segunda-feira, 20 de abril de 2015

VERGONHA

Paulo de Almeida Sande*
 
A Europa está em guerra e não sabe. Vive cercada por todos os lados e finge não dar por isso. Nas suas fronteiras, dentro delas, morrem milhares, e a velha senhora faz de conta 
que não é nada consigo.

A Europa é uma velha senhora sem vergonha. Ou talvez não, talvez seja apenas uma velha senhora cansada e com pouca vontade de se preocupar com os problemas dos outros.

O problema é que os problemas dos outros são cada vez mais os seus problemas. E contra esses, a velha senhora nada pode.

A mais de 100 quilómetros da costa síria, 700 naufragaram. A maior parte morreu. Em 2015 são já quase 1.500 as vítimas. Já esta segunda-feira (só esta segunda-feira!) mais três embarcações perderam o pé e 23 pessoas faleceram. A tragédia vira hecatombe. Danos colaterais da Primavera Árabe (em pleno e glacial Inverno), vítimas da ameaça radical islamita, simples fugitivos ao espectro da fome, os refugiados africanos e médio-orientais invadem a Europa, não sem antes semear com o sangue do desespero as águas frias do Mediterrâneo.

Evoca-se o livro de 1973 de Jean Raspail, “Le Camp des Saints” (“O campo dos santos”), por muitos considerado racista: apelidado por Huntington “incandescente”, narra a chegada ao sul da França em velhos cargueiros apodrecidos de 800 mil imigrantes; e a França, incapaz de os impedir de desembarcar, soçobra subitamente ao peso da invasão pacífica dos povos do Sul (neste caso, da Índia). Considerado por muitos apóstolos da extrema-direita uma profecia do futuro, “O campo dos santos” surge hoje com foros de premonição.

A Europa está em guerra e não sabe. Vive cercada por todos os lados e finge não dar por isso. Nas suas fronteiras, dentro delas, morrem milhares, e a velha senhora faz de conta que não é nada consigo. E se são tantos os mortos, muitos mais, legais e ilegais, assolam o continente do mel e do leite e despertam os velhos fantasmas da xenofobia e do nacionalismo.  

E contudo não devia ser assim. No final dos anos 90, a nova política europeia de Liberdade, Segurança e Justiça previa uma acção determinada para ajudar a resolver os problemas nos países de origem dos imigrantes ilegais. Reduzir-se-ia a procura da Europa por parte dos africanos (e não só), através da erradicação das razões que a produziam. Essa política visava também uniformizar progressivamente as leis sobre imigração legal e asilo em toda a Europa, para tornar homogéneos os critérios. A coordenação do sistema de quotas, selecção de candidatos em bases semelhantes, regras comuns como no caso do reagrupamento familiar e o aumento progressivo da qualificação dos novos imigrantes, tornariam a política europeia cada vez mais partilhada e solidária, estabilizando a imigração para a Europa em números de acordo com as necessidades. Reduzia-se assim igualmente a imigração ilegal.

Nada disso aconteceu. A situação dos países de origem da maior parte dos migrantes, em particular no norte e centro de África, agravou-se com a Primavera Árabe, agora em pleno e frio Inverno: abrem-se os corredores da morte através das chagas da dissolução do Estado líbio, do advento ameaçador dos jihadistas da Al-Qaeda, Boko Haram, Estado Islâmico, da fome na Somália, Etiópia e em tantos outros países. De todo o lado, milhares procuram escapar às perseguições religiosas perpetradas pelos fanáticos do Islão, que degolam, queimam e torturam, das cidades em ruínas da Síria às praias ensanguentadas da Líbia.

Em Janeiro de 2013 viviam na União Europeia 33,5 milhões de pessoas nascidas fora dela, cerca de 6,7% do total dos europeus.  Nada de avassalador, os imigrantes nos Estados Unidos são quase 13% da população total. Não é um problema, é uma riqueza, problema é a imigração ilegal. E se mesmo aí não há comparação entre Europa e EUA – que têm cerca de 11 milhões de ilegais -, o fenómeno cresce em rapidez e dramatismo, com Lampedusa como símbolo planetário. Na primeira metade de 2013 foram detidos às portas do continente quase 100 mil ilegais; em 2014, 118 mil tentarem atingir as costas italianas, 3 mil morreram; e os números não param de crescer nos primeiros quatro meses de 2015.  

A Europa parece-se cada vez mais com a cidadela fortificada da Constantinopla do século XV, a resistir à invasão muçulmana pela última vez, com o inimigo já dentro das muralhas e a discutir sabia e longamente o sexo dos anjos – tema caro ao estertor da civilização cristã. Do sul e de leste chegam os arautos do fim e os europeus, no conforto das televisões que mostram o terror como um mal asséptico confinado ao brilho das pantalhas, vivem exclusivamente para o pó acumulado nos seus próprios umbigos e cogitam sobre a melhor forma de preservar o conforto com que viveram os últimos 30 anos, acabando com uma austeridade que os revolta mas que aos olhos dos perseguidos do Sul se assemelha a um paraíso na Terra.

Entendamo-nos: como escreveu Rui Ramos neste jornal há poucos dias, é indispensável resistir à demagogia e não encarar a questão da imigração com os óculos de um maniqueísmo redutor e suicida. Nem o nacionalismo que cresce no coração de muitos europeus é solução – precisamos dos imigrantes e, em todo o caso, eles já cá estão -, nem o acesso ilimitado ao velho continente tem qualquer lógica, política, económica, sobretudo social. Mas o exemplo dos barcos da morte, a imigração clandestina, o drama a que resumidamente associamos o nome de Lampedusa, é bem o símbolo do que está errado e da forma como a velha senhora europeia encara a escolha, não entre um mal e um bem, mas entre agir bem e continuar a agir mal, sobretudo por não agir ou fazê-lo incompletamente.

A imigração ilegal, é bom dizê-lo, não começou com a Primavera Árabe. Há mais de 20 anos que Espanha, França, Itália, Grécia tentam cada um por si limitar os fluxos de ilegais nas suas fronteiras. As rejeições aumentam anualmente, a esmagadora maioria nas fronteiras terrestres – em Ceuta e Melila, cada vez mais na Polónia e na Grécia. E há Lampedusa. Itália, a quem tem cabido a maior e mais pesada parte do fardo que consiste a um tempo em controlar as fronteiras (suas e da Europa) e simultaneamente salvar vidas, faz o que pode: em 2004 pôs de pé a operação CONSTANT VIGILANCE; após Outubro de 2013 e do naufrágio de 400 clandestinos, lançou a ambiciosa MARE NOSTRUM.

Num ano, 32 unidades navais, mais de 400 operações, 350 traficantes presos, quase cem mil salvos: a Itália, repito, faz o seu melhor. E pediu ajuda à União Europeia que, aparentemente, ouviu o pedido, tendo a partir de 1 de Novembro de 2014 lançado a operação TRITON para substituir o MARE NOSTRUM, coordenada no âmbito do programa europeu FRONTEX e com a participação de oito países europeus, entre os quais Portugal. Solidariedade europeia? Infelizmente, a operação tem menos de um terço do orçamento do antecessor e poucas unidades navais (cinco a sete navios, conforme as fontes que consultei, dois aviões, um helicóptero). E a sua missão, já foi esclarecido, não vai além das costas italianas, restando saber quem salvará os imigrantes em alto mar.

A morte de 700 pessoas este fim-de-semana desencadeou o habitual choro de carpideiras oficiais, a reclamar medidas, soluções de urgência, massivas e para ontem. Nada que não tenha sucedido em boa parte das tragédias anteriores. A Europa volta a falar em reagir, pedem-se Conselhos Europeus extraordinários para enfrentar o que muitos chamam já de holocausto. E está em curso por parte da Comissão Europeia a preparação de uma agenda com propostas concretas, a apresentar em Maio. Parte delas visa colocar fora do território europeu a resposta às pressões migratórias; inclui apoio financeiro aos países de origem para reprimirem as tentativas de travessia, instalação de controlos e operações para limitar a saída dos países de origem e ainda o estabelecimento de centros de triagem em território africano. Há já debate entre quem releva a possível existência de problemas de direitos humanos e quem vê nestas ideias boas propostas para reduzir o número de mortes no mar.

Algo terá de ser feito. Já. A velha senhora não pode a um tempo invocar uma superioridade moral (e de valores) que tão decantadamente gosta de celebrar e ignorar um holocausto nas suas fronteiras. E a resposta não pode ser só – mas tem de ser também – dada longe delas, atacando como deve o problema na fonte. A resposta para parar o drama do mar da morte, como com tanta (amarga) felicidade lhe chamou Rui Ramos, é mais Europa.

Mais solidariedade europeia: tendo consciência de que nenhuma instituição ou organização pode fazer tudo ou resolver todos os problemas, os Estados nacionais, que exigem a intervenção da mesma Europa a quem (muitos deles) recusam depois competências e meios, terão de contribuir para os recursos (logísticos e financeiros) necessários, coordenados no âmbito europeu da União e dos seus programas.

Mais meios de vigilância e salvamento, em conjunto, apoiando o esforço de Estados-membros como a Itália ou Espanha, apressando a harmonização e coordenação das políticas de imigração no âmbito do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Mais acções inteligentes e humanitárias nos países de origem. Mais e mais, com pressa, muito cuidadosamente.

Como hoje disse, e bem, Frederica Mogherini, citada pela Bloomberg e pelo Observador: é preciso construir “um sentido de responsabilidade europeia sobre o que está a acontecer no Mediterrâneo”, disse a Alta Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros.

A velha senhora ainda pode surpreender o Mundo, mas tem de se levantar da cadeira de embalar do conformismo em que está sentada há tempo de mais. Só assim evitará a Europa a vergonha de continuar a ser o palco de uma das maiores misérias dos tempos modernos.
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* PROFESSOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA
Fonte: Site de Portugal O Observador, 20/04/2015
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