quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Os mortos e seus inimigos

Mario Sergio Conti *

Dois livros que saíram há pouco, aqui e nos EUA, ajudam a entender o legado de Walter Benjamin

No leito de morte, o velho revela aos filhos a existência de um tesouro nos seus vinhedos. Os filhos procuram, cavam, e não descobrem nada. Só no outono, quando as uvas brotam em abundância, os filhos compreendem que o pai lhes transmitira uma experiência: a riqueza está na terra e no trabalho, e não num tesouro herdado. Quem conta a parábola é Walter Benjamin, o grande crítico cultural alemão que o nazismo levou ao suicídio em 1940. Ele nos legou um tesouro, uma experiência ou os dois?

Dois livros que saíram há pouco, um nos Estados Unidos e outro aqui, oferecem balizas para situar respostas. Mas não podem dar réplicas taxativas por razões objetivas (o Anticristo reina, soberano) e subjetivas (Benjamin resiste ao entendimento pleno — qualidade que ele via na arte).

O primeiro livro, “Walter Benjamin — A critical life”, é um tijolo de 755 páginas escrito por dois professores americanos, Howard Eilan, do MIT, e Michael W. Jennings, de Princeton. Com essas credenciais, compuseram uma biografia acadêmica cuja maior virtude está no resumo dos ensaios de Benjamin, que é feito sem a pretensão de dar-lhes interpretação unívoca. Como editores e tradutores da sua obra, os autores têm um conhecimento interno dela, e a esmiúçam.

Em contrapartida, eles não têm a sensibilidade adequada — materialista e radical — para captar a dimensão política do biografado e da época tumultuosa em que viveu. As disputas entre a socialdemocracia e o comunismo na Europa, bem como entre reformistas e revolucionários, lhes são absolutamente alheias, mas esclarecem muito do que ele escreveu.

Eilan e Jennings transcrevem vários depoimentos para demonstrar que Benjamin tinha uma personalidade elusiva, incorpórea. Não coonestam, porém, com a imagem que hoje se tem dele: um anticapitalista romântico; marxista mais literário e light do que militante; anjo da esquerda perdido no mundo infernal da necessidade. Ao contrário, mostram um intelectual neurótico, às turras com o pai por questões de dinheiro, vaidoso de sua reputação, maniacamente devotado a duas coisas: a sua obra e o sexo. “Tudo que ele é agora é cérebro e sexo”, escreveu Dora, com quem ele casou e teve um filho.

O segundo livro tem o título inefável de “Limiar, aura e rememoração — Ensaios sobre Walter Benjamin”. Lançado pela editora 34, foi escrito pela professora suíça Jeanne Marie Gagnebin, que mora em São Paulo e dá aulas na PUC há mais de três décadas. Ela nota que nos últimos tempos houve uma enxurrada de estudos sobre Benjamin. E se pergunta se ele não estaria a se tornar mais um “bem cultural”, uma mercadoria num mundo já atulhado delas. A sua resposta olha para frente e para trás.
Para frente: Gagnebin acha que os livros de Benjamin podem ser sucesso de venda e, ao mesmo tempo, sinais antecipatórios “de uma outra vida e de um outro tempo”. Para trás: o escritor percebeu com acuidade ímpar que a transformação de produtos da cultura em mercadorias altera a “relação do presente com os usos e costumes do passado”.

O ensaio final, “Esquecer o passado?”, junta essas duas pontas e fere a atualidade. O tema dele é a ditadura militar no presente: a anistia; o legado dos torturadores, a recusa institucional e estatal em processá-los; a imposição do esquecimento; e, em decorrência, mesmo sem nomeá-los, a recusa dos presidentes FHC, Lula e Dilma (até agora), em enfrentar a fantasmagoria do passado.

Só de tocar na questão é possível ouvir o suspiro enfadado da leitora: esse papo revanchista de novo; melhor deixar do jeito que está; o passado é imutável; não convém mexer com generais de pijama para não melindrar os fardados; vamos em frente. Vamos em frente, então. Vamos sair para a rua.

E o que encontramos? Uma passeata no coração de São Paulo, vozes que se levantam no céu da História. Ela propugna a destituição sumária da presidente eleita — sem provas, sem processo legal e sem julgamento. Alguns dos que desfilam defendem a tortura, os assassinatos políticos, do império da força sobre voto; a ditadura, em suma. Eram vivandeiras alvoroçadas, bolindo com os granadeiros e provocando extravagâncias do poder militar?

Não. Tanto que aos gritos se seguiu o silêncio interesseiro de tantos líderes políticos que se dizem democratas. O que os manifestantes e os líderes dirão do relatório final da Comissão da Verdade, que sairá em semanas?

Benjamin talvez recomendasse desconfiança ante qualquer forma de entendimento mútuo, de conciliação. Cada época deve libertar do conformismo uma tradição que está sendo violada por ele. O Messias não vem apenas como redentor; vem também como o vencedor do Anticristo. O inimigo vitorioso não irá se deter diante dos mortos. E o inimigo não tem parado de vencer.
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* Colunista do Jornal O Globo
Fonte: O Globo online, 06/11/2014
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