sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

FANTASMAS DE MODINO

Tatiana Salem Levy*
Cris Bierrenbach
Estou cada vez mais convencida de que a literatura tem a ver é com fantasmas. Escrever - e ler - é dialogar com os fantasmas pessoais, os fantasmas da história, os fantasmas dos personagens e os fantasmas da própria literatura.

Por isso, gostei de retomar a obra de um autor que eu tinha lido fazia muitos anos e acabou de ganhar o Prêmio Nobel: Patrick Modiano. Em seus livros, os fantasmas sempre aparecem e deambulam pelas mesmas ruas que os outros personagens. Mas não há nada de sobrenatural nisso, pois eles não surgem do além para assustar ou revelar um segredo. Ao contrário, fazem parte do cotidiano dos personagens, como se afirmassem que todo homem é também aqueles que passaram pela sua vida.

Modiano foi um dos primeiros artistas a denunciar a participação da França na perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra. O colaboracionismo está presente na maior parte de seus romances, revelando a sua necessidade de falar do passado recente, e obscuro, do país. Aqueles que denunciaram, que colaboraram, e também aqueles que morreram, ainda circulam pelas ruas de Paris. Há, com frequência, a busca por algum ser perdido num tempo anterior, e é essa busca que move os personagens.

No romance "Dora Bruder", o narrador parte de um classificado sobre Dora para chegar à colaboração e a Auschwitz. Anos depois da sua publicação, Modiano afirmou: "Mais tarde, recebi outros documentos sobre Dora. Eu me perguntei se valeria a pena reescrever o romance ou não. Decidi que não. Não sou historiador. Sou romancista. Não importa tanto o resultado da busca quanto a busca em si".

É isso que está em questão em seus livros: a busca pelo passado, a partir de seus vestígios, de pequenas lembranças que podem surgir de repente, como se nada fossem. Em "Les Boulevards de Ceinture", publicado em 1972, o narrador vai atrás do próprio pai, Chalva, que ele viu poucas vezes na vida. Serge Alexandre, que se apresenta como escritor, tinha 17 anos quando o encontrou pela primeira vez, na saída da escola. Terminados os estudos, foi viver com ele, sempre em lugares imprecisos, estranhos, mas com a promessa de que nunca mais se separariam.

Chalva falsificava dedicatórias de autores importantes para vender livros usados a preços altos. Serge acabou seguindo os passos do pai, um apátrida nascido em Alexandria, até o dia em que, na confusão do metrô, teve a sensação de que ele o empurrara, com a intenção de matá-lo. Depois desse "episódio doloroso da estação de metrô George V", como o narrador se referia ao ocorrido, eles se perderam de vista.

Dez anos mais tarde, Serge vai à sua procura no campo, durante a Ocupação alemã, e o encontra com os amigos Jean Muraille e Guy de Marcheret, responsáveis pela publicação de um jornal de denúncia e chantagem chamado "C'Est la Vie". No entanto, nunca fica claro se esse suposto encontro ocorre na realidade, na imaginação ou no livro que o próprio Serge está preparando. São imprecisas as fronteiras entre a realidade e o delírio, uma espécie de conversa íntima e silenciosa à qual temos acesso através da escrita.

Em determinado momento da sua conversa solitária, Serge comenta: "Você não mudou muito. Há pouco, quando entrou no bar do Clos-Foucré, a sua maneira de andar era a mesma". Assim como eram os mesmos o seu caráter escorregadio, a sua origem desconhecida. Seria um judeu acossado? Um traficante? O universo de Chalva é desconhecido para o filho. Por isso, Serge debruça-se "sobre esse seres desenraizados, sobre esses marginais, para reencontrar, através deles, a imagem fugidia do meu pai. Não sei quase nada sobre ele. Mas inventarei".

Os fantasmas são seres que só podemos conhecer melhor pela nossa imaginação. Já partiram, e aquilo que nunca soubemos a seu respeito apenas podemos imaginar, a partir de um dado ou outro. Ao longo do romance, as lembranças aparecem como pequenas pistas que, eventualmente, se desdobram em respostas na longa busca realizada por Serge. Quando ele se lembra de que Chalva adorava a antiga linha de caminho de ferro que dá a volta a Paris, encontra nesse fato um possível sinal. Será que o pai estava à espera de um trem que já havia passado? Ou de um trem que nunca passaria?

Essa imagem logo me remeteu ao romance "Austerlitz", de W.G. Sebald, do qual já falei em outra coluna. Embora desconheça a própria história, Jacques Austerlitz tem um fascínio por estações de trem. Cinquenta anos depois de ter sido enviado num vagão para a Inglaterra, aos cuidados de uma família adotiva, ele descobre a sua origem, que caminha de mãos dadas com a história, mais especificamente com os horrores da Segunda Guerra. Em Sebald, como em Modiano, o passado sempre retorna, de uma forma ou de outra. Em realidade, o passado nunca parte, e é por isso que os personagens buscam um nome e um sentido para ele. Ainda que esse nome e esse sentido precisem ser inventados.

Por isso, Jean Bosmans, protagonista de um romance mais recente de Modiano, "L'Horizon", anota num caderno preto, de capa plastificada, os excertos enigmáticos que de vez em quando atravessam a sua memória. Não quer voltar a esquecê-los. Mais do que isso: quer costurá-los, na tentativa de remontar no tempo. No entanto, à medida que escreve sobre eles, também experimenta algumas dúvidas: "Por que seguira aquele caminho e não outro? (...) E se a memória o estivesse traindo?" Entra em vertigem pensando naquilo que poderia ter acontecido e não acontecera.

No decorrer do romance, os fantasmas vão ganhando forma e voz, e a história de Margaret Le Coz, uma bretã nascida em Berlim por quem ele se apaixonara décadas antes, se mostra de enorme importância. Eles ficaram juntos apenas alguns meses, até o dia em que Margaret partiu e, apesar das promessas, nunca mais deu notícias, tornando-se uma interrogação em sua vida, assim como a sua mãe.

Bosmans é filho de uma "mulher de cabelo ruivo e olhar seco", que de vez em quando atravessa seu caminho, estende a mão e pede-lhe dinheiro. Os pais aparecem como figuras monstruosas nesses dois romances de Modiano. Em "Les Boulevards de Ceinture", o pai tenta matar o filho. Em "L'Horizon", a mãe persegue Bosmans em busca de uma esmola. E, no entanto, por mais que os protagonistas tentem fugir de seus progenitores, também precisam encará-los. Diz Serge: "Você me interessava, pai. Temos sempre curiosidade em conhecer as nossas origens".

Enquanto eu lia esses livros, foram surgindo excertos da minha memória de um tempo em que eu vivia em Paris e circulava pelas mesmas ruas que Modiano descreve com tamanha habilidade. De repente, lembrei-me de um menino de cerca de 8 anos caminhando pela cidade em preto e branco, na tela da cinemateca. Era o filme de Georges Perec, "Os Lugares de uma Fuga", em que um menino foge da casa dos tios e deambula por Paris. E me lembrei também de um livro que li nessa altura, "Noturno Indiano", de Antonio Tabucchi, em que um personagem passeia pela Índia como um nômade, sem saber para onde vai, mas com a certeza de que o importante é o caminho.

O protagonista do escritor italiano se parece com os personagens de "L'Horizon". Essa semelhança fica evidente no instante em que Bosmans afirma, acerca de Margaret Le Coz: "Nunca regressara ao ponto de partida. E, de resto, nunca houve ponto de partida, como acontece com as pessoas que dizem ser originárias de certas províncias e aldeias aonde vão de vez em quando". Sem ter para onde retornar, só lhes resta seguir em frente, sem rumo.

Há, nos livros de Modiano, a sensação recorrente de estar perdido e o desejo de fuga, de diluição, misturados a uma profunda necessidade de voltar no tempo para descobrir suas raízes. Porque, de uma forma ou de outra, os fantasmas estão sempre aqui, ao nosso lado, e mais vale dialogar com eles do que ignorá-los. Talvez seja a única forma de esquecê-los, de se libertar de um peso. A única forma de fazer que "as ruas desertas e silenciosas do bairro" se tornem linhas de fuga que conduzem não para o passado, mas para o "horizonte".

Ao saber da notícia do Nobel, Modiano comentou que tinha a impressão de ter escrito sempre o mesmo livro. Segundo ele, cada romance constitui a tentativa de melhorar o anterior. Eu diria que é como se seus personagens tivessem começado uma longa caminhada pelas ruas de Paris há muitas décadas e nunca tivessem parado de andar. Sempre em busca de explicações que não chegam, de fantasmas que permanecem enquanto tais.
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*Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora.
E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 05/12/2014

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