sexta-feira, 10 de abril de 2015

“Sou um exibicionista. No espectáculo, gosto do palco”

O que desencadeia o mal e o que queremos dizer quando falamos de mal? São as perguntas que atravessam os romances do norueguês Jo Nesbo, o nome mais celebrado do policial nórdico. Traduzido em 40 línguas e cerca de 25 milhões de livros vendidos desde 1997, diz-se um entertainer com muitas perguntas e poucas respostas.

Jo Nesbo, norueguês, 55 anos, tem feito a sua carreira de escritor à volta de um exercício perverso: colocar o ser humano perante dilemas morais e fazer escolhas.

Com isso, explora o íntimo mais negro em romances onde o crime atinge detalhes de uma sordidez nauseante e tanto mais inquietantes quanto o leitor for capaz de perceber que, perante determinadas circunstâncias, talvez fosse capaz desses actos. “Tudo para entreter”, diz num fim de tarde em Lisboa, na derradeira entrevista antes de se despedir de Portugal com uma escalada nas escarpas do Cabo Espichel. O criador do detective Harry Hole, o cada vez mais cínico e melancólico inspector da Brigada Anti-Crime do Comando da Polícia de Oslo é uma estrela da literatura. Ex-jogador de futebol – considerado o melhor jovem jogador do seu campeonato e --, ex-corrector na bolsa, cantor e compositor numa banda rock – os Die Dierre -- argumentista de televisão e autor de livros para crianças é uma vedeta na Noruega. Traduzido em 40 países e com cerca de 25 milhões de exemplares vendidos dos seus dez romances da série Harry Hole é, com o desaparecido Stieg Larsson (o sueco autor da série Millennium) o nome mais conhecido do chamado policial nórdico, um género que onde a paisagem, o crime, o contexto social e a psicologia repartem protagonismo em romances que interpelam o mal em todas as suas nuances e a investigação do crime uma catarse humana. Em 2013, o governo norueguês distinguiu-o com o prémio Peer Gynt pelo que os seus livros fizeram na divulgação da Noruega pelo mundo.Dois anos depois de ter publicado Politi, o décimo romance da série, e quatros meses após a edição de O Leopardo (oitavo volume) em português, Jo Nesbo vem pela primeira vez a Portugal com escritor para falar de O Morcego, o primeiro dos seus livros, nascido da sua teimosia em mostrar que era capaz de contar bem uma história. Para isso criou um homem, Harry Hole, mais ou menos da sua idade, mais ou menos com a sua estatura física, olhos azuis, magro, desgrenhado. E muita invenção com um pouco de autobiografia. Foi há 18 anos. Cresceram juntos num tempo voraz.
 
Em O Morcego, o seu primeiro livro publicado em 1997, Harry Hole ouve o zumbido de um walkman na fila do aeroporto à chegada a Sidney, alguém repete a mesma cassete; numa discoteca da cidade dança-se ao som de Katrina & the Waves; no quarto de uma casa num dos bairros mais heterogéneos de Sidney, há um poster de Mel Gibson em O Desafio do Guerreiro e a polícia usa walkie-talkies para comunicar em vez de telemóvel. O romance está cheio de sinais que nos alertam para a voragem que foram os últimos 18 anos.
É verdade, tanta coisa mudou. Reli O Morcego há alguns anos. Não costumo reler os meus livros, mas fi-lo para um programa de rádio. Hesitei sobre se o deveria ler ou não, porque não sabia a minha reacção, se o iria detestar, ou gostar muito. Quando eu era muito novo costumava escrever diários e lembro-me de, aos 15 anos, odiar o que escrevera aos 14. Ficava muito embaraçado com tudo aquilo. Mas quando reli O Morcego fiquei surpreendido de forma positiva. Consigo ver que é o meu primeiro romance, consigo ver que há coisas que teria feito de forma diferente agora….

Tais como?
Mmm… não lhe vou dizer (gargalhadas). Mas posso dizer que nessa altura já tinha uma grande confiança como escritor. Gosto do entusiasmo, da frescura, da ousadia e da tal confiança. Estava convencido de que era único enquanto escritor. Qualquer escritor, enquanto escritor, precisa dessa confiança e eu tinha-a. Não é no sentido em que eu seja o melhor escritor de sempre, provavelmente não sou, mas sou um contador de histórias único, e por isso um escritor único. Porque o meu cérebro trabalha de maneira diferente do de outro escritor, mas também porque acho que sei contar bem uma história, que sou um grande contador de histórias. É preciso ter essa confiança ao logo do processo de escrita.

Nunca sente dúvidas em relação a isso?
Não. Há aquela história do velhote que vai a conduzir um carro com a sua velha mulher. Estão na auto-estrada e vão a ouvir o rádio que emite uma mensagem de perigo, um alerta de que há um carro a andar em contramão nessa auto-estrada, e o velhote vira-se para a mulher e diz: “Um carro?! Há centenas deles!” Tenho essa confiança cega quando começo a escrever. Não importa quantas pessoas me possam dizer que aquela não é a maneira de contar uma história. Se me disserem isso eu argumentarei que eles tão todos errados e sigo com a história da forma que ela deve ser contada. Não tenho essa mesma confiança com outras coisas na minha vida. Se, noutros casos, pessoas que eu respeito me disserem que estou errado eu ouço-as. Mas no que diz respeito a contar histórias, vou de acordo com o meu conceito e com aquilo que tento fazer.

O Harry Hole deste livro tem 32 anos. O do último livro tem mais de 50. Como é que ele cresceu consigo?
Ao reler este livro também fiquei surpreendido com a juventude de Harry Hole, como ele era caloroso, mas já tem todos os traços, toda a sua substância enquanto personagem. Ter a noção disso, tantos anos depois, foi surpreendente para mim. Ele está mais velho, é a história de um tipo que se degradou física e mentalmente. Ao longo da série, ele cai muitas vezes no seu lado mais negro, comete os mesmos crimes que os criminosos que ele persegue, anda numa permanente luta interna, mas também está mais sábio, mais lúcido do que era no início. Nos últimos romances da série tem outra perspectiva sobre a vida, está a mais optimista do que neste primeiro romance. Mas há diferenças substanciais. Nos primeiros livros ele é alguém a perder a esperança, a perder a sua crença no amor. Ele reencontrou essa fé no amor nos dois últimos romances.
Jo Nesbo criou um homem, Harry Hole, da sua idade, com a sua estatura física, olhos azuis, magro, desgrenhado. 
E muita invenção com um pouco de autobiografia. Foi há 18 anos. 
Cresceram juntos Rui Gaudêncio
Como é a sua relação, enquanto escritor, com essa personagem? Têm muitos conflitos?
Nunca planeei usar Harry como um alter-ego ou pôr demasiado de mim na personagem, mas é inevitável quando se escreve sobre uma personagem durante tantos anos que transporte o meu eu para ela e uma reflexão sobre a forma como me sinto em relação a mim mesmo. Dou-me bem com o Harry, às vezes fico farto dele, como fico farto de mim, mas ele é uma personagem que só existe na ficção. Muitos escritores dizem que vêem as suas personagens nas ruas ou às compras. Comigo isso não acontece. Ele não existe na vida real. Quando entro no universo do Harry Hole, fecho a porta atrás de mim. Ele vive comigo mas apenas quando estamos nessa mesma sala.

Mas muitos dos seus leitores pensam em Harry Hole como real. É verdade que neste momento não sabe o que vai fazer com ele? Como é que se diz adeus a uma personagem que o acompanhou ao longo de toda a sua carreira e o formou como escritor?
Provavelmente irei escrever mais romances com Harry Hole. Depois de todos estes livros com o Harry, estou mentalmente exausto. Não da escrita, mas deste universo que é um universo cão. Ele vive num ambiente tramado, é uma personagem tramada e tudo isso é muito cansativo. Depois de cada romance dou-me sempre a oportunidade de dizer que já chega, que vou parar por ali. Mas o que normalmente acontece é que passados seis meses quero voltar ao Harry e é isso que vai acontecer. Mas tenho alguns projectos que quero escrever antes disso.

Andar com Harry Hole é lidar com o lá mais negro da vida. Escreve neste livro que cada crime é diferente e já o colocou perante muitos, irrepetíveis nas suas nuances, nos seus detalhes sórdidos, nas gradações do mal. O que é que isso revela de si?
Provavelmente o meu trabalho não é diferente, no que possa ter de desgaste mental, do de outras pessoas que lidam com este tipo de questões, com todas as facetas da mente humana. Pessoas que trabalham em prisões, na polícia, em manicómios, centros de recuperação, com sociopatas. É muito desgastante, de facto. Mas eu trabalho com personagens de ficção, o que é diferente de trabalhar com seres humanos com distúrbios de personalidade ou doenças mentais, ou o que podemos chamar o puro mal.

O que é o puro mal?
Acho que antes de responder a essa questão teríamos de passar pelo menos uma hora tentando chegar a uma definição da palavra “mal”, quais as fronteiras dessa palavra. Estamos a falar de um mal activo, das façanhas de um serial killer, por exemplo, de um sádico? Ou incluímos também aí o chamado mal inactivo ou passivo, que advém do facto de não nos interessarmos por outras pessoas, da falta de empatia, de sermos egocêntricos e de passarmos as nossas vidas apenas preocupados connosco? É preciso definir onde começa e acaba o mal, o que queremos dizer quando falamos em mal. Mas no sentido do mal activo, sim, acho que há mal no mundo, mas não sei se acredito no ser humano exclusivamente mau. Há actos puramente maus e a maioria de nós é capaz de os cometer.

Na última década o romance policial nórdico enche muitas páginas de jornais e suplementos literários. Vende, é adaptado ao cinema e à televisão, faz de quem o escreve vedeta internacional. Além do crime e da investigação, traçam retratos complexos da sociedade e da psicologia humana. É nessa complexificação que está o seu sucesso?
Não conheço o romance policial assim tão bem. Fazem-me muitas vezes essa pergunta porque sou um escritor de policiais, mas não sou um especialista em romance policial. Leio apenas alguns escritores de que gosto e são quase todos clássicos. De vez em quando tento dar respostas inteligentes a essa pergunta, mas a verdade é que não faço ideia. Não me ponho em nenhuma categoria nem na paisagem do romance policial. Para mim o que importa é a história que vou contar e não me interessa o que os outros escritores de policiais fazem. Quando falo dessas coisas é só blá blá blá e não vou fazer isso agora consigo (risos).
ADRIAN DENNIS/AFP
Os seus dois primeiros romances passam-se fora da Noruega, um em Sidney (este O Morcego) e outro no segundo (The Cockroaches, ainda apor traduzir) na Tailândia. Só ao terceiro, com O Pássaro de Peito Vermelho, passa a fixar-se em Oslo e conquista definitivamente os leitores noruegueses que se revêem na sua paisagem, na atenção aos aspectos sociais e políticos, a uma atitude crítica e irónica em relação a um momento que é de transição, de um país que foi pobre e passou a ser o mais rico do mundo, com todos os desafios que isso implica.
Sim, desde 2000 que uso a minha cidade de Oslo como cenário dos meus romances e, claro, a sociedade norueguesa, para contar as histórias. O meu objectivo ao escrever um romance não é endereçar questões sociais ou questões políticas, mas se houver um assunto político que me interesse e isso for relevante para a história não hesito em usá-lo. Como por exemplo o neonazismo na Noruega. Não é que me sente a pensar em escrever um livro sobre neonazismo. Tudo começa com personagens, com a condição humana e com a vida de uma pessoa singular e os desafios morais em fazer uma escolha difícil. Quase sempre tudo começa com um dilema moral. O que eu faria se estivesse perante uma situação como aquela, que escolhas teria de fazer. Fazer o que achar que era correcto ou que se seria muito errado. Essa é a ideia da história, pôr o leitor a escolher entre Harry e o seu dilema, ou o criminoso com o seu dilema moral. Eu vejo-me como um escritor de entretenimento e acontece que por vezes acho a política e a cultura de uma nação muito capazes de entreter.

E entretém-se a escrevê-los? Diverte-se?
Muito. Eu escrevo as histórias e sou o meu primeiro leitor. Não analiso muito porque é que as pessoas lêem os meus romances. Antes de mais tento entreter-me a mim e a alguns amigos. É esta a minha primeira audiência e é a partir dela que construo a imagem dos que me lêem. Mas acima de tudo, tento escrever romances que eu leria e como os que me tornaram leitor e depois escritor.

E que romances foram esses, os de formação?
Jim Thompson, O Assassino Dentro de Mim; Ernest Hemingway, O Sol Nasce Sempre (Fiesta); Jim Carroll, The Basketball Diaries, Jack Kerouac, Pela Estrada Fora, Charles Bukowski, Pão com Fiambre - Ham on Rye. Há tantos bons livros por aí. Esses bons livros são um reflexo social, há tanta coisa para dizer e ler; nos livros que a principal tarefa é ser capaz de ter algum retorno e, como escritor, receber algo do acto de escrever um romance. Para mim a grande dádiva é alguém vir ter comigo e agradecer-me o tempo que passou com um livro, que um dos meus leitores tenha o mesmo tipo de experiência a ler um romance meu como o que eu tive com algum destes, os que me fundaram quando cresci. Isso é mágico. É fantástico.

Passa muito tempo em viagens de promoção, a dar entrevistas, em programas de televisão. A revista The New Yorker referiu-se recentemente a si como a uma estrela pop da literatura. Onde fica o tempo para a escrita?
Muitas vezes chamam ao escritor o exibicionista tímido.

Acha-se um exibicionista tímido?
Definitivamente, sou um exibicionista. No espectáculo, gosto do palco. Eu fui jogador de futebol, cantor numa banda e sou um escritor. Não há maneira de desmentir que gosto do espectáculo e de aparecer. Ter o foco apontado a mim, falar num palco, ler numa plateia ou escrever livros é, para mim, a mesma coisa. É comunicar. Tenho essa grande ambição de ter algo para dizer às pessoas. Ma o meu objectivo não é dar respostas. Enquanto escritor não tenho respostas. Para isso teria de se rum cientista. A única coisa que posso atingir enquanto escritor é fazer perguntas interessantes. Não estou mais qualificado nem sou mais inteligente do que os meus leitores para dar respostas, mas tento comunicar. Como a pergunta que me fez há pouco: “o mal existe realmente, o que acha?” Imagine-se que há um homem numa situação particular e que ele tem de fazer uma escolha, o que acha que ele faria? É o que faço, o que faço como escritor é: venham para este exercício ficcional, vamos imaginar. É tudo o que posso fazer. Os escritores não são as pessoas mais úteis da sociedade. São apenas capazes de fazer perguntas, não estão qualificados para dar respostas.

Mas todos precisamos de perguntas.
Claro. Se olhar para a história da literatura, há muitos escritores de ficção a influenciar a sociedade. Como Charles Dickens, só para falar de um.

E o tempo para a escrita, com o concilia com o tempo de aparecer?
Andam juntos. Quando terminar esta entrevista subo ao meu quarto e vou escrever. Faço-o a cada intervalo. Não escrevo coisas complicadas
-------------
Reportagem por:  

Nenhum comentário:

Postar um comentário