domingo, 12 de abril de 2015

Inteligência sem deuses

Francisco Marshall*

Em um mundo em que ateus são minoria e muitos consideram a crença religiosa natural, não se pode arquivar a discussão entre razão e fé

Richard Dawkins hoje reina entre os ateístas, por sua defesa vigorosa do pensamento científico e pela crítica humanista aos enganos da religião. O pensador inglês tem a seu favor o lastro de milênios de pensamento crítico e o vigor de argumentos necessários para a civilização. A meta é a emancipação do humano diante do que ele mesmo criou, uma rede de representações do mundo sobrenatural, onde habitariam deuses e de onde comandariam a vida na Terra e no além. Emancipado, o indivíduo moderno pode chamar de ficção cultural o que bilhões de pessoas chamam de Senhor, e pode fundar sociedades sobre valores de liberdade, de tolerância e de consistência moral e jurídica.

Minoritários, os ateus parecem exóticos, e a crença em divindades, natural. Isto obriga os ateus a manter um arsenal de argumentos, certa vigília e, eventualmente, atitude de combate, o que aborrece crentes e produz nova safra de desentendimentos. Sem a galhardia dos céticos, agnósticos e ateus, porém, pouco saberíamos do universo, do corpo humano e das soluções jurídicas e tecnológicas que enchem de conforto a vida moderna. A discussão entre razão e fé não pode ser arquivada; será atual por muitos séculos.

Instituída há 5 mil anos, junto com o Estado e antes de alfabeto, biblioteca, museu, universidade, telescópio e internet (!), a religião é o antigo antiquado intrometido na modernidade. Todavia, alguns antigos já percebiam o problema, e o disseram com inteligência que parece moderna, falando nosso idioma. Ei-los.

Escrito na tumba do faraó Intef II, no Egito de 4.084 anos atrás, o “canto de um harpista” revela inteligência cética onde imperava poderosa teologia. “Ninguém volta (...) para dizer o que precisam (...)”, diz a canção: tudo o que se fala do além (base da cultura egípcia) é invenção dos que aqui estão, em estado de ignorância. “Por isso alegra teu coração, esquece que serás um espírito, segue teu desejo por mais que vivas, põe mirra em tua cabeça, veste linho fino”, canta o(a) harpista, antecipando em 2 mil anos o famoso carpe diem (colhe o dia) do poeta latino Horácio. Nada sabemos, vivamos do melhor modo possível.

A segunda geração de filósofos gregos questionou a natureza e a função das divindades. Xenófanes de Colofão: “Se os cavalos tivessem mãos e pudessem grafar, fariam seus deuses com a imagem de cavalos”; para não restar dúvidas, arremata: “os egípcios pintam seus deuses baixos e negros, os trácios os fazem altos e ruivos.” A religião, depreende-se, é produto cultural, relativo, criado pelo homem com auxílio de imagens, que dão forma à crença e a comunicam. Muitos se perguntam onde caberiam todas as divindades imaginadas ao longo dos séculos. E afinal, qual dos mitos é o verdadeiro? O meu, o teu, o do mais forte, o mais belo, o mais filosófico, o mais moral, o mais oriental, o que sacia ansiedades, o que entorta braço, o que me aproxima da cura ou da pessoa amada? Todos ficção, o que não os deleta, muito pelo contrário, redime os mitos e os faz matéria preciosa para a compreensão dos símbolos que formam a cultura. Logo, a imaginação é grau maior do mito e das religiões; antes de Dawkins já estavam aqueles gregos e Freud, Frazer, Lévi-Strauss e Mircea Eliade para ler este código cultural. Todos herdeiros de Heráclito: “Que são os deuses? Homens imortais. Que são os homens? Deuses mortais.” O humano promete mais, e pode a cada dia superar-se.

Sobre o território para o pensamento emancipado, brilharam os sofistas, na Atenas do século 5º a.C. Mestre de Péricles, Anaxágoras de Clazômenas foi acusado de ateísmo, ao propor que a Lua não era Selene, irmã do Sol e da Aurora, mas um corpo celeste resultante da colisão de um astro contra a superfície da Terra, de onde desprendeu-se uma parte, lapidada pelo tempo, ora em órbita (exatamente o que hoje se pensa sobre a formação da Lua). Eis a ciência crescendo em um mundo em que os deuses podiam tornar-se obsoletos. Atomistas como Epicuro e Lucrécio Caro, e cínicos clássicos como Diógenes, completaram a cena antiga do pensamento emancipado.

Novidades, doravante, somente na era moderna, com a sagacidade de Giordano Bruno, desafiando a cosmologia opressora, com a ironia de Voltaire – um Xenófanes com muito estilo e prosa, ou com a lucidez de Immanuel Kant, em cuja obra se funda a dimensão política e ética do homem contemporâneo. Bem lido, Kant responde à pergunta do cardeal Martini a Umberto Eco, no célebre debate: em que creem os que não creem? Naquilo que podem determinar pelo pensamento e optar por critério ético de universalidade, sem medo de castigo infernal ou carência de tutela divina. Faltava pouco para Nietzsche reler e inverter Lutero, e declarar a morte de deus.

O cadáver, todavia, é imenso, e nele ainda se refestelam exploradores de toda ordem, dos mais polidos aos mais afoitos, que ora aceleram a máquina religião com força máxima, e enriquecem com os votos e dízimos de milhões de iludidos. Em cenário de crise e no vazio de uma educação pública decente, os crentes e sua ofensiva política e social são hoje um dos principais desafios do Brasil e do mundo, prontos para reverter o frágil edifício da civilização. Eis porque todos os artistas e filósofos, do harpista egípcio a Dawkins e cada um de nós, hoje precisam assumir sua modernidade e defendê-la como se fosse a muralha de uma cidade chamada liberdade.
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POR FRANCISCO MARSHALL | Historiador e arqueólogo
Fonte: ZH online, 12/04/2015

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