domingo, 19 de outubro de 2014

Filósofo Pascal Bruckner diz que o culto contemporâneo à felicidade tornou a dor insuportável

Filósofo Pascal Bruckner diz que o culto contemporâneo à felicidade tornou a dor insuportável Fronteiras do Pensamento/Divulgação
Pascal Bruckner, escritor e ensaísta, convidado do Fronteiras do Pensamento 
Foto: Fronteiras do Pensamento / Divulgação

Ficcionista e ensaísta francês vem a Porto Alegre falar da opressão de ser obrigado a sentir-se feliz, de novos arranjos matrimoniais e da relação Europa/Islã

Com formação em Filosofia e Letras, Pascal Bruckner fez parte de um grupo de intelectuais franceses que romperam com as correntes hegemônicas do pensamento de seu país nos anos 1970 e 1980 (em que o marxismo era dominante) e apresentaram uma visão crítica (ou conservadora, para seus desafetos) dos rumos políticos e comportamentais da Europa pós-maio de 1968.

Bruckner, defensor da livre determinação individual, permaneceu polêmico, e nos últimos anos vem se dedicando a analisar como o ideal iluminista de “emancipar o homem de seus males” tornou-se a contemporânea “obrigação de ser feliz”, tema de seu livro A Euforia Perpétua (Difel, 2002), ou a falência de instituições familiares, que abordou em Fracassou o Casamento por Amor?

Por telefone, de seu escritório em Paris, Bruckner, palestrante do Fronteiras do Pensamento, concedeu entrevista à Zero Hora na última terça-feira:

Qual o tema de sua palestra em Porto Alegre?
O tópico principal será sobre o fato de que “o direito à felicidade” decretado pela Revolução Francesa foi transformado em “dever de felicidade”: temos que ser felizes não importa o que nos aconteça.Como escrevi em A Euforia Perpétua, estamos condenados a ser eufóricos o tempo todo, e esse é precisamente o problema, porque as pessoas se tornam infelizes por serem forçadas a ser felizes.

O senhor fala sobre esse peso da felicidade na vida contemporânea. Como um princípio originalmente libertador transformou-se em um peso e um dogma?
A mudança ocorreu nos anos 1960 e 1970, quando o sistema econômico tornou-se subordinado a nossas satisfações. Foi o momento em que o capitalismo tornou-se um sistema hedonista: tínhamos não mais que produzir, mas consumir, e isso é exatamente o que explica por que a felicidade se tornou uma obrigação. 

Esse quadro se alterou com a presença das mídias sociais, nas quais cada pessoa gerencia e produz uma imagem feliz de si mesmo para consumo dos demais em larga escala?
Sim, com a diferença de que você precisa produzir sua própria felicidade, você não pode comprá-la como um produto normal, é algo que você precisa construir e trabalhar nela ao longo de toda sua vida, como uma “casa da felicidade”. Quando você é jovem, você assenta as fundações, o porão, o piso, e o teto é o fim de sua vida. E, é claro, não é assim que as coisas funcionam. É muito mais complicado, e eu tentei, em meu livro, resgatar um pouco dessa complexidade.

Muitos têm dito que as redes sociais reforçam esse culto à felicidade permanente. É possível que elas estejam sendo palco para uma espécie de teatro da felicidade?
A internet teve o papel de amplificar as expectativas contidas em nossas mentes e torná-las mais urgentes, mais opressivas. Mas a origem dessa nova tendência remonta aos anos 1960, foi quando as coisas mudaram completamente. Antes, você tinha a possibilidade de ser feliz, era uma conquista social. Agora, você é obrigado a isso, o que é completamente diferente.

E o mundo hoje também está estruturado de modo a que as pessoas possam evitar a dor em todos os aspectos da existência. Isso é parte do mesmo fenômeno?Sim, exato. Nossa atitude diante da dor também mudou. Desde o Iluminismo, no século 18, vendemos a ideia de que destruiríamos pouco a pouco as aflições humanas: dores, doenças, sofrimentos, iríamos entrar em uma era de completa satisfação. Mas na verdade os sofrimentos estão de volta a cada geração de uma maneira diferente. Este culto à felicidade tornou a dor insuportável, porque estamos à espera do desaparecimento completo de todos os males. E nós podemos lutar contra um certo número de sofrimentos, mas não podemos destruir a infelicidade ela própria. Um outro tópico que devo discutir aí, além da euforia, é a resiliência, a capacidade que cada um de nós tem de resistir às adversidades: sofrimentos pessoais, doenças, catástrofes naturais. Nós precisamos ficar mais resilientes. 

Não parecemos todos crianças mimadas ao ficarmos angustiados com o excesso de liberdade para buscarmos a felicidade?
Este é outro problema: a criança se tornou a rainha da criação em nossos dias. A infância se tornou a idade da excelência, a idade do gênio, da espontaneidade. Nós adoraríamos ter a liberdade da criança, a irresponsabilidade da criança, mas sermos ao mesmo tempo fisicamente adultos. Parece que a infância se tornou o sonho de todo adulto.

Seria essa a razão de algumas das mais valorizadas corporações contemporâneas tentarem vender a imagem de um lugar de trabalho e, ao mesmo tempo, de diversão e criatividade, como um playground para adultos assalariados?
Sim, poderíamos definir isso com o encontro entre duas imagens: o universo da alta competitividade no trabalho e o universo das brincadeiras infantis. As pessoas nessas empresas seriam, ao mesmo tempo, trabalhadores com colocação em um emprego cobiçado e de alta competição e um grupo de crianças reunidas no parquinho desfrutando de momentos bons e divertidos. 

O senhor fala que as pessoas exigem muito do amor e por isso enfraquecem as relações. O senhor acredita que modelos alternativos podem se tornar mais populares no futuro? Por que casamentos abertos nunca emplacaram como tendência?
É difícil responder a essa pergunta, mas o que temos visto nos últimos 40 anos, desde a revolução sexual, é que o casamento aberto parece muito com um casamento tradicional, e muitas das soluções buscadas para problemas como fidelidade ou o desgate das relações de longa duração são as mesmas de um casal regular. Casamento aberto, poligamia, ou como vocês dizem no Brasil, poliamor, todas essas soluções tendem a repetir os problemas que temos como casal. Pessoalmente, eu seria partidário da solução francesa: muitas pessoas preferem o divórcio à alternativa de permanecer com uma pessoa que não amam ou não desejam. Mas você sempre pode fazer acordos com seu (sua) parceiro (a) e decidir continuar juntos e ter aventuras ou relações fora do casamento. Essa é a solução francesa: cada um que decida o que quer. Não acho que haja soluções para o problema do casamento. Cada casal deve encontrar seu caminho.

No seu livro A Tirania da Penitência, o senhor diz que o Ocidente transformou os erros do passado em uma desculpa para não agir contra ditaduras e regimes de opressão do Terceiro Mundo. O Ocidente sofre de complexo de culpa?
Penso que o Ocidente tem a tendência a se autoflagelar por conta dos vários crimes cometidos em sua história. Na Europa temos de fato um histórico de muitos anos de guerras, imperialismo, escravidão, colonialismo, duas guerras mundiais, nazismo, comunismo. Sim, é um fardo pesado em nossas costas, o que explica por que temos esta mentalidade tão cautelosa e relutante em nos engajarmos na História.  Rejeitamos na França e na Inglaterra, por exemplo, a ideia de um governo comum e de um exército comum. Sim, acho que estamos sendo paralisados pelo sentimento de culpa, que era justificável na época da descolonização, mas que hoje nos impede de resistir a todos os tipos de fanatismos e fundamentalismos. 

Essa inação de algum modo alimenta fenômenos como a ascensão do Estado Islâmico no Oriente Médio?
Não sei se isso ajuda a ascensão do Estado Islâmico. Sei que o Islã está dividido entre xiitas e sunitas, entre moderados e conservadores. Nós deveríamos estar do lado dos moderados, devíamos ajudar o Islã a se corrigir, a se reformar, como o catolicismo fez no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965, no qual a Igreja Católica reconheceu publicamente seus crimes, suas culpas e seus equívocos. Este foi um acontecimento único na História. Eu gostaria que um dia o Islã fizesse o mesmo em suas duas versões, xiita e sunita, mas enquanto esperamos este momento acontecer, deveríamos ajudar todos os ateus, os moderados, todos os que querem crer em Deus e todos os que não querem e preferem ser céticos.  

No Brasil, o tema do fundamentalismo religioso tem se tornado cada vez mais presente com a ascensão de políticos evangélicos. O que, na vida contemporânea, leva tantas pessoas a buscarem soluções em ideias que os iluministas acreditaram, no século 18, estarem condenadas a desaparecer?
O sucesso dos evangélicos vem de um fato muito simples: o seu protestantismo é eficiente  em combinar duas aspirações: a aspiração da imortalidade pela fé em Deus, que é uma crença tradicional  do cristianismo, e a aspiração pela liberdade. Os protestantes tiveram sucesso em fazer uma coisa que os católicos fracassaram em fazer: dar a seu seguidor uma mistura de segurança e liberdade. Você é tranquilizado pela presença em sua igreja, e nos Estados Unidos, por exemplo, as igrejas maiores são grandes fatores da vida em comum, e ao mesmo tempo você mantém sua liberdade de expressão como pessoa, não apenas como parte do rebanho.

PASCAL BRUCKNER
NO FRONTEIRAS
Escritor e ensaísta, crítico da organização social francesa e do establishment cultural europeu pós-anos 1960, o francês Pascal Bruckner é autor de obras de ficção e não ficção, a mais conhecida do grande público o romance Lua de Fel, adaptado para o cinema por Roman Polanski em 1992. Bruckner é um intelectual provocador e polêmico que critica as correntes do pensamento marxista, as principais correntes do pensamento francês da segunda metade do século 20 e mesmo movimentos dos quais participou, como o grupo Novos Filósofos, que nos anos 1970 e 1980 rompeu com a tradição de esquerda na sociologia fancesa do período.
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Fonte: ZH online, 18/10/2014

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