segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Há uma poesia que interroga Deus? Eles acham que sim

 José Manuel Fernandes*
Vitorino Nemésio, Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen

Não há uma poesia para crentes e outra para não-crentes, mas a interrogação sobre Deus pode estar presente na melhor poesia. Como nos mostram, em antologia, José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia.

Deus está cada vez menos presente na sociedade portuguesa. Não é tema, ou é cada vez menos tema. É Pedro Mexia que o reconhece, mas isso não o impediu de se juntar a José Tolentino Mendonça para reunirem uma antologia da poesia portuguesa que interroga Deus. Poesia do século XX.
O poeta cristão seria o que viesse
De látego e, dele pálido, batido
Não o amuseur de quermesse
Das Cinco Chagas desvanecido.
No seu cubículo compungido à noite.
Catando na alma as gordas lesmas,
Sibilara-lhe em sílabas o açoite
Em suas carnes mesmas.
O poeta é terror no ermo adornado,
Lâmpada e vara quente.
Já me sinto aterrado:
Falta-me ser ardente.
Vitorino Nemésio
“As antologias de poesia são documentos sociológicos sobre o país”, diz-nos Tolentino Mendonça. Porque “a poesia é o elemento de agregação de indentidade nacional, não só do passado mas também em relação ao presente.”

A seu lado Pedro Mexia folheia o livro de capa preta e chancela da Assírio e Alvim. “Temos antologias sobre tudo, não tínhamos uma antologia sobre Deus na poesia”. Não sobre um Deus apenas presente na paisagem, mas sobre um Deus que suscita interrogações. Não uma antologia de poetas católicos, mas poetas que poderiam estar em qualquer antologia e que, algures na sua obra, se cruzaram com Deus. “O que está em causa não é a religião, a crença, é a pergunta”, sintetiza Pedro Mexia.

Talvez por isso esta obra que reúne poemas de 13 autores “tenha tudo para desagradar aos dois lados da barricada – aos que chegam pelo lado da poesia e aos que chegam pelo lado de Deus”, precisa o antologiador que é também poeta.

Para isso contribuem as surpresas desta obra. Por lado, as ausências. Não estão lá nem Miguel Torga nem José Régio, por exemplo, porque os autores entenderam que as referências desses autores a Deus não surgiam como interrogação, como desafio. Em contrapartida, para surpresa dos próprios autores, está lá Jorge de Sena, o Jorge de Sena das primeiras obras, um Jorge de Sena que nem tinham incluído na sua lista original.
Nem sei porque ainda falo em Deus.
Se de mim me afasto e obedeço ao mundo
– traz ele consigo um sonho para levedar
na perspicácia absorta de um farol de angústia –
e não concedo esperança ao que anda em mim
podendo ser volúpia da memória livre;
se Deus partiu para o limite da vida
quando olhámos ambos a realidade das coisas;
se não existe uma barca onde o rumo se invente,
embora as pontes sejam dessas barcas;
seonde estiver um homem não estará outro homem.
Não sei, de facto, porque falo de Deus.
Jorge de Sena
Se a poesia é, nas palavras de Tolentino Mendonça, “uma espécie de ciência humana indispensável ao conhecimento das sociedades que somos”, o que é que nos diz esta antologia? Até porque é uma antologia ainda possível para a poesia portuguesa do século XX mas que, como reconhece Pedro Mexia, já não seria possível se, por exemplo, se tentasse reunir apenas as obras dos últimos 40 anos, dos anos pós-25 de Abril? Diz-nos que hoje nos ocupamos mais de outros temas, e mostra-nos também como a própria relação com Deus evoluiu ao longo da vida de alguns dos autores seleccionados, aqueles que passaram do cristianismo para a ausência de crença. Evolui em Pedro Tamen, cujos poemas chegam a ser quase “devotos”, na expressão de Pedro Mexia, e que depois, como tanta gente da sua geração, passou por fases de muitas dúvidas e interrogações. Evolui em Ruy Belo, que começou por ser da Opus Dei e, depois, até deixou de escrever Deus com letra grande. “Na verdade passou a escrever tudo com letra pequena”, recorda Mexia.
Lembra-te ó homem daquele tempo antigo
considera os anos da geração passada
quando a cidade das palmeiras era olhada
por cristo que passava entre o trigo
ou anos antes pelo inimigo
que falava a moisés do mais alto do fasga
Da hortelã da arruda de qualquer erva plantada
pagaste o dízimo ó meu trista amigo
quando o amor é que exigia rapidez
Tens de deixar casa vergéis e jardins
coisas modestas como as unhas e os amendoins
E o que vai ser de ti? Serás talvez
não o que deus não foi para ti: rins
cingidos mas um nome para a tua timidez
Ruy Belo
E depois há Adília Lopes, a desconcertante Adília Lopes. “Ela fala de Deus a propósito de baratas ou da empregada doméstica”, ilustra Pedro Mexia. “Tem uma obsessão pelos temas religiosos, pela figura de Cristo, mas tudo nela surge nas coisas comuns, muito banais, do dia-a-dia, nesses temas tão característicos da sua obra”.

Obra de autores, pois tanto Tolentino Mendonça como Pedro Mexio reivindicam o direito ao seu gosto pessoal, esta antologia nasceu com balizas bem marcadas. A abrir, Nemésio, um poeta maior que é muito mais conhecido pela memória das suas presenças televisivas e dos seus romances. A fechar, um jovem, já desaparecido, Daniel Faria, nascido em 1971 e que foi monje. No miolo uma mistura de nomes mais óbvios com outros menos evidentes e menos conhecidos, como Fernando Echevarria, José Bento, Cristovam Pavia, Armando Silva Carvalho ou Carlos Poças Falcão. “Todos estes poetas são grandes poetas do século XX – ninguém está aqui presente só porque se ocupou deste tema”, conclui Tolentino Mendonça.

E se na sua geração, que é quase a mesma geração de Pedro Mexia, a interrogação sobre Deus quase deixou de ser tema, isso não impede que defenda a importância de olhar para estas obras. “São talvez caminhos mais silenciosos, mas não menos relevantes”, conclui o padre e poeta.
Escuto mas não sei
Se o que ouço é silêncio
Ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco
Sophia de Mello Breyner Andresen
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*  Nasci a 7 de Abril de 1957 e sou jornalista desde 1976, passei por vários jornais (Voz do Povo, Expresso) e fui fundador e, mais tarde, director do Público (de 1998 a 2009). Escrevi vários livros, nomeadamente O Homem e o Mar, o Litoral Português (Círculo de Leitores/Gradiva), Diálogo em Tempo de Escombros (com D. Manuel Clemente, Pedra da Lua), Liberdade e Informação (Fundação Francisco Manuel dos Santos) e Era Uma Vez a Revolução (Aletheia) e colaboro, como professor convidado, com o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa.

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