quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

QUARESMA

João Sayad*
 
"A educação é importante porque aumenta a empregabilidade, a produtividade, a renda, as exportações e reduz a violência. O ensino técnico explodiu em São Paulo e no Brasil. Formamos encanadores, torneiros mecânicos, cabeleireiros especializados em tintura, em rastafari etc. Mas têm aulas de história? De literatura, música ou de cinema? Ensina a 
se comportar na rua?"

"A solução é a educação? - pergunta o ex-ministro. A União Soviética e a Rússia que a sucedeu tem o maior contingente de cientistas em ciências exatas, matemática, física, química, grandes escritores, dramaturgos e poetas. E continua a Rússia, muito distante dos Estados Unidos e da Europa, pouquíssimo democrática, belicosa e preocupada com o Império Russo e um passado militar glorioso. E onde os russos passam frio e sentem fome. Por que a Rússia não deu certo?"

Eis o artigo.

O leitor me desculpe, mas esse artigo é arrogante e pessimista. É sobre o Brasil, suas mazelas econômicas, as cidades feias, as ruas estreitas e sujas, a corrupção, o cinema, a arquitetura e os debates que ocupam as páginas de todos os jornais. Estamos na Quaresma, tempo de penitência, jejum e reflexão.

Uma parte do sentimento de luto vem da propaganda eleitoral. Foram dois meses de louvor e glória ao Brasil e aos brasileiros "guerreiros" (influência dos livros de autoajuda?), os pobres comprando casa própria, estudando na universidade no Brasil e depois no exterior e tantas outras coisas boas. O Brasil da propaganda ficou tão longe do que apareceu depois - violência, falta de água, de energia elétrica, corrupção, os preços baixos do petróleo e o desaparecimento da dinheirama do pré-sal que seria usada em educação e saúde. A propaganda eleitoral sublinhou involuntariamente a tristeza do país depois das eleições.

Já se disse que o luto, o sofrimento da perda, é a condição necessária para a manutenção da saúde mental.
 
A propaganda eleitoral sublinhou involuntariamente 
a tristeza do país depois das eleições

Devemos ser gratos à propaganda eleitoral e à histeria do carnaval, com músicas sem graça e alegria injustificada. A propaganda eleitoral transformou todos os brasileiros em parentes desolados e surpresos pela morte súbita de alguém querido e saudável que de repente foi levado desta para outra vida por um assaltante drogado; por um ônibus queimado; por um motorista bêbado ou pela queda de uma árvore. Uma morte inesperada, o luto mais doloroso, mais longo e por isto mesmo, mais produtivo.

Por que o Brasil é tão pequeno? Tão pobre? Tão voltado para o próprio umbigo - mais Estado ou mais mercado? mais punição ou mais corrupção? ciclovias? mais desmatamento ou mais água? por que tanta violência?

A Riqueza das Nações apresenta uma explicação. A riqueza de um país depende do tamanho do mercado e da divisão do trabalho que ela propicia. Mas fomos sempre especializados - em pau-brasil, cana-de-açucar, ouro, café, agricultura de alto rendimento. O Brasil é um país rico. Mas continuamos pobres e pequenos.

A solução é a educação? A União Soviética e a Rússia que a sucedeu tem o maior contingente de cientistas em ciências exatas, matemática, física, química, grandes escritores, dramaturgos e poetas. E continua a Rússia, muito distante dos Estados Unidos e da Europa, pouquíssimo democrática, belicosa e preocupada com o Império Russo e um passado militar glorioso. E onde os russos passam frio e sentem fome. Por que a Rússia não deu certo?

A educação se tornou uma grande prioridade. A população em idade escolar está matriculada, as matrículas no ensino superior explodiram e não há discurso no país que não diga que educação é a prioridade.

Mas é um discurso economicista. A educação é importante porque aumenta a empregabilidade, a produtividade, a renda, as exportações e reduz a violência. O ensino técnico explodiu em São Paulo e no Brasil. Formamos encanadores, torneiros mecânicos, cabeleireiros especializados em tintura, em rastafari etc. Mas têm aulas de história? De literatura, música ou de cinema? Ensina a se comportar na rua?

E o debate é sobre ensino gratuito ou pago. Nos anos 60, Theodore Schultz criou o conceito de capital humano - o aluno deixa de ganhar uma renda maior agora, ficando na escola, e recebe com juros e dividendos uma renda maior no futuro porque estudou. Se a educação aumenta o capital humano do aluno, ele deve pagar por isto.

Será? O cidadão educado obtém um capital privado (o que pode ganhar a mais) e um capital público (o que aumenta sua produtividade, mas não aumenta o seu salário). Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Cesar Lattes, Antonio Cândido, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Mario Simonsen, Delfim Netto, o educador Paulo Freire e Luis Gama, Castro Alves e Olavo Bilac que estudaram na São Francisco (seria grátis naquela época?) conseguiriam ter pago pela sua educação? Receber salários maiores que os salários dos não educados justificaria a cobrança? Ou eles produziram muito mais para o país, um bem público, do que para si mesmo?

Educar vem de conduzir. Vamos conduzir os brasileiros para onde e para fazer o que? Vamos ensinar como trabalhar com planilhas Excel? Os problemas do mundo se resumem a problemas econômicos? Vamos ensiná-los sobre as desigualdades e injustiças do mundo e treiná-los em retórica e guerrilha urbana? Destruir o que aí está sem saber o que colocar no lugar? Ou vamos dar pelo menos algumas aulas sobre os clássicos - Dante, Shakespeare, Drummond e ensiná-los sobre culpa, ética, vaidade, orgulho, honra, a inveja - que dilacera os brasileiros - nossa humanidade e o sentido da vida?

Há uma outra explicação para a riqueza das nações - de James Robinson e Daron Acemoglu no livro "Por que as nações falham?" O país rico é rico porque oferece livre acesso ou oportunidades iguais para todos. Não é a educação, ou o mercado, mas a livre entrada - a facilidade para explorar uma invenção, para entrar na universidade, para produzir uma obra de arte, a liberdade enfim.

Não sei explicar: por que as obras não ficam prontas; por que as escolas não funcionam bem; por que as ruas são sujas e estreitas, por que falta água e energia. Por que as praias mais lindas se tornam as praias mais feias com tantos prédios e quiosques espalhando cheiro de fritura? Por que o cinema brasileiro é menos interessante que o argentino? Por que as casas dos ricos que podem contratar arquitetos são mais feias do que as casas dos ricos dos países ricos, apesar do Rino Levi, do Niemeyer e do Paulo Mendes da Rocha? Porque os prédios são feios? Por que?

Podemos encontrar uma explicação para cada problema. Mas são tantos problemas - será que existe uma explicação comum para tantas frustrações? Será culpa do patrimonialismo do Raymundo Faoro? Da dependência externa do Celso Furtado? Da escravidão? Dos portugueses? Será o câmbio? O deficit público? A taxa de juros? Os impostos?

Acabo com uma explicação que não explica. Trata-se de um problema cultural - tradição, valores éticos, formação ou falta de formação religiosa (qual religião?), atitude perante a vida e o sentido da vida, ou seja, tudo e nada ao mesmo tempo. Paciência e recolhimento, não sabemos explicar.
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*João Sayad, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, em artigo publicado pelo jornal Valor, 24-02-2015.
Fonte: IHU online, 25/02/2015
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