a impressão que Hesse fala conosco: “Desci por estes barrancos do rio quando menino junto com outros de minha idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde regressávamos a pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto parece dizer: “Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo”.

Hermann Hesse morreu em 9 de agosto de 1962, em Montagnola, aos 75 anos. Transcorridos 50 anos, a data foi devidamente lembrada em 9 de agosto de 2012 com cerimônias, festejos, palestras e conferências realizadas durante todo o último trimestre do cinquentenário de seu falecimento ao redor do mundo. Suas obras continuam vivas e hoje, mais do que no passado, o número de leitores e admiradores de Hermann Hesse aumenta em todos os quadrantes. Especialmente na Europa, Estados Unidos, Japão, China, Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um autor de interesse universal. Talvez seja esta a verdadeira razão pela qual Hermann Hesse nos cumprimenta com um sorriso feliz lá do alto da ponte de sua cidade natal.

As crises da vida e a autorealização

 Leonardo Boff*
 
"A realização pessoal não consiste na quantificação de capacidades pessoais que podem ser realizadas, mas na qualidade, no modo como fazemos bem aquilo que a vida situada nos cobra. A quanti­ficação, a busca de títulos, de cursos sem fim, pode significar em muitas pesoas a fuga do encontro com a tarefa de sua vida: de se medir consigo mesmo, com seus desejos, com suas limitações, com seus problemas, com suas positividades e negatividades e integrá-los criativamente".

Quase só se fala de crise e crise das crises, aquela da Terra e da vida, ameaçadas de desaparecer como acenou o Papa Francisco em sua encíclica sobre “o cuidado da Casa Comum”. Mas tudo o que vive é marcado por crises: crise do nascimento, da juventude, da escolha do parceiro ou parceira para a vida, crise da escolha da profissão, crise do “demônio do meio-dia”como a chamava Freud que é a crise dos quarenta anos quando nos apercebemos que já estamos chegando ao topo da montanha e começa a sua descida. Por fim a grande crise da morte quando passamos do tempo para a eternidade.

O desafio posto a cada um não é como evitar as crises. Elas são inerentes à nossa condição humana. A questão é como as enfrentamos: que lições tiramos delas e como podemos crescer com elas. Por aí passa o caminho de nossa auto-realização e de nossa maturidade como seres humanos.

Toda situação é boa, cada lugar é excelente para nos medirmos conosco mesmo e mergulharmos em nossa dimensão profunda e deixar emergir o arquétipo de base que carregamos (aquela tendência de fundo que sempre nos martela) e que através de nós quer se mostrar e fazer sua história que é também a nossa verdadeira história. Aqui ninguém pode substituir o outro. Cada um está só. É a tarefa fundamental da existência. Mas sendo fiel neste caminhar, a pessoa já não está mais só. Construíu um Centro pessoal a partir do qual pode se encontrar com todos os demais caminhantes. De solitário faz-se solidário.

A geografia do mundo espiritual é diferente daquela do mundo físico. Nesta os países se tocam pelos limites. Na outra, pelo Centro. É a indiferença, a mediocridade, a ausên­cia de paixão na busca de nosso EU profundo que nos distancia de nosso Centro e dos outros e assim perdemos as afinidades, embora estejamos ao lado deles, no meio deles e pretendendo estar a serviço deles.

Qual é o melhor serviço que posso prestar às pessoas? É ser eu mesmo como ser-de-relações e por isso sempre ligado aos outros, ser que opta pelo bem para si e para os outros, que se orienta pela verdade, ama e tem compaixão e misericórdia.

A realização pessoal não consiste na quantificação de capacidades pessoais que podem ser realizadas, mas na qualidade, no modo como fazemos bem aquilo que a vida situada nos cobra. A quanti­ficação, a busca de títulos, de cursos sem fim, pode significar em muitas pesoas a fuga do encontro com a tarefa de sua vida: de se medir consigo mesmo, com seus desejos, com suas limitações, com seus problemas, com suas positividades e negatividades e integrá-los criativamente. Foge no acúmulo do saber inócuo que mais ensoberbece e afasta dos outros do que nos amadurece para poder compreender melhor a nós mesmos e o mundo. A linguagem trái estas pessoas que dizem: sou eu que sei, sou eu que faço, sou eu que decido. É sempre o eu e nunca o nós ou a causa, comungada também por outros.

A realização pessoal não é obra tanto da razão que dis-corre sobre tudo, mas do espírito que é nossa capacidade de criar visões de conjunto e de ordenar as coisas em seu justo lugar e valor. Espírito é descobrir o sentido de cada situação. Por isso é próprio do espírito a sabedoria da vida, a vivência do mistério de Deus, decifrado em cada momento. É a capacidade de ser todo em tudo o que faz. Espiritualidade não é uma ciência ou uma técnica, mas um modo de ser inteiro em cada situação.

A primeira tarefa da realização pessoal é aceitar a nossa situação com seus limites e possibilidades. Em cada situação está tudo, não quantitativamente dis-tendido, mas qualitativamente recolhido como num Centro. Entrar nesse Centro de nós mesmos é encontrar os outros, todas as coisas e Deus. Por isso dizia a velha sabedoria da Índia: “Se alguém pensa corre­tamente, recolhido em seu quarto, seu pensamento é ouvido a milhares de quilômetros de distância”. Se quiseres modificar os outros, comece por modificar-te a ti mesmo.

Outra tarefa imprescindível para a realização pessoal é saber con-viver com o último limite que é a morte. Quem dá sentido à morte, dá sentido também à vida. Quem não vê sentido na morte também não descobre sentido na vida. Morte porém é mais que o último instante ou o fim da vida. A vida mesma é mortal. Em outras palavras, vamos mor­rendo lentamente, em prestações, porque quando nascemos começamos já a morrer, a nos desgastar e nos despedir da vida. Primeiro nos despedimos do ventre materno e morremos para ele. Depois nos despedimos da infância, da meninice, da juven­tude, da escola, da casa paterna, da idade adulta, de algumas de nossas tarefas, de cada momento que passa e por fim nos despedimos da própria vida.

Esta despedida é um deixar para trás não apenas coisas e situações, mas sempre um pouco de nós mesmos. Temos que nos desapegar, nos empobrecer e esvaziar. Qual o sentido disso tudo? Pura fatalidade irreformável? Ou não possui um sentido secreto? Despojamo-nos de tudo, até de nós mesmos no último momento da vida (morte), porque não fomos feitos para esse mundo nem para nós mesmos, mas para o Grande Outro que deve encher nossa vida: Deus! Deus vai, na vida, nos tirando tudo para nos reservar cada vez mais intensamente para si; pode até tirar-nos a certeza se tudo valeu a pena. Mesmo assim persistimos, crendo nas palavras sagradas:”Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração”(cf. 1 Jo 3,20 ). Quem conseguir incorporar as negatividades, mesmo injustas, em seu próprio Centro, este alcançou o mais alto grau de hominização e de liberdade interior.

As negatividades e as crises pelas quais passamos, nos dão esta lição: de nos despojar e nos preparar para a total plenitude em Deus. Então, como diz o místico Sâo João da Cruz: seremos Deus, por participação.
------------------------
 *Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Fonte: IHU online, 29/07/2015
Imagem da Internet

Pensamento binário

Vladimir Safatle* 
 
"É patético ter que receber afagos como "você faz o jogo da direita" todas as vezes que critica de forma dura os descaminhos do governo federal. Normalmente, tais afagos vêm de pessoas que procuram esconder sua capacidade de pensar criticamente sob a fantasia da luta constante e inglória contra as forças do atraso."

Ele cita o exemplo de G. Deleuze a ser meditado nos dias de hoje. O pensador francês "costumava mostrar a grandeza de seu pensamento fazendo algo que irritava mais de um de seus colegas. Mesmo sendo alguém vinculado à tradição do pensamento radical francês, ele não deixava de mostrar a genialidade de certos autores claramente conservadores, como Charles Péguy e Paul Claudel, ou de autores "moderados", como Henri Bergson. Era uma maneira de mostrar verdadeira abertura ao pensamento e à criação, independentemente de onde ela viesse".

Eis o artigo.

Há anos, escrevi aqui que um país em involução mental só consegue contar até dois. Seus debates organizam-se a partir de um polaridade simplória na qual nenhum pensamento um pouco mais elaborado é possível.
Tudo deve encaixar em dois conjuntos, sendo que um deles serve apenas para ser sumariamente descartado e esconjurado. Este é um dos aspectos daquilo que Christian Dunker chamou recentemente de "lógica do condomínio" a organizar a vida intelectual do país.

De fato, há algo de cômico em ter que ouvir cada vez mais frases como "Vá para Cuba" ou "Aqui não é a Coreia do Norte" todas as vezes que alguém defende políticas esquerdistas de combate à desigualdade social e de regulação econômica.

Não passa na cabeça destas pessoas que é possível ser radicalmente de esquerda e contrário, por exemplo, ao Estado degenerado que acabou sendo implantado em Cuba. Não, isso é muito complicado para alguém que, no fundo, só consegue pensar com as dicotomias mais primárias da Guerra Fria.

Da mesma forma, é patético ter que receber afagos como "você faz o jogo da direita" todas as vezes que critica de forma dura os descaminhos do governo federal. Normalmente, tais afagos vêm de pessoas que procuram esconder sua capacidade de pensar criticamente sob a fantasia da luta constante e inglória contra as forças do atraso.

Há meses, apareceu em uma livraria um dos títulos mais inacreditáveis que um livro poderia ter: "10 livros que estragaram o mundo". Entre eles estavam listados obras de Freud, Darwin, Lênin, Hitler, Nietzsche e Marx. Esta é a melhor síntese deste pensamento binário que nos assola nos dias atuais.
Não se trata de dizer que você discorda do encaminhamento de certas ideias. Trata-se de dizer que tais ideias "estragaram o mundo", que é melhor queimar os livros que as expressam, nunca mais lê-los, colocando-os ao lado de Hitler (que também gostava de falar de livros que estragaram o mundo e que mereciam ser queimados). Engraçado saber que livros que dizem que outros livros estragaram o mundo são o deleite de alguns.

Gilles Deleuze costumava mostrar a grandeza de seu pensamento fazendo algo que irritava mais de um de seus colegas. Mesmo sendo alguém vinculado à tradição do pensamento radical francês, ele não deixava de mostrar a genialidade de certos autores claramente conservadores, como Charles Péguy e Paul Claudel, ou de autores "moderados", como Henri Bergson. Era uma maneira de mostrar verdadeira abertura ao pensamento e à criação, independentemente de onde ela viesse. Eis um bom exemplo a meditar nos dias de hoje.
---------------------- 
* Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, 28-07-2015.
Fonte: IHU online, 29/07/2015
Imagem da Internet

Cientistas assinam petição contra “robôs assassinos”

Numa carta onde consta o nome do físico britânico Stephen Hawking, mil investigadores alertam para o perigo do desenvolvimento dos chamados “Sistemas de Armas Autónomas” - que dispensam a intervenção humana para dar a ordem de matar. Lembra-se do Terminator, em que as máquinas tomaram conta do mundo? Os especialistas dizem que armas assim são uma questão de “anos, não de décadas”

Contra os chamados “robôs assassinos”, mil cientistas assinam uma petição alertando para os perigos das armas que dispensam a intervenção humana na hora de matar. O físico britânico Stephen Hawking e o cofundador da Apple, Steve Wozniak, estão entre os especialistas que colocam o nome na carta aberta contra o fabrico deste tipo de armamento. O documento é apresentado esta terça-feira em Buenos Aires, durante a Conferência Internacional Conjunta sobre Inteligência Artificial.

Em causa está um tipo de tecnologia diferente da utilizada nos drones ou nos mísseis controlados por controlo remoto. Os cientistas falam em armas capazes de “procurar e eliminar pessoas que tenham certas características predefinidas”. Não existem, por enquanto, mas a tecnologia que as permite está já disponível.

Defensores da inteligência artificial como uma área “com grande potencial para beneficiar a humanidade de muitas formas”, aos cientistas preocupa a forma relativamente fácil com que se pode ter acesso ao fabrico deste armamento: com materiais não só mais simples que as tradicionais armas militares, como também mais baratos.

O seu desenvolvimento será uma questão “de anos, não de décadas”, escrevem os especialistas, tal como “será uma questão de tempo” (pouco), até aparecerem “no mercado negro e acabarem nas mãos de terroristas, ditadores ou senhores da guerra com vontade de levar a cabo uma limpeza étnica”.
A preocupação com os “robôs assassinos” levou também a ONU a debater o temaem abril, numa conferência que juntou vários investigadores para debater os Sistemas de Armas Autónomas Letais (LAWS, em inglês). Quer as Nações Unidas quer a atual petição dos cientistas visam alertar a comunidade internacional com vista à proibição do desenvolvimento deste tipo de armamento, cujos problemas éticos são evidentes. De quem é responsável quando um crime resulta de uma destas armas?
-----------
Reportagem por  Mafalda Ganhão 
Fonte: Expresso online, 28/07/2015- Jornal de Portugal.
 JUSTIN TALLIS / AFP / Getty Images

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Nietzsche em Sils-Maria

Mario Vargas Llosa*

O filósofo acreditava que apenas o ser humano independente fazia o progresso

    Quando Nietzsche veio pela primeira vez a Sils-Maria, no verão de 1879, era uma ruína humana. Sua visão se deteriorava rapidamente, as enxaquecas o atormentavam e as doenças o haviam obrigado a renunciar à sua cátedra na Universidade da Basileia, depois de lecionar ali por dez anos. Esta era na época uma remota região alpina no alto de Engadina, onde os forasteiros mal conseguiam chegar. Foi amor à primeira vista: ficou deslumbrado pelo ar cristalino, o mistério e o vigor das montanhas, as cascatas rumorosas, a serenidade de lagos e lagoas, os esquilos e até os enormes gatos monteses.

    Começou a se sentir melhor, escreveu cartas exultantes de entusiasmo pelo lugar e, desde então, voltaria por sete anos consecutivos a Sils-Maria nos verões, por temporadas de três ou quatro meses. Sempre tinha sido um bom caminhante, mas, aqui, andar, subir encostas íngremes, meditar em montes nevados varridos pelos ventos, onde às vezes aterrissavam as águias, rabiscar os aforismos em seus livretos, um de seus meios favoritos de expressão, se tornou uma forma de viver. Em Sils-Maria escreveria ou conceberia seus livros mais importantes, A Gaia Ciência, Assim Falou Zaratustra, Além do Bem e do Mal, Crepúsculo dos Ídolos e O Anticristo.

    Alojava-se na casa —que era também uma loja – do prefeito do povoado e pagava um franco por dia pelo modesto quartinho onde dormia. A casa de Nietzsche é agora um museu e sede da fundação que leva o nome do filósofo. Vale a pena visitá-la, sobretudo se o cicerone no dia for seu amável diretor, Peter André Bloch, que sabe tudo sobre a obra e a vida de Nietzsche e que organiza os seminários e colóquios que atraem a este belo povoado professores, ensaístas e filósofos de todo o mundo. A casa foi totalmente restaurada e oferece uma soberba coleção de fotografias, manuscritos —entre eles poemas e composições musicais de Nietzsche—, primeiras edições e testemunhos de visitantes ilustres, como Thomas Mann, Adorno, Paul Celan, Hermann Hesse, Robert Musil e até o inesperado Pablo Neruda, que escreveu aqui um poema. Boris Pasternak não pôde vir, mas enviou de seu confinamento soviético um longo texto fundamentando sua admiração pelo filósofo.

    O único cômodo que não foi restaurado é o dormitório de Nietzsche. Surpreende pelo ascetismo. Uma caminha estreita, uma mesa rústica, um jarro e uma bacia de água. Testemunhos da época dizem que então estava cheia de livros. Mas a verdade é que Nietzsche passava muito mais tempo ao ar livre do que dentro de casa, e pensava e escrevia andando ou descansando entre as longuíssimas caminhadas que fazia diariamente. Duravam cerca de seis horas por dia e às vezes oito e até dez. Agora são mostradas aos turistas algumas rotas que, garantem os guias, eram suas preferidas, mas é pura fábula. Em primeiro lugar, a paisagem agora é diferente, civilizada pela afluência em massa de esquiadores durante o inverno, a abertura de estradas e os chalés esparramados ao redor das pistas de esqui. Nos tempos de Nietzsche esta era ainda uma terra selvagem, sem estradas, abrupta. Depois de uma difícil caminhada em meio aos pinheirais e na neve, quase à sombra, abria-se de repente uma paisagem de Éden, como a que inspiraria as bravatas e filípicas de Zaratustra.

    Muitas vezes Nietzsche se perdeu nessas alturas desoladas e, em outras, dormiu e teve sonhos grandiosos ou terríveis que evocou em seus poemas e em sua música. Sempre levava a essas caminhadas um pequeno pacote de frutas e biscoitos, e os caderninhos listrados que sua irmã Elizabeth lhe enviava (podem ser folheados no museu), racista fanática que, para justificar a caluniosa descrição segundo a qual Nietzsche foi um precursor do nazismo, falsificou seus manuscritos e fabricou uma edição espúria de A Vontade de Poder. Em uma das prateleiras da Fundação se exibe a célebre foto de Hitler visitando, acompanhado por Elizabeth, o Memorial de Nietzsche em Weimar.
    Muitas das diatribes de Nietzsche contra a religião e, sobretudo, o cristianismo, a ideia de que proclamar a vida terrena é só uma passagem no sentido do além, onde se vive a vida verdadeira, e o maior obstáculo para que os seres humanos fossem soberanos, livres e felizes e se mantivessem condenados a uma escravidão moral que os privava de criatividade, espírito crítico, conhecimentos científicos e iniciativas artísticas, foram gestadas aqui, em Sils-Maria. Mas, curiosamente, ao contrário de uma das imagens mais persistentes de Nietzsche, a de um homem antissocial, sombrio e ensimesmado, resmungão e colérico, pelo menos nos sete verões que aqui passou deixou entre os vizinhos uma imagem radicalmente diferente: a de um homem risonho e simpático, que brincava com as crianças, divertia-se com as piadas dos moradores e evitava a boataria e as discussões da vizinhança.

    É verdade que nunca foi um fascista nem um racista; um setor do museu documenta em detalhes sua boa relação com muitos intelectuais e comerciantes judeus e as vezes que escreveu criticando o antissemitismo. Mas também é verdade que nunca foi um democrata nem um liberal. Detestava as multidões e, em especial, as massas da sociedade industrial, nas quais via seres alienados por essa “psicologia de vassalos” engendrada pelo coletivismo, que anulava o espírito rebelde e matava a individualidade. Sempre foi um individualista recalcitrante; acreditava que só o ser humano não gregário, independente, segregado da tribo, que a enfrenta, era capaz de fazer progredir a ciência, a sociedade e a vida em geral. Sua terrível sentença, que era também um prognóstico sobre a cultura que prevaleceria no futuro imediato —“Deus está morto”— não era um grito de desespero, mas de otimismo e esperança, a convicção de que, no mundo futuro, libertados das correntes da religião e da mitologia alienante do além, os seres humanos trabalhariam para tirar o paraíso das névoas ultraterrenas e o trariam para cá, para a história vivida, a realidade cotidiana. Então desapareceriam os estúpidos rancores que tinham recheado a história humana de guerras, cataclismas, abusos, sofrimentos, selvagerias, e surgiria uma fraternidade universal na qual a vida, por fim, valeria a pena ser vivida por todos.

    Era uma utopia não menos irreal do que a das religiões que Nietzsche abominava e que faria correr também muitíssimo sangue e dor. Ao fim e ao cabo, seria a democracia, que o filósofo de Sils-Maria tanto desprezou, pois a identificava com o conformismo e a mediocridade, a que mais contribuiria para aproximar os seres humanos desse ideal nietzschiano de uma sociedade de homens e mulheres livres, dotados de espírito crítico, capazes de conviver com todas as suas diferenças, convicções ou crenças, sem se odiar nem se matar.

    Sils-Maria, julho de 2015
    -----------
    * Escritor Peruano. Jornalista.
    Fonte:  http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/26/opinion/1437930177_592638.html

    sexta-feira, 24 de julho de 2015

    Prof. Dr. Martin Dreher dá aula de história em discurso de agradecimento

     
    Escolhido por unanimidade pela Comissão Julgadora para receber a premiação Distinção Imigração Alemã 2015 pela Região Metropolitana de Porto Alegre, o catedrático da Unisinos agradeceu com magistral aula de história ancestral autobiográfica.

    Amigos, familiares,

    Inicialmente, quero agradecer pela distinção e premiação feita a minha pessoa. Sou pesquisador.

    Pesquisas, não raro, estão orientadas na história do pesquisador. É o meu caso. Vovô Arthur Dreher era ourives. Em 1912, a depressão alemã fê-lo migrar ao Brasil. Encontrou Not. Vovó Guilhermina era bisneta de Johann Peter Müller e de Maria Margareta Schlemmer. Haviam sido servos da gleba até sua emancipação. Vinham do Principado de Birkenfeld. Maria Margareta morreu de inanição, na viagem do Rio para Porto Alegre. Johann Peter da mesma “doença” quatro semanas após chegar à Feitoria/São Leopoldo, em 15/02/1826. O capitão do navio lhes negara comida para vendê-la em Porto Alegre. Entre as crianças sobraram Jacob Philipp, com sete anos, depois avô de Guilhermina. Provavelmente, Jacob Philipp foi criado por Franz Peter Müller e Maria Elisabeth Konrad, também naturais de Nohen/Birkenfeld como o falecido Johann Peter. Jakob teve contato com as primas Maria Elisabeth, mais tarde esposa de Andreas Mentz e com Maria Magdalena, depois esposa de Johann Friedrich Schreiner, outro imigrante. Entre os muitos filhos que as duas meninas tiveram estão Jakobine, depois casada com João Jorge Maurer, e Marie Louise, depois casada com Jakob Schilling, mais um imigrante. Jakobine foi trucidada em agosto de 1874, junto ao Ferrabrás em Sapiranga. Marie Louise tornou-se esposa de proprietário de companhia de navegação que transportava mercadorias pelo rio Caí. Sua filha Wilhelmine tornou-se mãe de vovó Guilhermina, após seu casamento com Carlos Martin Müller, mestre funileiro, radicado em Montenegro, filho daquele menino sobrevivente de 1825, Jacob Philipp, imigrante órfão.

    Para que poucos pudessem viver bem, muitos tiveram que migrar. Muitos tiveram que migrar em busca de vida digna. O Duque de Oldenburg permitiu que Von Schäffer recrutasse súditos seus em Birkenfeld, onde por três anos não se colhera batatas e o Grossbauer que lhe pagava impostos poderia ir à falência. O Grão-Duque de Mecklenburg permitiu que Von Schäffer levasse ao Brasil seus súditos que haviam sido tirados da terra e substituídos por máquinas pelos Junker. Os Junker também os haviam colocado em casas de correção para que, pobres, não mendigassem, vagassem ou cometessem pequenos furtos para alimentar seus filhos. Os que migraram em busca de vida digna são meus antepassados, motivação de minhas pesquisas. Ao migrar, buscaram responder aos que diziam que pobre é quem não quer trabalhar. Mas, como trabalhar, se não há quem ofereça condições para o trabalho?

    No Brasil, encontraram acolhida parcial. Protestantes que eram tiveram que lutar por reconhecimento pleno. Todos foram alvo de xenofobia. Mesmo o lugar-tenente do Schinderhannes foi aqui acolhido e seus filhos se tornaram fundadores de clube germânico em Porto Alegre.

    A antiga pátria por eles só se interessou, quando já tinham condições de dela adquirir produtos. Aí passaram a ser “Auslandsdeutsche”.

    Passados 191 anos, os territórios de origem se veem confrontados com migrantes. Repetem lá a xenofobia que enfrentamos cá. Falam em nacionalização dos migrantes e reclamam destes por não aprenderem o idioma pátrio. Os mais afoitos voltam a temer pela pureza da raça e da língua.

    Passados 191 anos, verifico que descendo de pobres e miseráveis que experimentaram as três máximas de quem migra: Tod, Not, Brot (morte, necessidade, pão). Se hoje amasso meu pão com liberdade devo-o aos que tiveram a coragem de migrar, que aqui puderam exercer profissões que não mais podiam exercer na terra ancestral, mesmo que sob condições difíceis. Honro pai e mãe que migraram, mas também tenho compromisso em relação aos que migram, dando ouvidos aos profetas de Israel que advertem que se cuide “do órfão, da viúva e do estrangeiro”. Passados 191 anos cabe-me lembrar à terra que um dia expulsou meus ancestrais que cuide “do órfão, da viúva e do estrangeiro”, que receba o turco, o sírio e não oprima o grego.

    Comemorar é relembrar grandes e pequenos feitos, também os insignificantes e os pequeninos. Johann Peter Müller e Maria Margareta Schlemmer também foram importantes. Não abandonaram Hänsel e Gretel na floresta, mas trouxeram-nos ao Brasil para que aqui derrubassem a mata e construíssem pátria com maiores possibilidades.

    Grato por distinguirem a história de descendente de servo da gleba.
    ---------------------
    Fonte:http://www.brasilalemanha.com.br/novo_site/noticia/prof-dr-martin-dreher-da-aula-de-historia-em-discurso-de-agradecimento/6424#sthash.qgRjOJuq.dpuf
    Imagem da Internet

    Prof. Dr. Martin Dreher dá aula de história em discurso de agradecimento

    Escolhido por unanimidade pela Comissão Julgadora para receber a premiação Distinção Imigração Alemã 2015 pela Região Metropolitana de Porto Alegre, o catedrático da Unisinos agradeceu com magistral aula de história ancestral autobiográfica.
    Sr. Décio Krohn, Presidente da FECAB
    Sr. Dênis Gerson Simões, Presidente do 25 de Julho
    Sr. Sílvio A. Rockenbach, Presidente da Comissão das Comemorações da Imigração Alemã
    Sr. Sérgio Gilberto Dienstmann, Presidente do Instituto São Leopoldo 2014
    Sr. Claudio José Weber
    Amigos, familiares,
    Inicialmente, quero agradecer pela distinção e premiação feita a minha pessoa. Sou pesquisador.
    Pesquisas, não raro, estão orientadas na história do pesquisador. É o meu caso. Vovô Arthur Dreher era ourives. Em 1912, a depressão alemã fê-lo migrar ao Brasil. Encontrou Not. Vovó Guilhermina era bisneta de Johann Peter Müller e de Maria Margareta Schlemmer. Haviam sido servos da gleba até sua emancipação. Vinham do Principado de Birkenfeld. Maria Margareta morreu de inanição, na viagem do Rio para Porto Alegre. Johann Peter da mesma “doença” quatro semanas após chegar à Feitoria/São Leopoldo, em 15/02/1826. O capitão do navio lhes negara comida para vendê-la em Porto Alegre. Entre as crianças sobraram Jacob Philipp, com sete anos, depois avô de Guilhermina. Provavelmente, Jacob Philipp foi criado por Franz Peter Müller e Maria Elisabeth Konrad, também naturais de Nohen/Birkenfeld como o falecido Johann Peter. Jakob teve contato com as primas Maria Elisabeth, mais tarde esposa de Andreas Mentz e com Maria Magdalena, depois esposa de Johann Friedrich Schreiner, outro imigrante. Entre os muitos filhos que as duas meninas tiveram estão Jakobine, depois casada com João Jorge Maurer, e Marie Louise, depois casada com Jakob Schilling, mais um imigrante. Jakobine foi trucidada em agosto de 1874, junto ao Ferrabrás em Sapiranga. Marie Louise tornou-se esposa de proprietário de companhia de navegação que transportava mercadorias pelo rio Caí. Sua filha Wilhelmine tornou-se mãe de vovó Guilhermina, após seu casamento com Carlos Martin Müller, mestre funileiro, radicado em Montenegro, filho daquele menino sobrevivente de 1825, Jacob Philipp, imigrante órfão.
    Para que poucos pudessem viver bem, muitos tiveram que migrar. Muitos tiveram que migrar em busca de vida digna. O Duque de Oldenburg permitiu que Von Schäffer recrutasse súditos seus em Birkenfeld, onde por três anos não se colhera batatas e o Grossbauer que lhe pagava impostos poderia ir à falência. O Grão-Duque de Mecklenburg permitiu que Von Schäffer levasse ao Brasil seus súditos que haviam sido tirados da terra e substituídos por máquinas pelos Junker. Os Junker também os haviam colocado em casas de correção para que, pobres, não mendigassem, vagassem ou cometessem pequenos furtos para alimentar seus filhos. Os que migraram em busca de vida digna são meus antepassados, motivação de minhas pesquisas. Ao migrar, buscaram responder aos que diziam que pobre é quem não quer trabalhar. Mas, como trabalhar, se não há quem ofereça condições para o trabalho?
    No Brasil, encontraram acolhida parcial. Protestantes que eram tiveram que lutar por reconhecimento pleno. Todos foram alvo de xenofobia. Mesmo o lugar-tenente do Schinderhannes foi aqui acolhido e seus filhos se tornaram fundadores de clube germânico em Porto Alegre.
    A antiga pátria por eles só se interessou, quando já tinham condições de dela adquirir produtos. Aí passaram a ser “Auslandsdeutsche”.
    Passados 191 anos, os territórios de origem se veem confrontados com migrantes. Repetem lá a xenofobia que enfrentamos cá. Falam em nacionalização dos migrantes e reclamam destes por não aprenderem o idioma pátrio. Os mais afoitos voltam a temer pela pureza da raça e da língua.
    Passados 191 anos, verifico que descendo de pobres e miseráveis que experimentaram as três máximas de quem migra: Tod, Not, Brot (morte, necessidade, pão). Se hoje amasso meu pão com liberdade devo-o aos que tiveram a coragem de migrar, que aqui puderam exercer profissões que não mais podiam exercer na terra ancestral, mesmo que sob condições difíceis. Honro pai e mãe que migraram, mas também tenho compromisso em relação aos que migram, dando ouvidos aos profetas de Israel que advertem que se cuide “do órfão, da viúva e do estrangeiro”. Passados 191 anos cabe-me lembrar à terra que um dia expulsou meus ancestrais que cuide “do órfão, da viúva e do estrangeiro”, que receba o turco, o sírio e não oprima o grego.
    Comemorar é relembrar grandes e pequenos feitos, também os insignificantes e os pequeninos. Johann Peter Müller e Maria Margareta Schlemmer também foram importantes. Não abandonaram Hänsel e Gretel na floresta, mas trouxeram-nos ao Brasil para que aqui derrubassem a mata e construíssem pátria com maiores possibilidades.
    Grato por distinguirem a história de descendente de servo da gleba.
    - See more at: http://www.brasilalemanha.com.br/novo_site/noticia/prof-dr-martin-dreher-da-aula-de-historia-em-discurso-de-agradecimento/6424#sthash.RdgkZrHs.dpuf

    terça-feira, 21 de julho de 2015

    Um livro sobre os intelectuais conformistas

     Juremir Machado da Silva*
     
    O sociólogo francês Dominique Wolton é conhecido por sua espontaneidade. Beija, abraça, aperta as bochechas das pessoas e começa conversas telefônicas com amigos gritando “salaud, conard”. Canalha, imbecil, cretino! Wolton costuma dizer: “Ninguém é mais covarde do que os intelectuais”. Exagero? Há intelectuais corajosos. Mas essa é a marca dos intelectuais?

    Vai sair no Brasil um livro, de Michel Maffesoli e sua mulher, Hélène Strohl, sobre esse delicado tema: O conformismo dos intelectuais (Sulina; tradução de Tânia do Valle Tschiedel). Há coisas que só existem no Brasil? O livro mostra que a França pode ser muita parecida conosco ou pior: privilégios, mesmos vícios, mesmas disputas de poder. Vale conferir um fragmento.

    Strohl: “O alto funcionário, cedo ou tarde, salta uma etapa e tenta a eleição, apesar de que aí também a administração seja facilmente manobrável, e o funcionário que quer investir seu tempo em sua carreira eleitoral não é demitido; ele pode utilizar suas férias pagas, sua conta poupança e até se colocar um ou dois meses em disponibilidade, se tiver recursos monetários pessoais ou algum outro sustento. Se perder, ele se reintegra imediatamente ao seu posto, que estava bem guardado para ele. Se for eleito, ele se beneficiará da diminuição de carga horária. Exemplo: um vice-presidente de conselho regional e, ao mesmo tempo, prefeito de uma cidadezinha pode, assim, trabalhar em tempo parcial; um presidente de conselho geral se beneficiará de uma diminuição equivalente a 90% do tempo”. Hummm!

    Uma barbadinha? Qual a consequência? “Isso significa que esses funcionários que trabalham 50% e mesmo 10% serão pagos com 100%, vantagens incluídas, e que, certamente, se houver uma reviravolta e eles perderem em uma próxima ocasião, terão adquirido progressões e direitos equivalentes aos daqueles que trabalharam em tempo integral. Somente os professores de universidade têm um status mais vantajoso em relação à carreira política porque eles podem acumular, qualquer que seja seu mandato, inclusive nacional, sua função eletiva e seu emprego, exercer este também, ou não, segundo suas obrigações, e acumular as remunerações e vantagens das duas carreiras. Georges Frèche foi professor de direito toda sua vida e Raymond Barre ‘ensinou’ economia mesmo quando era primeiro-ministro!” Hummm!

    Como reage a população, o dito cidadão comum ou contribuinte, pagador de impostos, a essa situação “especial”? “Esses privilégios pouco conhecidos colaboram com o espírito antifuncionário público e antipolítico, pois, imaginemos as dificuldades de um dono de garagem, de um médico particular, mesmo de um advogado (que abandonará seu escritório), de um tabelião, de uma secretária, de uma fonoaudióloga ou de qualquer assalariado privado ao interromper assim sua carreira para retomá-la três meses mais tarde ou cinco anos depois?” Hummmm!

    Esse livro, em tom de panfleto, incomoda mais do que quatro elefantes na França dos socialistas.

    Maffesoli questiona do politicamente correto de conveniência ao compadrismo.

    Pensar é comprar briga. Intelectual que não polemiza descumpre o seu papel.

    Especialmente quando se burocratiza e passa a gostar de fazer o papel de feitor do poder.

    Ou, como dizia Antônio Gramsci, “funcionário da superestrutura”.
    -------------
    * Sociólogo. Escritor.
    Fonte: Correio do Povo online, 21/07/2015
    Imagem da Internet

    segunda-feira, 20 de julho de 2015

    Para entender o fenômeno da crise

    Leonardo Boff*
     
    Raramente na história houve tanta acumulação de situações de crise como no atual momento. Algumas são conjunturais e superáveis. Outras são estruturais e exigem mudanças profundas, como por exemplo, a reforma política e tributária brasileira. Mas há uma crise que se apreenta sistêmica e que recobre toda a Terra e a humanidade. Ela é ecológico-social. A percepção geral é que assim como a Terrra viva se encontra não pode continuar, pois pode nos levar a um quadro de tragédia com a dizimação de milhões de vidas humanas e de porções significativas da biodiversidade. Em sua encíclia sobre “o cuidado da Casa Comum” o Papa Francisco diz sem torneios:”o certo é que o atual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista”(n.61). Em sua peregrinação pelos países mais pobres da América Latina, Equador, Bolívia e Paraguai, o discurso de mudança estrutural e da exigência de um novo estilo de produzir, de consumir e de habitar a Casa Comum foi repetidamente afirmado como algo improstergável.

    A crise sistêmica é grave porque ela carrega dentro de seu bojo a possibilidade da destruição da vida sobre o planeta e eventualmente o desaparecimento da espécie humana. Os instrumentos já foram montados. Basta que surja um conflito de maior intensidade ou um louco fundamentalista tipo o ex-presidente Busch para abrir as portas do inferno nuclear, químico ou biológico a ponto de não termos nenhum sobrante para contar a história.         Não podemos subestimar a gravidade desta última crise sistêmica e global. A atual crise brasileira é um pálido reflexo da crise maior planetária. Mas mesmo assim é desastrosa para todos, afetando especialmente aqueles sobre cujos ombros se colocou o maior onus dos ajustes fiscais para sair ou aliviar a crise: os trabalhadores e os aposentados.
    Comungamos com a esperança do Papa Francisco: há no ser humano um capital de inteligência e de meios que nos “ajudam a sair da espiral de autodestruição em que estamos afundando”(n.163). E finalmente há Alguém maior, senhor dos destinos de sua criação que é “o amante da vida”(Sb 11,26). Ele não permitirá que nos exterminemos miseravelmene.

    É neste contexto que caba um aprofundamento da natureza da crise para sairmos melhores dela. Desde o advento do existencialismo, especialmente com Sören Kierkegaard, a vida é entendida como processo permanente de crises e de superação de crises. Ortega y Gasset num famoso ensaio de 1942, com o título “Esquemas das crises” mostrou que a história, por causa de suas rupturas e retomadas, possui a estrutura da crise. Esta obedece à seguinte lógica: (1) a ordem dominante deixa de realizar um sentido evidente; (2) reinam dúvida, ceticismo e uma crítica generalizada; (3) urge uma decisão que cria novas certezas e um outro sentido; mas como decidir se não se vê claro? mas sem decisão não haverá saida; (4) mas tomada uma decisão, mesmo sob risco, abre-se, então, novo caminho e outro espaço para a liberdade. Superou-se a crise. Nova ordem pode começar.

    A crise representa purificação e oportunidade de crescimento. Não precisamos recorrer ao idiograma chinês de crise para saber desta significação. Basta nos remeter ao sânscrito, matriz de nossas linguas ocidentais.

    Em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De kri vem crisol, elemento com o qual limpamos ouro das gangas e acrisolar que quer dizer depurar e decantar. Então, a crise representa um processo critico, de depuração do cerne: só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece.

    Ao redor e a partir deste cerne se constrói uma outra ordem que representa a superação da crise. Ela se traduzirá num curso diferente das coisas. Depois, seguindo a lógica da crise, esta ordem também entrará em crise. E permitirá, após processo crítico de acrisolamento e purificação, a emergência de nova ordem. E assim sucessivamente, pois essa é a dinâmica da história.

    A crise possui também uma dimensão pessoal, em várias situações da vida e a maior de todas, a crise da morte. A crise possui também uma dimensão cósmica que é o fim do universo que para nós não acaba na morte térmica mas numa incomensurável explosão e implosão para dentro de Deus.

    Entretanto, todo processo de purificação não se faz sem cortes e rupturas. Dai a necessidade da de-cisão. A de-cisão opera uma cisão com o anterior e inaugura o novo. Aqui nos pode ajudar o sentido grego de crise.

    Em grego krisis, crise, significa a decisão tomada por um juiz ou um médico. O juiz pesa e sopesa os prós e os contras e o médico ausculta os vários sintomas da doença. À base deste processo ambos tomam suas decisões pelo tipo de sentença a ser proferida ou pelo tipo de doença a ser combatida. Esse processo decisório é chamado crise.

    O Brasil vive, há séculos, protelando suas crises por faltar às lideranças ousadia histórica de tomar decisões que cortem com o passado perverso. Sempre se fazem conciliações negociadas a pretexto da governabilidade. Desta forma sutilmente se preservam os privilégios das elites e novamente as grandes maiorias são condenadas continuar na marginalidade social.

    A crise do capitalismo é notória. Mas nunca se fazem cortes estruturais que inaugurem nova ordem econômica. Sempre se recorre a ajustes que preservam a lógica exploradora de base, como ocorreu recentemente com a Grécia. Bem disse Platão em meio à crise da cultura grega: “as coisas grandes só acontecem no caos e na krisis”. Com a de-cisão, o caos e a crise desaparecem e nasce nova esperança.
    Então se inicia novo tempo que, esperamos, seja mais integrador, mais humanitário e mais cuidador da Casa Comum.
    -----------------------
    * Teólogo. Escritor.
    Fonte:  https://leonardoboff.wordpress.com/ 20/07/2015
    Imagem da Internet
    1. Boff fez um DVD Crise: chance de crescimento, por Mar de Ideias, Rio.