quinta-feira, 23 de abril de 2015

Filósofa Martha Nussbaum fala sobre 'Not for profit'

 

Hoje no DIA MUNDIAL DO LIVRO busquei a entrevista com a filósofa americana Martha Nussbaum  no Jornal o Globo de 16/04/2011. Vale uma releitura.

Na partilha das tesouradas que se sucederam à crise financeira de 2008, o campo que nos Estados Unidos e parte da Europa recebe a denominação ampla de “humanidades” tem recebido cortes mais vigorosos do que as chamadas ciências exatas. Consideradas fundamentais para a recuperação econômica, as pesquisas em ciência e tecnologia foram declaradas intocáveis pelo governo inglês, por exemplo — em especial nos projetos com aplicação direta no desenvolvimento industrial. O presidente americano Barack Obama confirmou essa repartição desigual do arrocho ao apresentar na última quarta-feira um orçamento que prevê uma redução de 13% nas verbas dos órgãos federais de apoio às artes e às ciências humanas nos Estados Unidos, doze pontos percentuais a mais do que a mordida de 1% imposta à Fundação Nacional da Ciência. 

Numa carta publicada mês passado no tradicional jornal britânico “The Observer”, atores como Jeremy Irons, Helen Mirren e Kenneth Branagh protestaram contra os cortes no estímulo às artes na Inglaterra, afirmando que o retorno econômico dos investimentos em cultura é enorme. Outras respostas ao aperto orçamentário, no entanto, põem em questão a própria ideia de que ele deva ser orientado de acordo com a rentabilidade potencial dos investimentos. 

Em “Not for profit: why democracy needs the humanities” (“Sem fins lucrativos: porque a democracia precisa das humanidades”, Princeton University Press, 178 páginas, US$ 22,95), lançado nos Estados Unidos no ano passado, a filósofa americana Martha Nussbaum afirma que ao priorizarem aplicações técnicas, em detrimento das humanidades, as democracias ocidentais solapam os próprios fundamentos e aproximam-se do modelo cultural de regimes autoritários como China e Cingapura. A principal advertência de Nussbaum, professora da Universidade de Chicago conhecida pelos trabalhos sobre ética e identidade, é que os sistemas democráticos não sobrevivem sem o estímulo à imaginação e ao pensamento crítico, faculdades que segundo ela são desenvolvidas de modo crucial (ainda que não exclusivo) pela arte e pela filosofia. No centro desse argumento está a noção de imaginação empática, a capacidade de colocar-se no lugar do outro que para Nussbaum é uma condição para a construção de sociedades solidárias. Crescimento econômico não equivale a qualidade de vida, diz, principalmente quando o PIB dispara passando por cima do sofrimento alheio.

Em entrevista ao GLOBO por email, Nussbaum (cuja única obra traduzida no Brasil é “A fragilidade da bondade”, publicada em 2009 pela Martins Fontes) fala sobre o livro, e defende que os currículos educacionais devem ter por objetivo tornar visíveis os grupos que a maioria da sociedade ignora.

 "O que ele queria dizer especificamente 
é que nós deixamos a ganância estabelecer nosso caminho na vida, 
determinando nossas amizades, 
leituras, envolvimento 
com a política".
(Referindo-se a Tagore)

A senhora diagnostica em seu livro uma “crise massiva” na educação, que poderia ser resumida como um declínio das humanidades diante de uma ênfase crescente no conhecimento técnico. Quais são as causas e os sinais mais importantes dessa crise?

MARTHA NUSSBAUM: A competição crescente entre as nações no mercado global, aliada à recente crise econômica, faz com que os políticos em praticamente todos os países pensem a educação em termos de reparos de curto prazo: ela é tomada como uma maneira de produzir lucro rápido para a indústria. Os governos sequer estão pensando bem, no entanto, a respeito daquilo que cria uma cultura de negócios saudável a longo prazo. Até mesmo nações como China e Cingapura sabem que as humanidades estimulam a imaginação e o pensamento crítico, gerando inovação e ambientes de trabalho mais sadios. Mas os políticos hoje certamente não estão preocupados com a saúde a longo prazo da cultura política democrática, que depende de maneira central do pensamento crítico e da imaginação empática. Os “sinais” dessa crise são cortes nas humanidades e nas artes na maioria dos países, principalmente em instituições com financiamento público.

A ideia de que o lucro e o crescimento econômico não deveriam constituir o cerne de nossa vida parece bem razoável, mas ao mesmo tempo em desacordo com a maneira como a maioria dos governos entende seu papel. Isso é particularmente visível no mundo em desenvolvimento, onde mesmo políticos de esquerda adotam inúmeras variações do mote “primeiro o pão, depois a moral”. Como a senhora responderia a essa ideia, de que em algumas circunstâncias precisamos deixar aspirações mais “elevadas” de lado para satisfazer primeiro as necessidades básicas?

NUSSBAUM: É um argumento muito ruim, por duas razões. Em primeiro lugar, não se produzem negócios bem sucedidos dessa maneira, particularmente na economia altamente dinâmica e móvel de hoje em dia; não precisamos de máquinas treinadas tecnicamente, precisamos de pessoas que sejam capazes de pensar claramente, analisar um problema e imaginar algo novo. Em segundo lugar, nações democráticas não têm como objetivo transformar-se em autocracias. O que acontece, porém, é que elas consideram a sobrevivência da democracia como algo garantido, esquecendo que um certo tipo de educação abrangente é necessário para formar cidadãos democráticos, com capacidade de tomar decisões levando os outros em consideração, e de imaginar as consequências de uma certa política na vida de pessoas diferentes deles próprios.

O segundo ponto central no seu livro é a ideia de que há uma conexão entre as humanidades, ou uma “educação liberal”, e a democracia. Não é preciso procurar muito, no entanto, para encontrar exemplos de como a figura do indivíduo ilustrado foi e continua a ser usada para defender posições elitistas. O que afinal a senhora entende por educação liberal, e porque ela é essencial à democracia?

NUSSBAUM: Sim, a educação em humanas costumava ser uma espécie de cultivo elitista para o “cavalheiro” (gentleman). Mas o que tenho em mente é algo muito distinto, cujas origens podem ser encontradas na figura de Sócrates. Ele questionava cada indivíduo numa linguagem clara, que não excluía ninguém, e argumentava que esse tipo de questionamento de ideias era essencial para a democracia. De modo similar, os antigos festivais trágicos gregos eram convites à empatia e à imaginação, dirigidos a todos os cidadãos. No meu país, nossa concepção elitista da educação humanística foi radicalmente posta em questão a partir do século XIX, e sem dúvida a G. I. Bill [lei americana de 1944 que instituiu uma série de direitos para os veteranos da Segunda Guerra, entre eles o acesso ao ensino universitário] foi seu encerramento definitivo, pois desde então mesmo as universidades de elite tiveram que se perguntar o que uma educação em humanidades deveria ser, dado que ela deveria estar disponível a todos que haviam participado do esforço de guerra. Mais tarde, nos anos 1970, fomos ainda mais longe, incorporando ao currículo universitário o estudo da raça e das mulheres. Em minha opinião, o cultivo da empatia deve dirigir-se particularmente aos grupos em relação aos quais a maioria com frequência se comporta de maneira obtusa: como o grande romancista afroamericano Ralph Ellison escreveu, a literatura pode cultivar os “olhos internos” de uma tal maioria, e o currículo das humanidades deve ser formulado com esse objetivo em vista.

Seu livro parece adotar uma abordagem pragmática em relação ao conhecimento — devemos estudar as humanidades porque elas são boas para a sociedade. A senhora concorda com essa caracterização?

NUSSBAUM: Há muitos motivos para estudar as humanidades: por interesse intrínseco, porque elas podem enriquecer a vida de uma pessoa, porque elas são boas para os negócios, e porque elas ajudam a democracia. Eu me concentro no último ponto porque acredito que posso convencer as pessoas que ainda não amam as humanidades a se importar com elas por meio desse tipo de argumento. No entanto, meu argumento não é instrumental. Acredito que as habilidades desenvolvidas pelas humanidades, pensamento crítico e imaginação, são constitutivos da boa cidadania, parte do que significa ser um bom cidadão; e não apenas meios para se chegar à boa cidadania.

Não é possível imaginar que o estímulo à reflexão produza um efeito distinto do apoio à democracia? Ainda mais: a busca por alternativas à democracia não deveria ser um dos principais objetivos da filosofia hoje?
NUSSBAUM: Sim, sem dúvida. Devemos a esse respeito estar sempre abertos à disputa de ideias. Mas desde o tempo de Sócrates não encontramos ainda uma forma de governo melhor do que a democracia, com todas suas falhas.

A senhora cita em seu livro uma advertência do escritor indiano Rabindranath Tagore sobre a “tirania das posses materiais”. Poderia comentar esse perigo constatado por ele?

NUSSBAUM: Tagore está pensando aí que muitas vezes deixamos nossas posses dominarem nossa humanidade. O que ele queria dizer especificamente é que nós deixamos a ganância estabelecer nosso caminho na vida, determinando nossas amizades, leituras, envolvimento com a política. Mas essa é uma forma muito limitada de viver, e impede que as pessoas estabeleçam muitas conexões valiosas. Tagore escreveu muito sobre pessoas nessa situação, destituídas de conexão humana, para mostrar aos seus leitores o que uma educação excessivamente materialista pode fazer ao nosso espírito.

Em seu livro, a senhora enfatiza o papel do diálogo na educação e na construção da cultura democrática. A preocupação com o debate é recorrente em sua obra, que busca formular uma defesa do multiculturalismo sem abdicar da pretensão a uma ética de valor universal. Como a senhora vê o papel do diálogo na própria constituição das sociedades contemporâneas — acredita que possamos encontrar sempre algum tipo de conciliação entre posições diferentes, ou há casos em que as diferenças de ponto de vista (culturais, por exemplo) não podem de fato ser resolvidas por meio da argumentação?

NUSSBAUM: Na verdade acho que numa cultura política decente precisamos construir espaços para que as pessoas ajam de acordo com sua religião e cultura, contanto que não causem mal aos outros. Na história americana, essa ideia está em circulação desde o período colonial: os quakers e menonitas eram dispensados do serviço militar obrigatório, judeus eram dispensados de comparecer ao tribunal aos sábados, padres católicos podiam recusar-se a revelar informações a que tinham tido acesso durante a confissão. Com o passar dos anos, essa ideia de “conciliação” foi ampliada: americanos nativos são isentos da legislação antidrogas para fazerem seu uso sacramental do peiote, assim como ocorreu com uma seita brasileira que usa um alucinógeno chamado ayahuasca em seus rituais sagrados. Essa seita tem apenas 150 integrantes nos Estados Unidos, mas ainda assim o ordenamento legal atende sua reivindicação. Então acredito que o bom meio termo é que as pessoas possam ser liberadas de algumas das leis que se aplicam a todos cidadãos, a não ser que exista um “forte interesse de Estado” do outro lado. E obviamente a resolução de tais questões supõe um diálogo constante e o máximo de compreensão possível a respeito do grupo e de suas práticas. A compreensão, acredito, é sempre algo difícil. É difícil entender seu irmão, ou irmã, é difícil entender a si mesmo. O problema, portanto, não se coloca apenas na compreensão de um outro grupo ou cultura. É preciso que nos interroguemos a respeito dos obstáculos à compreensão, e que lidemos com eles com paciência, respeito e educação.

Num artigo recente, a senhora escreveu que muitos intelectuais de sua geração se veem divididos entre a vida acadêmica e a participação no governo. O que faz com que a senhora se mantenha na universidade, e que valor público a produção intelectual possui hoje, em sua opinião?

NUSSBAUM: Bem, não tenho muita escolha, porque meu temperamento não é em nada adequado à vida pública. Sou por demais apegada à solidão, independente e inclinada a me debater com os problemas de outras pessoas; simplesmente não me sairia bem no governo, e pelas mesmas razões já recusei até mesmo posições administrativas em universidades. Mas, além disso, também digo a mim mesma que posso realizar algum bem escrevendo como filósofa. Às vezes escolho certos projetos por acreditar que eles desempenham um papel público. Amo a liberdade que minha vida me fornece, e acredito que devo retribui-la de alguma forma, escrevendo a respeito de assuntos sobre os quais a princípio não escreveria.

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Fonte:  http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/04/16/filosofa-martha-nussbaum-fala-sobre-not-for-profit-375101.asp
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