sábado, 28 de março de 2015

UMA PERVERSA INOCÊNCIA

Charles Dogson, aliás Lewis Carroll, e Alice Lidell, aliás "a do livro". Em O Fotógrafo e a Rapariga, Mário Cláudio recua até à Inglaterra do século XIX para reconstituir uma das mais prodigiosas ligações da vida ao romance e do romance 
à vida – e assim encerra uma trilogia.
Com O Fotógrafo e a Rapariga, Mário Cláudio conclui uma trilogia iniciada com Boa Noite, Senhor Soares (Dom Quixote, 2008) e retomada em Retrato de Rapaz (Dom Quixote, 2014). Qualquer uma destas ficções se fixa na problemática da diferença de idades entre personagens centrais. Se, no primeiro, o autor ficciona o semi-heterónimo pessoano Bernardo Soares, cruzando-o com dados históricos e biográficos do próprio Pessoa, em Retrato de Rapaz executa um quadro de época que representa figuras reais, dotando-as de elementos romanescos baseados em dados historiográficos e da biografia. O mesmo paradigma está presente em O Fotógrafo e a Rapariga. Nele, Mário Cláudio efabula a relação entre o matemático, académico e clérigo Charles Dodgson, celebrizado com o pseudónimo Lewis Carroll, e Alice Lidell, “a do livro”, como diz aquela que esteve na origem das ficções de Carroll.

Os seis capítulos da novela são balizados por dois momentos paralelos à acção nuclear da obra. Numa espécie de prólogo na primeira pessoa, Alice começa por evocar um passado nunca completamente enterrado. É a oportunidade para o confrontar com a fatuidade baça do seu presente ancião, em que parece perdida num mundo de ritualismos e compromissos sociais que a ultrapassaram e desiludiram. A conclusão de O Fotógrafo e a Rapariga regressa à primeira pessoa, mas a de Carroll, real e figurativamente só, a bordo de um comboio, que é um comboio fantasma pois alberga todos os espectros desta criatura atormentada pelo demónio de uma sexualidade conturbada.
O Fotógrafo e a Rapariga desenvolve com enorme subtileza um tema particularmente atreito a equívocos e logros. A substância narrativa da novela, perturbantemente lírica, consegue equilibrar os diversos vectores em causa, sem que os seus esforços soçobrem numa tentativa demasiado histriónica de traduzir um caso complexo e patológico. A veia malsã de Carroll, sem ser camuflada, não constitui um padrão demasiado berrante na narrativa, que entretece a pulsação errática e desordenada da jovem com o caos interior do escritor-fotógrafo. O que não deve fazer pensar num resultado asséptico ou insípido. Pelo contrário. O subsolo da novela é, todo ele, uma camada tensa e reactiva, sob a qual se vai “ora ocultado a materialidade, ora desprendendo a fantasmagoria”. E em que inocência e perversidade não são dogmas que imobilizem a escrita.

Mário Cláudio falou, numa crónica (recolhida em O Eixo da Bússola, Quasi Edições, 2007), da “safra de prosseguir na escrita de livros e livros, mais oriundos da cadência da respiração do que obedientes a um projecto de carreira”. Podia comentar?
Sim, reconheço-me nisso. É a ideia de que uma carreira, para mim, não é alguma coisa vigiável. Não se deve talhar uma carreira em função daquilo que é a ressonância exterior do nosso trabalho. Em função das reacções do público, se vende muito ou se vende pouco, se interessa a este ou àquele, ao editor. São razões que acabam por penalizar o próprio autor. Acho que se, de facto, houver obediência a uma razão interior, em que as coisas saiam de dentro para fora e não resultem de fora para dentro, aí teremos, com certeza, maior hipótese de acertar no alvo. E o alvo é isto: a nossa coerência, a nossa identidade, aquilo que nós somos, independentemente do que os outros querem, ou que nos forçam a ser.

Falou de identidade. Quais acha que são os traços da sua identidade enquanto escritor?
São vários. Eu reconheço-me naquilo que tem sido, normalmente, apontado como mais identitário, e é um certo formalismo, em termos linguísticos, um barroquismo de estrutura. E isso obedece a um paradigma dual, entre o barroco e o clássico. Eu estarei no paradigma barroco, e não tenho qualquer problema em me sentir lá. Há também uma certa inscrição num Norte mítico, que não é só o Norte de Portugal, é também o Norte da Europa, uma escrita mais atlântica do que mediterrânica, se quiser, embora com algum apetite da solaridade mediterrânica. Tudo isso são elementos identificadores. Para além dessa tendência para especular com aquilo a que poderíamos chamar, genericamente, o humano. O humano sobretudo numa vertente biográfica. Humanos autênticos, humanos históricos, que passaram por cá, e que eu gosto de ler de acordo com os meus padrões de inteligibilidade. Com os meus padrões de sensibilidade, independentemente daquilo que poderá fazer parte das biografias oficiais mais ou menos canónicas.
No seguimento do que diz, acredita que tem alguma importância, para o estilo do autor, o local de onde ele provém?
Acho que sim. Sem dúvida. Um autor que renegue as suas origens, ou o faz de forma muito viva, optando por outras raízes, por outra área de inserção, outro nicho, ou… E não faltam exemplos de autores que fizeram isso. Logo em Portugal temos um caso paradigmático, que não foi propriamente um abandono das raízes, mas foi uma leitura das raízes da portugalidade à luz daquilo que foi a experiência parisiense. É o caso, por exemplo, do Eça de Queirós. Portanto, aí as coisas estariam certas, seriam absolutamente legítimas e compreensíveis. Mas quando há, digamos, uma estabilidade da raiz, quando a raiz não se altera facilmente, quando algum nomadismo e certa errância temporal não afectam o sedentarismo de base, aí, sim, deve-se abraçar essa dimensão sedentária e lidar com ela de uma forma apaixonada e comprometida. Estou a lembrar-me, por exemplo, do caso da Agustina, que tem um universo claramente português, dificilmente entendível fora de Portugal – e daí que ela seja uma autora tão pouco traduzida, apesar de o merecer. Estou a pensar no Aquilino Ribeiro, a quem aconteceu a mesma coisa. Estou a pensar num galês, John Cowper Powys, que é um grande génio da ficção, e que praticamente não é conhecido fora do País de Gales. Portanto, são figuras importantes, que abraçaram as suas raízes de uma forma tão profunda, e com tanta coragem, que a partir de certa altura se lhes tornou indiferente serem lidos, no sentido mais amplo da palavra, fora do terreno onde essas raízes se desenvolvem.

E para Mário Cláudio, qual é a marca de ser do Porto?
O Porto aparece em muitos dos meus trabalhos. N’ A Quinta das Virtudes, no Camilo Broca, para além das crónicas sobre o Porto que publiquei, e até num livro dedicado à cidade, chamado O Meu Porto. Portanto está, sem dúvida, muito presente. E está presente também, não só como uma paisagem que eu vivi, mas como uma raiz que eu assumi. Porque a minha família está aqui radicada há muitos anos. E é curioso que é uma família que tinha raízes noutros lugares da Europa, na Irlanda, em França e Castela, predominantemente, e que veio para aqui, que se misturou e criou aqui um clã. E isso também é abraçado naquilo que eu faço, portanto a dimensão da cidade é, para mim, intransponível.

O aspecto barroco, de que falou antes, tem alguma coisa que ver com isso?
Não tenho dúvida. É bom que fale nisso, porque eu acho que nós somos condicionados pelo lugar onde vivemos. Seria absolutamente impossível, falando de grandes escritores, pensar num Lampedusa fora da Sicília. Seria impossível pensar nas irmãs Brontë sem ser naquela dimensão de interior cemiterial britânico do século XIX. Ou pensar em Tennessee Williams sem pensar em Nova Orleães. Até é impossível pensar em Proust sem pensar em Paris. Temos aqui, de facto, uma identidade, e os autores que pretendem escrever para fora disso obtêm produtos muito artificiais, coisas um pouco plásticas. Às vezes, por uma ânsia de produzir alguma coisa que esteja à la page internacionalmente, o que resulta é uma ganga. Uma espécie de blue jeans, de blue jeans universais, que toda a gente reconhece, que toda a gente identifica, mas que não pertencem, afinal, a parte nenhuma. E nós sabemos que os blue jeans estão em toda a parte, até no mundo mais pobre.

Concorda que a inserção da biografia no romance, como a pratica Mário Cláudio, é um elemento pouco habitual na ficção actual? A que atribui essa presença na sua obra?
Eu acho que em todos os romances há um elemento biográfico. Não creio que seja possível superar isso. Até acho mais: os grandes romances são sempre romances biográficos. Tenho de falar dos grandes… daqueles que eu considero grandes romances. Guerra e Paz é um romance biográfico, de certa maneira; o Amor de Perdição é um romance biográfico, de uma outra maneira; Em Busca do Tempo Perdido é um romance biográfico, ainda de uma outra maneira. O Homem sem Qualidades é outro romance biográfico. Portanto, os grandes romances da literatura ocidental e que obedecem àquilo que é a tradição do romance francês do século XIX, primeiro romântico, depois realista e naturalista, são produtos muito ligados a lugares. Resultam da vivência dos respectivos autores nesses lugares. Quando isso desaparece, desaparece muita da autenticidade do romance, uma vez mais. Portanto, o elemento biográfico é tão forte no romance como o elemento romance é forte na biografia. Não é possível escrever uma biografia sem romance…
Lewis Carroll com Alice Liddell, para quem escreveria Alice no País das Maravilhas (1865) e Do Outro Lado do Espelho (1871) DR
Mas é verdade que nem todos os autores vão por aí…
Claro que não, claro que não. Pelo menos, afoitamente não terão ido, mas isso acaba por se manifestar de alguma forma. Mais uma vez, se pensar nos autores portugueses modernos, do século XX, desde os neo-realistas, até mesmo autores posteriores que pretenderam reagir contra o neo-realismo… Se pensar, por exemplo, no Finisterra, do Carlos de Oliveira, ou numa A Sibila, da Agustina, ou até nos próprios romances do Cardoso Pires, vai encontrar uma atmosfera que foi existencialmente vivenciada por eles. O mesmo terá acontecido com o Vergílio Ferreira, da Aparição, da Estrela Polar.

Em que medida se distingue o que Mário Cláudio fez em obras como Amadeu, Camilo Broca, ou Peregrinação de Barnabé das Índias, do que fez com Tiago Veiga (que surge em Boa Noite, Senhor Soares, de passagem), ou com António Nobre?
A minha tendência é sempre pensar mais naquilo que une esses vários trabalhos do que naquilo que os distingue. E aquilo que eu acho que os une é o que eu gosto mais de ver reconhecido no meu trabalho, uma coerência. Houve uma vez um crítico, que eu respeito muito, e que disse, a propósito de um romance meu, que não havia grande coerência nas coisas que eu escrevia. Foi a maior afronta que me puderam fazer, porque a coerência é, realmente, o valor por que eu tenho lutado mais ao longo do tempo. E há, de facto, um encadeamento de situações em tudo aquilo que eu faço. Provavelmente, o número três será identificativo desse encadeamento. Se as pessoas pensarem em tríades, provavelmente encontrarão esse encadeamento de uma forma mais visível. Mas eu não posso abandonar a ideia de que tudo aquilo que eu faço tem um passado e, eventualmente, um futuro. Um passado, na medida em que aquilo que eu estou a escrever hoje está contido no que estava lá atrás; e muitas vezes o que eu estou a escrever agora surge-me já como um primeiro degrau de um conjunto, normalmente de três, de outros degraus que me vão surgir no futuro em termos de programa de trabalho.

A propósito, como vê a figura de António Nobre, a nível da edição da obra e da recepção do poeta na actualidade? Acha que se faz e fez tudo o que se poderia fazer pelo poeta do , que Mário Cláudio editou (Alicerces, Correspondência com Cândida Ramos e sobre o qual fez uma Fotobiografia)?
Não, há muita coisa que ainda se pode fazer. Para já, o António Nobre é um autor muito mais lido a Norte do que a Sul. Ao contrário do que acontece com o Cesário Verde. Nós vivemos sempre essa dicotomia: o Nobre a Norte, o Cesário a Sul; o Camilo a Norte, o Eça a Sul. Isso provavelmente terá raízes antigas. São questões que têm mais que ver com a sociologia da literatura e da leitura do que propriamente com a teoria literária. E essas disciplinas, infelizmente, têm sido muito pouco estudadas entre nós. Mas acho que valia a pena. Há autores que têm uma inscrição regional muito grande, embora não sejam regionalistas; e há outros autores que têm uma dimensão nacional, ou que podem ter, e que acabam por ficar circunscritos a uma certa região. É o caso, por exemplo, do Teixeira-Gomes. E, no primeiro caso, poderíamos pensar num homem que está hoje completamente esquecido, mas que continua a ter uma grande bolsa de leitores no Alentejo, que é o Brito Camacho. Ou, aqui a Norte, o Guerra Junqueiro, que tem uma outra bolsa de grandes leitores em Trás-os-Montes, mas que não sai dali. E ainda jovens; tem mesmo leitores jovens. Esses fenómenos deveriam ser estudados com algum cuidado, mas não vejo que se lhes preste muita atenção. Eu acho que se pode ainda fazer muito pelo António Nobre. O que me interessa nele é, para além dessa inscrição a Norte, desse mundo setentrional que ele declinou de uma forma notável, também o carácter extraordinariamente inovador de uma poesia que, na altura, foi considerada absolutamente monstruosa, porque era mais prosa do que poesia, e que antecipou muito do que viria a ser a poesia do futuro. Eu acho que, quanto a isso, não preciso de dizer mais nada, porque o próprio Fernando Pessoa reconheceu quanto a poesia portuguesa devia à lição do António Nobre. Depois, o António Nobre é também um mistério, como acontece, aqui a Norte, com outros da mesma estirpe. Porque se trata de um homem muito pouco aculturado. Leu pouco, não era propriamente um poeta intelectual, como foi, indiscutivelmente, o Pessoa. Mas, apesar de tudo, inovou profundamente a linguagem poética portuguesa, antecipou coisas que apareceriam noutros países. Por exemplo, a introdução da toponímia no discurso poético, como fizeram os americanos da geração do Pound. E de uma forma muito natural, quase infantil. Mas continua a ser desprezado, sobretudo através do descaso a que foi votado o rasto que ele deixou. A casa onde ele morreu… que está a cair de podre, e não tem ninguém que lhe deite a mão. E era preciso que isso acontecesse, e que fosse a Câmara a fazê-lo. Porque, justamente, aqui na Câmara Municipal do Porto, existe todo o espólio, riquíssimo, do António Nobre, que está metido em gavetões e que ninguém vê. E podia ficar ali, criar-se, inclusivamente, um pólo equivalente à Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

Parece-lhe que existe, entre nós, um défice de biografias escritas por ficcionistas?
Eu ainda fui testemunha de uma época em que a biografia não era praticamente praticada em Portugal. Havia umas vagas biografias. De escritores, havia uma colecção chamada A Obra e o Homem, da Arcádia, que tinha biografias de alguns autores. Mas as grandes figuras históricas, ou eram biografadas por académicos, para uso académico, ou não tinham expressão em termos de livraria. A partir de certa altura, começou a haver um interesse pela biografia, que já vinha de longe. O Camilo Castelo Branco manifestou algum interesse, embora tivesse romanceado, em várias biografias, como a do Marquês de Pombal. Ou o Aquilino Ribeiro. E depois, é preciso dizê-lo, muito do labor biográfico feito em Portugal deve-se à Agustina Bessa-Luís. Não só a biografia de figuras, mas a biografia de situações. Situações históricas. Por exemplo, o período do 25 de Abril, com As Pessoas Felizes, ou com Os Meninos de Ouro, são, de alguma forma, biografias, ou até estudos históricos, de uma fase. Como o Sebastião José foi uma biografia do pombalismo, mais até do que uma biografia do próprio Marquês de Pombal. A partir de certa altura começaram, a surgir, e com um grande público, biografias de grandes figuras históricas, sobretudo do século XX: Salazar, Humberto Delgado… Levadas a cabo por historiadores, com critérios de grande escrúpulo, histórico, mas não são propriamente exemplares em termos literários. Como encontramos na tradição britânica, com nomes como Peter Ackroyd, ou [Ricard] Ellman, que são muito importantes no mundo da biografia, mas também são, eles próprios, grandes autores literariamente válidos pelo seu próprio direito. Isso, não temos, de facto. 

Porque será?
Não sei, não faço ideia. Há aqui esta impressão de que a biografia é para os cientistas da História, e o resto é para os outros. Eu devo dizer que acho que dei algum contributo, ao editar uma biografia, a do Tiago Veiga, que pouca gente terá lido, porque é muito grande e as pessoas são muito preguiçosas. Era uma biografia escrita com critérios da biografia como modelo literário.
Parece-lhe que o tema desta novela, O Fotógrafo e a Rapariga – a aproximação do fotógrafo Charles Dodgson/Lewis Carrol a Alice Lidell, “Alice, a do livro”, como ela diz de forma tão pungente –, é particularmente espinhoso?
É um tema muito arriscado. Tão arriscado como isto: levanta uma questão que tem a ver com duas palavras com as quais nós temos grande dificuldade em conviver quando estão ligadas, sexualidade infantil. As crianças têm sexo, e têm uma sexualidade. No entanto, continua a haver um sinal vermelho quando as pessoas falam na sexualidade das crianças. Porque aquilo que aconteceu à Alice, se é que aconteceu alguma coisa, ou pelo menos do ponto de vista mental, ou platónico, por parte do Lewis Carroll, podia ter sido mais bem entendido se, na época, houvesse a ideia de que as crianças não são anjos. Mas ainda hoje dizer isso é problemático. É um risco que se corre. Aquela menina não sabia, de todo, nada sobre a sexualidade humana, sou o primeiro a reconhecê-lo; mas tinha a intuição de que há manobras de sedução de uma criança relativamente a um adulto. Seja qual for o tipo da sedução. Sedução afectiva. Repare nisto: a fotografia que está na capa do meu livro [que reproduz um retrato de Alice Sidell, tirado por Carroll] é a capa de uma miúda que está a seduzir. Já sabemos que não é uma sedução sexual. Mas a pergunta que se faz é sempre essa: onde é que acaba a sexualidade e começa o afecto? E isso é um tema tabu. Não se pode especular muito. 

Mas Mário Cláudio correu esse risco…
Corro o risco de chamar a atenção para um aspecto que faz parte do humano. Nós sabemos, por exemplo, qualquer pessoa pode verificar isso, que os escritos sobre a sexualidade infantil do Kinsey – o grande sexólogo – nunca foram publicados. Continuam secretos. E eu não sei se isso é bom para as crianças. Não sei se isso é capaz de defender as crianças daquilo que é um crime hediondo, que é a pedofilia. Se calhar, o efeito é o contrário. Por isso é que eu convidei o Daniel Sampaio para fazer a apresentação deste livro, e ele aceitou imediatamente. Porque nos pode iluminar relativamente a uma paisagem em que nós andamos completamente às escuras, aos tropeções. E, sobretudo, a lutar com os nossos fantasmas e com os nossos medos. E é isso que me preocupa. Que as questões da pedofilia tenham suscitado o pânico que suscitaram, legitimamente, mas que haja uma vulgata, em termos de comunicação social, daquilo que é a pedofilia. Sobretudo, alertando as pessoas para que a maior parte dos casos ocorrem na família.

O Fotógrafo e a Rapariga encerra uma trilogia, após Boa Noite, Senhor Soares e Retrato de Rapaz. Além da diferença de idade (Bernardo Soares e António; Leonardo e Salai; Lewis Carroll e Alice), que outros pontos de contacto poderíamos detectar? A presença de uma arte: a escrita, a pintura/escultura, a fotografia, desde logo…
Sim, a diferença de idades. E as épocas, que são diferentes. Começou numa época mais próxima de nós, continuou numa época mais recuada e concluiu numa intermédia. Acho que é fundamentalmente isso: a dificuldade de diálogo entre pessoas que pertencem a gerações diferentes. Um sobressalto que paira sobre esse diálogo e que tem várias formas de expressão. E também, em qualquer destes casos, eu suponho que haja vários itinerários de solidão. Tanto a solidão do Sr. Bernardo Soares, que vê aquele rapaz com simpatia, mas que, no fundo, não significa nada para ele. Ele é um homem solitário e continua a ser solitário. O rapaz não consegue erigir naquela figura uma imagem paternal, porque é alguém muito distante. E faz o seu percurso apenas admirando de longe. No caso do Leonardo e do Salai, essa solidão é patente, num caso e noutro. Acaba por ser um diálogo de tontos, de pessoas que não chegam a funcionar. E no caso de Alice é mais do que patente. Desde logo, o itinerário do Lewis Carroll é de profunda solidão. É um homem que tem de viver com as suas pulsões horríveis e que tem de as administrar de uma forma ou de outra. Quanto a mim, ele administrou-as suprimindo-as. Não cedendo a elas, mas deixando sinais, aqui e além, de que o que se tratava era disso. E ela foi uma menina que foi triste no resto da vida. E eu tive o cuidado de dizer isso: por todos os motivos. E sobretudo por este: é que ficou conhecida para todo o sempre como “A Alice do livro”. Nunca teve propriamente uma individualidade. Casou com um tipo endinheirado, que era um desportista, e que não tinha interesses idênticos aos dela. E ela teve de arrastar essa solidão, porque era uma mulher inteligente, capaz, sensível, e que, no fundo, nunca se desprendeu daquela ligação com o Lewis Carroll até ao fim da vida.
A respeito de Lewis Carroll, falou das pulsões dessa conturbada vida interior dele. Isso ainda é um pouco escamoteado, não é?
Não, isso tem sido abordado, e às vezes tem-no sido desastrosamente. Aquilo que é mais desastroso é dizer que a relação do Lewis Carroll com a Alice era uma relação pedófila. Não era. Ele era um pedófilo, mas esta relação não era de pedofilia. Ele era um pedófilo que eu tenho a certeza quase absoluta que nunca praticou um acto de pedofilia. E não o fez porque tinha elevados valores morais, por um lado, mas, sobretudo, porque era um clérigo… Eu acho que as épocas, no fundo, acabam por ser todas iguais. Se ele quisesse prevaricar, tê-lo-ia feito, como fizeram muitos ao longo dos tempos. Era um pedófilo que estava ligado a uma Igreja, a anglicana, mas que se susteve e que viveu esse drama de uma forma pungente. E é preciso também pensar nisso. Esse homem fez um percurso infinito de solidão. Qual é a alternativa a esse percurso de solidão? Só há uma, é a terapia. É fazer uma terapia para que desapareça a solidão, desaparecendo a pulsão. Mas como é que isso se consegue, numa época em que nem sequer havia entendimento desse tipo de problemas?

Provavelmente, ele sublimou através da literatura…
Justamente. Sublimou através da literatura. Da literatura e da fotografia, deixando, de vez em quando, sobretudo nos diários, indicações de qual era o problema. Porque, além das meninas que ele fotografou nuas – fotografou várias meninas nuas, todas pré-púberes –, também fotografou rapazinhos. E há uma entrada no diário que diz assim: “Eu também fotografo rapazinhos, mas gosto muito mais de fotografar meninas, porque os rapazes têm sempre qualquer coisa a mais." Isto é uma confissão. Porque se o ingrediente não fosse erótico, tanto lhe fazia fotografar meninas como meninos. Mas havia ali uma erotização que o fazia sentir-se atraído mais por um sexo do que pelo outro. Portanto, há aí um elemento claramente sexual. Que ele suprimiu, que ele anulou. 

Qual dos livros desta sua trilogia envolveu mais pesquisa? De que tipo de pesquisa estamos a falar?
Acho que foi o Retrato de Rapaz. Aí tive de ler muito mais, porque há muita coisa sobre Leonardo. Há muitas biografias sobre todos eles, sobre a menina, sobre o Lewis Carroll, mas não há nenhuma biografia sobre o Salai. Eu não conhecia. Tive de lá ir. Estive em Vinci, na terra de Leonardo, durante uns tempos. Estive na Biblioteca Ambrosiana, em Milão, por causa dos códices do Leonardo, que estavam disponíveis na altura, e eu pude consultar. Foi uma coisa fabulosa, e aprendi muito, entretanto, sobre o Leonardo. Mais entre páginas do que nas páginas. Foi o que exigiu uma pesquisa mais aturada. Como é uma figura muito tratada, eu tinha de encontrar uma área de inventiva que não tivesse sido tocada. E isso não é muito fácil.

Em O Fotógrafo e a Rapariga, existirá, de parte a parte, de Carroll e de Alice, mais malícia, ou mais inocência? Ou ambas? Ou nenhuma?
Eu acho que mais inocência dos dois lados. Não vejo que haja malícia do lado dele. Acredito que haja na Alice, não aquela malícia ligada à sexualidade, em que estamos habituados a pensar, mas outro tipo de malícia. O que é que ela queria? Ela queria seduzi-lo para que ele lhe contasse histórias. Queria atenção, que ele lhe escrevesse histórias. Que a transformasse em heroína, que lhe comprasse bolos… E há uma malícia das crianças para isso, não vale a pena estarmos a escamotear as coisas… Não são anjos. Há crianças más e boas, como há adultos bons e maus. Só que ninguém o diz. E essa estandardização da criança e do adulto é que é um risco para a criança, e é capaz de ser também um risco para o adulto. É isso que torna determinadas relações entre adultos e crianças algo perigoso.
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Reportagem por 

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