sexta-feira, 7 de novembro de 2014

UM FILÓSOFO DO PRESENTE

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 Wonsuk Choi/Getty Images
 Rancière: redes sociais não resolvem tudo, mas permitem emergência de renovação democrática 
às margens do poder tradicional

Jacques Rancière é um filósofo do presente. E isso não quer dizer apenas que, aos 74 anos, continua escrevendo como nunca. Significa também que seu pensamento é profundamente ligado a questões e problemas atuais, seja o fortalecimento dos partidos de extrema-direita na Europa ou os novos movimentos políticos ligados às redes sociais.


"O Ódio à Democracia", livro agora lançado no Brasil, parte da análise da sociedade contemporânea para refletir sobre a crise nas democracias representativas. "O Fio Perdido", seu último ensaio sobre a ficção moderna publicado neste ano, tematiza os efeitos políticos positivos das transformações na literatura. O pensador recebeu a reportagem em seu apartamento parisiense para esta entrevista. Discípulo dissidente de Louis Althusser (1918-1990), o ex-professor da Universidade de Paris 8 associa arte e política ao elaborar o conceito de democracia estética que relaciona a manifestações políticas alternativas. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor:


Valor: Como o senhor vê o fortalecimento dos partidos de extrema-direita na Europa e a vitória do Front National nas eleições para o Parlamento Europeu?

Jacques Rancière: É preciso evitar fazer do aumento de poder da extrema-direita a causa da crise da democracia. Ao contrário, é justamente porque as sociedades ditas democráticas o são cada vez menos que assistimos a esse fortalecimento da extrema-direita, particularmente na França. Aquilo que chamamos de democracia representativa corresponde de fato a uma oligarquia com legitimação democrática. Trata-se de um regime fundado em lógicas contraditórias. Ele repousa em princípio sobre o poder do povo, mas na verdade é a cada vez mais confiscado por oligarquias burocráticas ligadas às grandes fortunas. Consequentemente, a realidade de um poder do povo é cada vez mais limitada e sua ideia se torna problemática. Em razão da mundialização e da crise econômica, nos encontramos supostamente numa situação em que tudo deve ser objeto do cálculo de um expert. Assim, há um agravamento da contradição estrutural de nosso regime e, portanto, um distanciamento de toda ideia e de toda prática de um poder do povo. A reação mais espetacular a isso foi o fortalecimento de forças conservadoras capazes de reivindicá-lo para si.


Valor: Como assim?

Rancière: Não explicamos a vitória do Front National simplesmente com a pressuposição de que o aumento da imigração traz o racismo e a xenofobia. Essa força subiu porque pôde dizer "direita ou esquerda é a mesma coisa" já que nos confrontamos com um sistema de confiscação do poder por uma pequena oligarquia burocrática. É com a ideia de dar novamente poder ao povo que a extrema-direita francesa ganhou as eleições, recrutando eleitores até mesmo na classe operária, que votava tradicionalmente no Partido Comunista. Acredito que há na Europa um déficit de democracia cada vez mais importante, e infelizmente a instância capaz de encarnar uma força popular foi a extrema-direita.


"Há na Europa um déficit de democracia (...), e infelizmente a instância capaz de encarnar uma força popular 
foi a extrema-direita", diz


Valor: Nesse contexto de crise das democracias representativas, as redes sociais na internet podem ajudar a criar um novo tipo de espaço público e de configuração democrática?

Rancière: As redes sociais não resolvem tudo por elas mesmas. Nós sabemos que todas as forças políticas, mesmo as mais reacionárias, utilizam esse meio para difundir suas ideias. Dito isso, o importante nas redes sociais é a possibilidade de criar formas de discussão e de reunião independentes em relação aos partidos políticos e aos sindicatos tradicionais. Movimentos como o do 15 de maio na Espanha, o dos indignados ou a Primavera Árabe se constituíram através dessas formas novas de relação, de abertura de fórum e de convocação popular ligadas às redes sociais. Elas permitiram a emergência de uma renovação democrática às margens das instâncias de poder tradicionais, dos partidos parlamentares e também das organizações revolucionárias autoproclamadas. Há nisso um fator de democracia, em todo caso de uma certa manifestação da democracia nos dias de hoje.


Valor: De que maneira esse fator de democratização se configura? Não há um risco de dispersão ou um desvio das reivindicações iniciais nos movimentos promovidos através das redes sociais?

Rancière: Podemos dizer que as redes sociais produziram formas de discussão que também estão deslocadas em relação à lógica tradicional da reivindicação e da ação reivindicativa. Penso, por exemplo, no que se passou na Turquia, onde a questão de permitir ou não que se abatessem árvores num parque se transformou numa discussão sobre o espaço público. A questão do espaço público tem sido recolocada por meio da junção entre o espaço concreto material - a praça, a rua que é ocupada - e essas redes sociais, que desempenham o papel de local de discussão. Então não há uma simples dispersão, mas uma nova lógica de discussão. Nos movimentos políticos ligados às redes sociais, os debates não estão mais concentrados em objetivos precisos de ação e na escolha de uma estratégia determinada para obtê-los. Há uma espécie de transbordamento da exigência de discussão e, por consequência, formas de dispersão em relação às reivindicações diretas. Mas isso é ao mesmo tempo um sinal de que, através destas - quer seja impedir a transformação de um jardim em supermercado e em caserna ou o aumento das tarifas de transporte, como foi o caso no Brasil -, uma exigência democrática bem mais ampla se manifesta. Nessas situações, a necessidade de refletir sobre o que se passa e de inventar novas formas de comunicação ocupa o primeiro plano em detrimento de objetivos precisos.


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Um dos protestos de 15 de maio em Paris: "Ligações não cessam de se estabelecer entre formas de performance artística 
e formas de performance política. É o que se passou na Primavera Árabe
 ou no movimento do 15 de maio"


Valor: Em "O Ódio à Democracia", o senhor afirma que o medo das classes mais favorecidas diante da enxurrada democrática que transformou a sociedade francesa no século XIX, com a democratização do acesso ao consumo e à cultura, se traduz também na rejeição de novas formas de construção frasal na literatura. As consequências políticas das transformações na ficção literária constituem o objeto de "O Fio Perdido", seu último livo (ainda sem tradução no Brasil). De que maneira inovações significativas no plano literário se traduzem em efeitos políticos?

Rancière: Houve um momento, essencialmente no século XIX, no qual a literatura teve um efeito democrático à sua maneira - e não necessariamente nas ideias dos escritores, mas na instauração de formas de olhar e de escrever que abriam espaço para uma certa igualdade: todo mundo passava a ser interessante. Qualquer personagem popular - uma mulher do povo ou um empregado considerado subalterno - passou a ser mostrado nas obras literárias como alguém capaz de sensação e de emoção igual a todos os indivíduos das classes ditas cultivadas e refinadas. Para representar isso, a literatura da época inventou formas de frase e de percepção que não eram mais pautadas pelas grandes ações, mas se interessavam pelo cotidiano, pelos microeventos com os quais são tecidas todas as vidas. Isso foi o fato da literatura no século XIX. Hoje estamos numa situação bem diferente. Nesse meio tempo, outros media desempenharam esse papel. Eu penso, por exemplo, no cinema, que também propiciou a entrada de qualquer um no reino da arte, o que significa abrir a todos a esfera de uma riqueza de pensamento, de emoção e de percepção partilhada. Esse momento cinematográfico sucedeu ao momento literário.


Valor: Como o senhor vê essa correlação entre inovações artísticas e políticas nas sociedades contemporâneas?

Rancière: Hoje em dia é bastante difícil definir inovações literárias ou artísticas... Não poderíamos dizer que elas servem, especificamente, à democracia, mas vemos, entretanto, que uma série de ligações não cessam de se estabelecer entre formas de performance artística e formas de performance política. É o que se passou na recente Primavera Árabe ou no movimento do 15 de maio, assim como na Turquia e na Grécia. Há uma espécie de convergência entre formas artísticas performáticas e formas propriamente políticas. Penso, no entanto, que se trata de algo diferente daquilo que chamei de democracia literária ou estética. Atualmente, há uma partilha bastante vasta das capacidades de experiência perceptiva, sensível, que passa por toda uma série de artes e cria uma espécie de tecido democrático capaz de ligar as pessoas que vão se reunir numa praça em Atenas ou Istambul. Efetivamente, isso passou pelo cinema, passou pela música, passou pela performance... Acredito que há uma espécie de apagamento das fronteiras entre arte nobre e arte não nobre, criando algo como uma democracia estética larga, que pode ser verificada nos movimentos populares recentes. Hoje em dia, toda manifestação assume o jeito de uma performance artística tanto pela atitude física dos manifestantes quanto pelas palavras e imagens que eles vão mostrar na rua. Há uma espécie de aparição de uma democracia estética que se transforma, nas ruas, em democracia política.


"O Ódio á Democracia"

Jacques Rancière. Boitempo, 
26 págs., R$ 29,00
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Reportagem por Patricia Lavelle é doutora em filosofia pela École de Hautes Études en Sciences Sociales
Fonte: Valor Econômico online, 07/11/2014

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