segunda-feira, 20 de abril de 2015

O mundo consegue ser o inferno

                                                                          Inês Cardoso* 



Os mortos não falam. Os seus fantasmas muitas vezes sim. Em seis dias, cerca de mil imigrantes terão morrido no Mediterrâneo, quando tentavam chegar a uma Europa que perspetivavam como porto de abrigo. Nenhum deles poderá contar-nos o que os fez acreditar que valia a pena o risco de subirem para um barco sobrelotado e sem condições. Mas os seus fantasmas lembram-nos o que acontece (há tantos anos que a multiplicação de tragédias só pode fazer-nos corar de vergonha) quando é negado a pessoas desesperadas um acesso seguro a território europeu.
Ontem a União Europeia decidiu reunir-se de emergência e admitir que o Mediterrâneo se tornou "a estrada mais perigosa do mundo". O alarmante aumento de mortes no mar coincide com o fim, em outubro passado, da operação italiana "Mare Nostrum", que permitiu salvar 150 mil pessoas num ano. O custo do dispositivo montado? Nove milhões de euros por mês, um preço considerado demasiado alto antes de mais por Roma, que o liderava e colocava em prática, mas no fundo pelos parceiros europeus a quem compete partilhar esse esforço.

Sucedeu-se o dispositivo mais ligeiro batizado de Tritão, enquadrado na Frontex, a agência europeia de vigilância de fronteiras. Com participação de dez países, esta operação diminuiu de 32 para 21 o número de navios mobilizados e reduziu igualmente a fatura para 2,9 milhões de euros mensais.

A questão será de número de navios, de arames farpados e de pares de olhos aplicados para vigiar fronteiras? Decididamente não. Ao longo dos anos, as rotas de circulação foram-se alterando consoante os pontos em que a Europa reforçava muros. Olhar para Lampedusa e para o Mediterrâneo implica, antes de mais, encarar as causas profundas da imigração.

É urgente analisar as motivações que empurram tantas pessoas para o desespero: os ataques sangrentos do grupo radical Boko Haram, a guerra civil na Síria, o contexto caótico na Somália e na Líbia ou a ditadura de Issayas Afewerki na Eritreia. O aparelho de controlo de imigrantes da Europa não é suficiente para identificar e responder a tantos indivíduos que podem estar a necessitar de proteção internacional.

Os responsáveis pelas travessias que metem centenas de pessoas em perigo, em barcos sobrelotados, são terroristas, classificou o presidente de França, François Hollande. Sim, são. Mas não são os únicos culpados num mundo que continua a girar a demasiadas velocidades. Um mundo em que há espaço para artigos de opinião como o que, no jornal "The Sun", classificou estes imigrantes "como baratas" e "uma peste de humanos selvagens". A vida é um bem inestimável. O mundo, esse, consegue ser um inferno
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* Jornalista portuguesa. 
Fonte: Diário de Notícias online, 20/04/2015
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