segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O que são, afinal, a direita e a esquerda?

 
Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.
[Raph] Uns dizem que tudo começou com Hobbes e Rousseau, mas a história mais aceita é a que diz que foi durante a Revolução Francesa a origem da separação ideológica entre os que sentavam à esquerda ou à direita no plenário da Assembleia Constituinte: os girondinos sentavam-se na direita e defendiam os atuais detentores do poder econômico, enquanto os jacobinos e os cordeliers sentavam-se na esquerda e defendiam a reforma do sistema. Séculos depois, atualmente costuma-se classificá-los entre socialistas e neoliberais... No entanto, seria mesmo possível reduzir o pensamento político de um indivíduo ou grupo de indivíduos a esta dimensão restrita de “esquerda” e “direita”? Em suma, o que são, afinal, a direita e a esquerda?
[Teo] Primeiramente, gostaria de parabenizar pela excelente iniciativa e agradecer o convite para participar do debate. Antes de responder propriamente a questão, gostaria de apresentar um interessante recurso que nos ajuda a pensar este dilema: a Análise Institucional. O movimento institucionalista desenvolveu-se na França em meados do século passado e tem o Brasil hoje como um dos locais em que ele pôde fixar-se, tendo alcançado interessantes resultados, sobretudo na área da saúde mental. Como afirma Gregorio Baremblitt em seu livro Compêndio de Análise Institucional e Outras Correntes, a sociedade é formada por uma rede de instituições, estas as composições lógicas, que segundo o grau de formalização que adotem podem ser leis, normas, e quando não enunciadas de maneira manifesta podem ser hábitos, costumes, crenças, etc. Há diversos tipos de instituições, como a família, a divisão do trabalho, a educação, a religião, a justiça, todas com a função de regular a vida humana segundo seus próprios modos de organização. Quando uma determinada ideia está bem consolidada, sendo amplamente aceita e repetidamente executada, dizemos que se trata do instituído. Quando surge uma nova ideia que deseja substituir a anterior, chamamos de instituinte. A Análise Institucional trata-se, deste modo, do estudo e prática da dinâmica instituído-instituinte.

O instituído é uma força conservadora, que tenta se manter presente, enquanto o instituinte é uma força revolucionária que tenta suplantar o instituído. Neste contexto, é muito importante entender que não se trata de bom ou mal, ou qualquer tipo de julgamento moral. Não é porque algo é novo que é bom, como não é porque algo é tradicional que significa ser melhor. O que hoje temos como instituído, um dia foi uma força instituinte que conquistou seu lugar, e o que hoje vemos como instituinte, muito provavelmente virá a se tornar um dia o instituído. É neste sentido que podemos entender as questões históricas e ideológicas entre Direita (instituído) e Esquerda (instituinte).

Desde que a burguesia assumiu o lugar principal na sociedade e o capitalismo se tornou instituído, podemos pensar a Direita como os defensores desta ordem, e a Esquerda como aqueles visam combatê-la (ou ao menos tentar torná-la menos perversa, embora existam discordâncias se podemos chamar estes últimos realmente de esquerda). Deste modo, só faz sentido pensar em direita e esquerda no contexto de nossa sociedade. Ainda que o capitalismo tenha se reformulado cada vez que enfrentou uma crise e as características da burguesia dos tempos de Marx (a detentora dos meios de produção) não seja tão parecida com a atual (muito mais sustentada no capital especulativo), ainda há algo em comum: a geração de lucros para si.

Ser de Direita, neste sentido, é concordar com o capitalismo e suas instituições. É acreditar nos valores do individualismo, da meritocracia e da primazia do lucro. Em alguns casos ainda é possível ver sujeitos que defendam seus valores mais radicais, como o tradicionalismo da família (ser contra modelos diferentes de família que o heterossexual nuclear), o machismo (ser contra a igualdade de direitos entre homens e mulheres), entre outros. Felizmente, a extrema-direita não é absoluta, então é possível encontrar muitas pessoas de pensamento direitista com que podemos estabelecer um bom diálogo.

Ser de Esquerda, como disse Deleuze em uma excelente entrevista, é uma questão de percepção. Não é questão de ter boa alma, ou algo do gênero, mas perceber que as minorias somos todos nós. É perceber que os direitos dos trabalhadores, dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos pobres são direitos fundamentais. É perceber que o capitalismo é um sistema que explora os recursos naturais do planeta até causar sua completa destruição. É perceber que mesmo que o modelo liberal possa ter pontos positivos, é para as classes mais altas que ele é recompensador, pois para quem está em baixo na pirâmide social, a miséria não é algo a se orgulhar. É perceber que a meritocracia e a competitividade são valores falsos, e que eles jamais podem estar acima do bem comum. É perceber que o acesso a justiça, saúde e educação de qualidade deve ser para todos, e não apenas para quem pode pagar seu alto preço. É perceber que as promessas do capitalismo são falsas, pois há uma desigualdade constitutiva em que para existir acumulação de capital, necessariamente há exploração e segregação. É perceber que ter poder e riqueza no sistema capitalista não é reflexo de atitudes éticas, sendo justamente o contrário comum na selvageria do mercado. É perceber que o aumento da criminalidade tem relação com a desigualdade social e a exposição do sujeito ao mundo da felicidade pelo consumo. É perceber que, a despeito do individualismo, precisamos encontrar soluções coletivas para um bem-estar coletivo.

E ao percebermos que o governo é a representação da ordem e do instituído, percebemos que não há governos genuinamente de esquerda. Existem alguns governos favoráveis às causas da esquerda, mas a esquerda não se identifica com um partido ou um político, nem pode se deixar ser capturada por eles. Ser Esquerda é ser uma força instituinte numa sociedade em que o instituído é o capital e os seus meios de exploração. Após a queda do comunismo e a dificuldade do socialismo ideal se realizar, ser de Esquerda tem menos a ver com levantar bandeiras socialistas (embora a participação do socialismo foi e ainda é fundamental) do que estar disposto a pensar e lutar por alternativas.
[Carvalho] Em sua origem, os conceitos de “direita” e “esquerda” refletiam a organização incidental, nos assentos de uma sala, de dois grandes grupos razoavelmente distintos. De um lado os monarquistas conservadores, defensores do Ancien Régime pertencentes à nobreza e ao clero [1], e de outro os republicanos revolucionários, a maioria membros da próspera classe burguesa. Esta distinção permaneceu mais ou menos constante até a segunda metade do século XIX, quando os marxistas fizeram a proeza de lançar a burguesia para o outro lado do espectro, e assumiram a esquerda para si.
Basta observar essa inversão para compreender que não é fácil conceituar os termos. Ora, se a burguesia liberal era a personificação da esquerda em um século e da direita no outro, sobramos com duas opções: ou admitimos que a utilização desses termos ao longo do tempo é, assim como foi na origem, meramente circunstancial, servindo apenas como rótulos ou coletes coloridos para organizar os “times” adversários em campo; ou então tentamos identificar uma ou mais características recorrentes nas ideologias políticas dos dois últimos séculos a fim de compará-las com os grupos originais franceses e delinear seus caminhos pela história.

Para falar a verdade, eu nem acho que a primeira opção anule a segunda, por serem ambas razoáveis. Tanto considero verdade que os termos sejam rótulos simplistas, quase sempre utilizados por critérios de conveniência, como também entendo que, justamente pela simplicidade, essa dicotomia tem o seu valor didático, além do valor simbólico da referência histórica que carrega.

Assim sendo, o critério de classificação que considero mais relevante para compreender a política geral possui a vantagem de que tanto pode ser utilizado de forma independente quanto em correlação com a organização espacial dos grupos na Assembleia dos Estados Gerais, e é aquele que simplesmente divide os movimentos políticos entre revolucionários e conservadores, estes à direita e aqueles à esquerda. Como qualquer classificação binária, ela é limitada e certamente não é capaz de descrever toda a complexidade do pensamento político de um grupo de pessoas, tampouco de um único indivíduo, mas dá indicações muitíssimo relevantes sobre a tonalidade geral e sobre as prováveis consequências práticas de cada um dos ideários.

De modo resumido, podemos dizer que as ideologias conservadoras são aquelas que se legitimam com base na experiência do passado, enquanto as revolucionárias o fazem em nome das perspectivas de futuro. Conservadores têm a tendência natural de se opor a propostas de mudanças, exceto as lentas e cuidadosas, admitem a natureza humana como intrinsecamente falha, e buscam preservar as instituições, tradições e hábitos que, mesmo imperfeitos, tenham sobrevivido aos testes do tempo.  Em contrapartida, revolucionários são os que pretendem modificar profunda e drasticamente todas essas mesmas coisas, através da ação política, em nome de algum futuro utópico.

Colocando dessa forma, até pode parecer que os dois lados são igualmente importantes para o processo de evolução da sociedade, haja vista que o pensamento revolucionário tenderia a “criar movimento” (ou “progresso”), enquanto o pensamento conservador seguiria na linha de “manter a ordem” [2], constituindo uma espécie de yin-yang da política. Entretanto, ainda que eu não negue se tratar de uma ideia sedutora, também acredito que ela passa uma falsa impressão de simetria.

Sem dúvida, considero bastante compreensível que pessoas em situações sociais desvantajosas sintam-se mais ansiosas por mudanças e por isso se deixem encantar por ideologias revolucionárias que prometem um belo futuro igualitário, mas a maioria dessas pessoas não faz ideia – nem mesmo os próprios ideólogos – de quais serão as reais consequências dessas transformações. São sempre conjecturas, algumas mais e outras menos razoáveis, cujos efeitos práticos a história nos mostra que apenas eventualmente envolvem progresso, mas quase sempre às custas de muita destruição. Enfim, a verdade é que, no mundo real, conservadores e revolucionários deixam marcas muito diferentes na história, e mesmo quando computamos os erros de ambos, a mão esquerda resta sempre mais suja de sangue do que a direita.

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[1] Isso vale até a dissolução dos Estados Gerais. A partir da Assembleia Nacional quase todos os nobres e clérigos foram excluídos do processo e “a direita” foi ocupada por revolucionários moderados que somente desejavam substituir a monarquia absolutista por uma constitucional.

[2] O historiador político Francois Goguel, ao descrever a política francesa, chamava o conjunto dos partidos de esquerda de “partido do movimento” e dos de direita de “partido da ordem”.
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Fonte:  http://textosparareflexao.blogspot.fr/2014/11/o-que-sao-afinal-direita-e-esquerda.html

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