sábado, 28 de março de 2015

A memória nas nuvens

 PAULO GLEICH*
 
Cedo ou tarde, toda conversa ou discussão acaba tendo um “momento quiz”. Quem era mesmo o protagonista daquele filme? Qual time foi rebaixado no campeonato local em 86? Antes as mentes reviravam aflitas suas gavetas atrás de respostas, hoje bastam alguns movimentos dos dedos para encontrá-las em smartphones e tablets. Há quem se ressinta da intromissão digital em conversas analógicas: existe prazer em ficar quebrando a cabeça para desvendar o mistério momentâneo. É provável que o Google acabe enterrando esse jogo social em alguns anos – entre outras coisas.

Como não fui abençoado com a melhor das memórias – salvo a peculiar memória inconsciente que funciona quando escutamos os pacientes –, considero uma bênção ter essa espécie de HD externo portátil. A nuvem, que acessamos com esses dispositivos, é um repositório de dados virtualmente infinito. Lá, estão guardados para acesso imediato informações de todas as espécies, de simples números de telefone a textos clássicos, passando por imagens, vídeos, músicas, podcasts, e-mails, bases de dados.

Em As Tecnologias da Inteligência, o filósofo Pierre Lévy compara o surgimento dos meios digitais à invenção da escrita, em termos do impacto sobre a humanidade. Se ele tem razão só o tempo dirá, mas não há dúvida de que está em curso uma transformação importante na forma com que lidamos com o saber. A lógica linear inaugurada pela escrita, que possibilitou o registro e, portanto, a invenção do tempo e da história, vai dando espaço para a lógica fragmentada, instantânea, efêmera das redes do mundo digital.

Estudos têm demonstrado que retemos cada vez menos dados na memória com o crescente uso desses dispositivos. Uma porque somos inundados por uma quantidade cada vez maior de informações, das mais importantes às mais banais, e tudo ao mesmo tempo. Outra porque o cérebro sabe que pode muito facilmente encontrá-las, não tem mais por que armazenar tanta coisa. Fala-se em perda de memória e de outras capacidades, mas o que esses estudos revelam é a forma como nos adaptamos, às vezes com assustadora plasticidade, ao mundo artificial que começamos a criar milhões de anos atrás.

Deparar-se com essas transformações eventualmente nos deixa desnorteados, pois elas têm também efeitos sobre como nos pensamos e constituímos como indivíduos. Nossa subjetividade, que temos como algo íntimo e imutável, se forma em grande parte a partir do que vem de fora de nós. Deparar-nos com lógicas estranhas às que originalmente nos constituíram pode gerar estranhamento, angústia, resistências. Sobretudo em relação às gerações mais novas, nas quais é visível como essas tecnologias influenciam capacidades cognitivas e modos de ser. Os mais catastróficos temem o fim dos tempos, o retorno à barbárie – é o fim do saber e da memória, é o fim da história!

Concordo com Lévy, que não dá muita fé aos presságios apocalípticos. Mas em algo eles têm razão: é possível que estejamos vivendo o fim dos nossos tempos, da forma como os (e nos) conhecemos. Porém, assim como a escrita não substituiu, mas sim se somou à oralidade – ela foi o primeiro HD externo da humanidade! –, também a lógica dos tempos digitais não substituirá as que a antecederam. A coexistência das três, no entanto, constitui algo novo, cujos efeitos apenas iniciamos a entrever.

A nostalgia dos tempos “melhores” e as visões catastróficas do futuro que muitas vezes nos afetam são formas de nos protegermos da angústia causada pelo desconhecido. São porém uma tentativa pouco eficaz de evitar mudanças que já estão em um curso impossível de reverter. Já que não voltaremos às eras pré-digitais, gourmetizadas pelas distorções e enganos que caracterizam a memória humana, mais vale fazer um esforço para encarar o porvir mais despidos de preconceitos. Quem sabe assim possamos ir aos poucos entendendo – e aprimorando – esse mundo que está se desenhando?
--------------
* Jornalista e psicanalista.
Fonte: ZH online, 29/03/2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário