domingo, 5 de outubro de 2014

S. Francisco de Assis e Agustina Bessa-Luís

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Eu vi os restos dos primeiros conventos franciscanos, perto de Spoleto; as celas eram feitas de vimes e de terra, como faziam as casas os camponeses. Amassavam a lama com as mãos, teciam um estafe de canas, e tinham pronto o convento, numa ravina, às vezes com tocas naturais na pedra onde iam rezar os frades, ou fazer penitência.

A vida era tão difícil que essa regra franciscana não parecia senão dar-lhe apoio, integrar-se na severa condição da Natureza. Hoje achamos mórbido e fanático todo esse curso de humilhação voluntária; mas não sabemos mais o que era ter de sobreviver com um punhado de farinha e algumas ervas.
O povo vivia assim. Os forais da época, que estipulavam às vezes meio ovo como paga ao senhor das terras, dizem quanto a escassez era uma praga difícil de debelar.

O franciscanismo apareceu como uma assistência social directa: instalou-se nos burgos, entrou no clima campesino e no lar operário; derramou-se pela fazenda burguesa, penetrou na praça comercial.
Levou uma consciência nova dos problemas, até à reitoria, até à câmara, até ao paço. Até aí havia o teólogo e o exegeta. Debatiam-se os dogmas nos concílios, atalhava-se a heresia com complicadas teses. Cuidava-se do artigo de fé e do poder do clero. Francisco trouxe o pobre para a sociedade e recuperou Cristo no pobre. E fê-lo sem revolta, com uma sinceridade que subverte a revolta; que a torna menos soberana do que a realidade sofrida. Não disse: “Pobres, uni-vos.” Mas disse a todos: “Tornai-vos pobres”. Amai o dever de ser pobre, e não a confrontação e a luta.

E também ele sabia lutar. Era um guerreiro. Francisco era um guerreiro, de génio lúcido que é o que ganha as grandes batalhas. A sua vida não foi uma renúncia, foi uma glória, uma avançada permanente, um esforço genial para entrar no tempo, na imponderabilidade do pobre. O pobre não tem atmosfera, flutua, quebra pernas e braços contra pequenos obstáculos nos quais ninguém mais choca. Mas, sabendo qual a sua condição, sente a leveza do seu mísero corpo, e nenhum fardo o pode oprimir.

A regra franciscana era tão poética que dela só podia subsistir o perfume. Era alegre, pois proibia acompanhar o jejum com a expressão mortificada; era sábia, pois se desviava das letras; era grande, porque prevenia contra o vício da vontade própria. Não foi feita para servir os homens, e por isso levantou tumulto e fez nascer as dissidências. É mais fácil à natureza humana acometer as coisas que exigem heroísmo, do que confiar naquelas que a mantêm na virtude sem penas e na modéstia sem exemplo.
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Agustina Bessa-Luís
In Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores
Imagem: Giotto | S. Francisco dá a capa a um pobre | D.R
Publicado em 04.10.2014

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