terça-feira, 21 de outubro de 2014

Antigo demônio assombra Europa

Ataques antissemitas deflagram sensação de insegurança
 entre judeus
Por JIM YARDLEY

SARCELLES, França - Dos enclaves imigrantes da periferia parisiense até a cidade burocrática de Bruxelas, passando pelo coração industrial da Alemanha, o velho demônio da Europeu reapareceu recentemente. "Morte aos judeus!" gritaram manifestantes em protestos pró-palestinos na Bélgica e na França. "Botem os judeus no gás!" gritaram manifestantes num protesto semelhante na Alemanha.
Houve violência ainda pior que as ameaças. Em maio, quatro pessoas foram mortas a tiros no Museu Judaico de Bruxelas. Uma farmácia de proprietário judeu em Sarcelles, na periferia de Paris, foi destruída em julho por jovens que protestavam contra as ações de Israel na faixa de Gaza. Bombas incendiárias foram encontradas numa sinagoga em Wuppertal, Alemanha. Um judeu sueco foi espancado com tubos de ferro.

Incidentes como esses estão provocando alarme com a ascensão do "novo antissemitismo", nas palavras do premiê francês, Manuel Valls, levando judeus a se perguntar se a Europa ainda é um lugar seguro para eles. Mais judeus estão emigrando para Israel. Outros descrevem zonas "proibidas" nos distritos muçulmanos de muitas cidades europeias, lugares por onde judeus não se atrevem a transitar.
A Europa tem assistido a protestos e explosões de antissemitismo sempre que o conflito israelo-palestino entra em erupção, e alguns analistas dizem que as manifestações de cólera deste verão representam um episódio cíclico que, como outros, vai desaparecer.

Algumas pessoas observam que o número de incidentes de antissemitismo denunciados este ano na França, por exemplo, foi bem inferior a alguns anos na década passada. Mas também há receios quanto ao que alguns veem como um viés antissemita insidioso, "mais brando", que eles temem que esteja penetrando na opinião mais geral.

"O medo é porque agora coisas estão sendo ditas abertamente e ninguém se surpreende com isso", disse Jessica Fromer, 36, judia secular de Bruxelas. "A Europa moderna é baseada no esforço de impedir a repetição do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. E agora, 70 anos mais tarde, pessoas se postam perto do Parlamento Europeu gritando 'morte aos judeus!'."

Líderes franceses condenam fortemente a violência antissemita recente. No mês passado a chanceler Angela Merkel, da Alemanha, comandou um ato público em Berlim contra o antissemitismo. Contudo, ao mesmo tempo em que a Europa endurece seu apoio à causa palestina e suas críticas a Israel, muitos judeus dizem que a distinção entre ser anti-Israel e antijudeus está se enfraquecendo.

Alguns judeus dizem que se sentem politicamente isolados, sem um lar ideológico. Muitos partidos políticos de esquerda são anti-Israel. Muitos partidos de direita têm origens antissemitas. E muitos judeus que votaram no Partido Socialista na França e Bélgica temem que esses partidos estejam enfraquecidos, aumentando sua dependência dos blocos de eleitores muçulmanos, que crescem rapidamente.

Mesmo entre aqueles que tendem a condenar o racismo sob qualquer forma, o combate ao antissemitismo já deixou de ser visto como prioridade; os judeus muitas vezes são vistos como privilegiados, comparados a muçulmanos e minorias discriminadas.

Muitos muçulmanos mais jovens frequentemente parecem alienados na Europa. Com dificuldade para encontrar trabalho e frustrados por não serem aceitos, um grupo pequeno, mas articulado deles se deixou inflamar pela política do Oriente Médio, especialmente o conflito israelo-palestino.

O muçulmano francês Mehdi Nemmouche, preso em conexão com as mortes no Museu Judaico de Bruxelas, combateu como jihadista na Síria.

"O Oriente Médio está sendo importado para a Europa", comentou Philip Carmel, diretor de política europeia no Congresso Judaico Europeu.

"Nos últimos quatro ou cinco anos temos sentido uma insegurança crescente", comentou David Harroch, gerente de uma livraria judaica em Petite Jerusalem, o bairro comercial judaico de Sarcelles, na periferia de Paris. "Muita gente já foi embora."

Autoridades israelenses dizem que até 6.000 judeus vão migrar da França para Israel este ano. Em Sarcelles, muitos judeus e muçulmanos cresceram lado a lado sem rancor.

A pouca distância de uma das mesquitas da cidade há um pequeno empório pertencente a muçulmanos. Recentemente, um dos donos do estabelecimento, Abdel Badaz, estava atrás do balcão com um amigo de infância: Mickaël Berdah, 36 anos, judeu cuja família emigrou da Tunísia décadas atrás. Os dois criticaram o protesto.

"Quando você cresceu no bairro e conhece todo o mundo, não existe esse tipo de ódio", disse Berdah.
Do lado de fora, Diakité Ismael, 19 anos, francês filho de imigrantes senegaleses, também argumentou que em Sarcelles não existe hostilidade entre muçulmanos e judeus locais. Perguntado sobre a faixa de Gaza, porém, ele se agitou.

Ismael disse que viu um vídeo de uma bomba israelense atingindo um funeral em Gaza. "Não sei como, alguns judeus controlam a política, a informação, os negócios e as finanças", afirmou. "Não estou falando dos judeus daqui, estou falando dos judeus de maneira geral."

O incidente de maio em que quatro pessoas foram baleadas no Museu Judaico de Bruxelas -e a subsequente prisão de Nemmouche- atraíram atenção internacional porque quatro pessoas foram mortas, duas das quais eram israelenses. Mas houve incidentes menores, também: um comerciante turco em Liège que fixou um cartaz em sua loja dizendo que serviria cachorros, mas não judeus; uma voz no sistema de comunicação de um trem suburbano que anunciou uma parada como sendo "Auschwitz" e ordenou que todos os judeus descessem.

"Este ano, comecei a enxergar o mundo com outros olhos", contou o italiano Marco Mosseri, 31, que trabalha na indústria automotiva em Bruxelas. "Fiquei com medo. Passei várias noites sem dormir. Pela primeira vez, pensei que posso morrer devido à minha religião."

No dia 14 de setembro, quando pessoas se reuniram para dedicar uma placa no memorial do Holocausto, jovens ficaram atirando pedras e garrafas até a polícia chegar. Três depois, um incêndio ardeu no andar superior de uma sinagoga no bairro de Anderlech, em Bruxelas.

Gerações de imigrantes muçulmanos e seus descendentes hoje representam aproximadamente um quarto da população de Bruxelas. A comunidade judaica é pequena: 20 mil pessoas, quase todas assimiladas, judeus seculares como Mosseri.

Um relatório recente de duas organizações judaicas europeias observou que 40% dos judeus europeus ocultam sua condição judaica. Alguns judeus pararam de usar um colar com a Estrela de Davi ou não deixam mais seus filhos usar camisetas próprias de um acampamento de férias judaico quando andam nos ônibus ou trens públicos.

Desde o início do conflito em Gaza, neste verão, muitos descrevem as mídias sociais, especialmente o Facebook, como um pantanal de ódio.

Na Itália, ativistas de extrema direita foram vistos como culpados por uma onda de pichações antijudaicas. Em Roma, em agosto, um grupo de extrema direita distribuiu folhetos convocando o boicote de pelo menos 40 lojas pertencentes a judeus.

Michaël Privot, diretor da Rede Europeia Contra o Racismo, disse que a atribuição do antissemitismo apenas aos setores islâmicos ignora os estudos acadêmicos que mostram que o antissemitismo continua profundamente entranhado entre todos os belgas, além de outros europeus.

"Basicamente, o que temos é uma oportunidade de ouro para a direita extrema atribuir o antissemitismo aos muçulmanos e declarar-se inocente", disse.

Os artefatos usados na tentativa de incendiar uma sinagoga em Wuppertal não funcionaram como se pretendia, mas tiveram um impacto. "Para os judeus na Alemanha, isso tem um significado muito profundo", comentou Artour Gourati, empresário local e membro da sinagoga. "Sinagogas estão sendo incendiadas à noite na Alemanha."

Líderes religiosos da cidade reagiram rapidamente. Imãs e pastores cristãos correram até a sinagoga para declarar seu apoio. Mais de 300 pessoas compareceram a uma reunião de paz no dia seguinte.
"Uma ameaça a uma de nossas casas religiosas é uma ameaça a todos nós", disse um líder muçulmano local, Samir Bouaissa.

Em outubro os líderes religiosos da cidade levaram outro susto: um grupo de homens percorreu um bairro muçulmano dando aulas de moral a jovens, trajando paletós cor de laranja com os dizeres "Polícia da Sharia".

Nos últimos anos, Leonid Goldberg, o líder comunitário da sinagoga de Wuppertal, aproveitou a festa de Rosh Hashaná para lançar um aviso sobre a ascensão do antissemitismo entre muçulmanos extremistas. "Ninguém queria ouvir", disse. 
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Fonte: Folha online, 21/10/2014
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