segunda-feira, 27 de abril de 2015

OS LARGADOS

 Martha Medeiros*

 
Sem computador, sem televisão e sem bateria

no celular, me restou o ato heroico de ler um livro

Antigamente eu rosnava a cada vez que ficava sem luz em casa. Agora até festejo, e não só pela economia na conta. Dias atrás, a energia elétrica caiu às quatro da manhã e só retornou perto do meio-dia. Sem computador, sem televisão e sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro do começo ao fim, de um fôlego só. Por sorte, Os Largados, do italiano Michele Serra.

Divertir e comover. Combinação diabólica plenamente atingida pelas 125 páginas que contam a história de um pai exasperado com o filho de 19 anos que vive entocado com seus gadgets eletrônicos. Um guri que não conversa, se veste com molambos, come no sofá, não vê a cor do céu, enfim, desperdiça sua juventude.

Enquanto o pai busca caminhos para se conectar com essa criatura amorfa (caminhos inclusive no sentido literal: acredita que se conseguir convencer o garoto a acompanhá-lo numa trilha, nem tudo estará perdido), vai elaborando mentalmente um livro que sonha em escrever sobre uma fictícia Guerra Mundial entre Jovens e Velhos. E é aí que Os Largados diz a que veio.

É só olhar para trás e lembrar as inúmeras diferenças que tínhamos com nossos pais. Quem não? O conflito de gerações é um clássico na vida de qualquer um. Porém, essa guerra se dava no mesmo campo de batalha. Podíamos pensar de forma distinta, mas comíamos todos à mesma mesa, a música vinha do único equipamento de som instalado na casa, fazíamos passeios familiares, conversávamos – ou discutíamos, brigávamos, que seja, mas dentro de um universo comum. Não é mais assim. Diz o pai ao filho, no livro: “Agora tenho a sensação – a suspeita? o terror? – de uma mutação tão radical que dificilmente, um dia, poderemos nos reconhecer, você e eu, no mesmo prazer”.

E continua: “Partiu-se uma corrente – da qual eu sou o último elo”.

A questão é: que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância com os outros, que perdeu o idealismo, que fica zonza e por vezes até paralítica diante das variadas opções disponíveis de sexo, amor, carreira?

Estão 100% plugados, mas cada vez mais desconectados de nós, os últimos analógicos desta era. Largados num novo mundo que está sendo construído à nossa revelia. Não, o livro não é pessimista ou trágico, ao contrário. É extremamente engraçado, mas com uma graça firmemente apoiada na inteligência, na ironia e na reflexão. E dá o devido espaço a uma emocionante descoberta: nesta guerra entre jovens e velhos, a razão circula entre os dois exércitos e tem múltiplas formas de se apresentar.

Leia, porque o livro é muito bom. E também porque livros, este ou qualquer outro, continuam sendo fornecedores de uma energia que se mantém on em qualquer circunstância. O cérebro não cai.
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* Jornalista. Escritora.
Fonte: ZH online, 26/04/2015

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