sexta-feira, 31 de outubro de 2014

DORES DE PARTO DE UMA NOVA SOCIEDADE

Alberto Carlos Almeida*

Aprendi com Alexis de Tocqueville e Roberto DaMatta que uma sociedade democrática é aquela em que os homens são parecidos em sua maneira de agir, de pensar e em suas ambições, em que não há grande diferença entre ricos e pobres, e o acesso aos bens e a possibilidade de tê-los é mais ou menos a mesma para todos. Segundo Tocqueville, um dos sinais do caráter democrático da sociedade americana era que, lá, todos se tratavam pelo pronome "you", e não se usavam os pronomes de tratamento gentleman, Mister ou Sir. Os EUA sempre foram o oposto do Reino Unido, onde até hoje a formalidade marca as relações pessoais. Quanto mais igualitária uma sociedade é, segundo Tocqueville, menor os sinais de diferenciação entre os homens.

Roberto DaMatta, mostrei isso em meu livro "A Cabeça do Brasileiro", é o Tocqueville brasileiro. Sua obra irretocável e paradigmática tem vários ensinamentos para os interpretes do Brasil. Uma das mais importantes é o caráter hierárquico de nossa sociedade. No Brasil, todos querem saber o sobrenome de novos conhecidos, sua origem social (é bem verdade que esse comportamento já foi mais disseminado). Nos EUA, ninguém pergunta de qual família você é. Isso não importa, pois a origem social de todas as pessoas é muito semelhante.

DaMatta consagrou o caráter hierárquico de nossa sociedade ao revelar e interpretar o uso da expressão "você sabe com quem está falando?" Para muitos, é a chamada carteirada. É, porém, mais que isso. A expressão é utilizada em uma situação de grande desnível social, quando alguém importante, influente ou que conhece uma pessoa no governo, interage com outra pessoa sem tais credenciais e deseja evitar cumprir uma regra geral e universal. A expressão "você sabe com quem está falando?" só faz sentido e tem aceitação em sociedades muito desiguais, nas quais a ética igualitária seja fraca. A expressão oposta, utilizada nos EUA, uma sociedade genuinamente igualitária, é "quem você pensa que é?". O Brasil é o país do que "você sabe com quem está falando" e os EUA, o país do "quem você pensa que é?". O primeiro é muito desigual, o segundo é muito igualitário.
O Brasil, porém, está em transição. Os anos passam e o país se torna cada vez mais americanizado, no sentido social da expressão. Sim, quando se define sociedade democrática, à maneira de Tocqueville e Roberto DaMatta, não se está falando de democracia política, mas de democracia na sociedade, de aburguesamento geral dos indivíduos. Com o passar do tempo e à medida que melhoram de vida, todos se tornam pequenos proprietários, de suas residências, de seus automóveis, passam a preferir previsibilidade e contínua expansão de sua capacidade de consumo.
É isso que está ocorrendo hoje no Brasil e que incomoda enormemente um segmento que não se sente representado pelo PT na Presidência da República. Afinal, para esse segmento, em breve serão 16 anos consecutivos sem que o comando máximo da nação seja exercido por uma pessoa que o represente. É doloroso. O resultado concreto disso é mais doloroso ainda.
Trata-se de demandas inconfessáveis, mas há aqueles que lamentam, por exemplo, o aumento do poder de barganha das empregadas domésticas. É inconfessável querer que as empregadas não aumentem seu poder de barganha. Ano a ano, pouco a pouco, fica distante a época em que elas ou não tinham nenhum direito, ou eles existiam, mas não eram cumpridos. Isso incomoda, e muito, eleitores que não gostam nem um pouco do PT.
No Rio de Janeiro dos anos 1980, bastava que um adolescente fosse aluno de escolas como Santo Inácio, Santo Agostinho, São Bento ou Andrews para ter totais condições de passar para o curso de graduação de medicina da UFRJ. Era um clubinho. Quem era amigo e conhecido nessas escolas continuaria amigo e conhecido nas salas de aula da Ilha do Fundão. Isso acabou, não há mais um mísero sinal dessa época. Os alunos do curso de medicina mais procurado do Rio de Janeiro são oriundos de todos os lugares do Brasil e das mais diferentes escolas. O mesmo ocorreu no curso de medicina da USP e na capacidade que os principais colégios de São Paulo tinham de enviar alunos para lá. Ou seja, a sociedade brasileira se democratizou fortemente nos últimos anos. E isso foi feito criando-se vencedores e perdedores. Perderam os que faziam parte do clubinho, ganharam os que estavam fora dele.
As dores do parto de uma sociedade democrática e igualitária, à semelhança dos EUA, tem sua melhor expressão na radicalização de alguns setores de classe média alta contra o PT. Pedidos de impeachment, gritos de "fora Dilma" no dia da eleição, ataques dirigidos aos nordestinos e seu comportamento eleitoral, brigas de familiares em grupos de whatsapp, pessoas que rompem amizades no Facebook são sintomas do mesmo fenômeno. A pirâmide está deixando de ser pirâmide e os que ocupam sua parte superior resistem, gritam, reclamam, manifestam-se. Ótimo, isso é parte da democracia.
As dores deste parto foram maiores agora por causa do baixo crescimento econômico. No fim dos dois governos Lula, o processo eleitoral foi menos radicalizado porque o crescimento do último ano anestesiou a todos, inclusive os que tinham todas as razões para gritar. Cá entre nós, a metáfora médica é perfeita: com a anestesia do crescimento econômico, parte de uma sociedade igualitária ficou mais tolerável.
Em 2104 isso não aconteceu. Quando se trata de sociedades e da história, algumas mudanças levam décadas. Assim, o parto continua, só que este ano foi sem anestesia e, por isso, quase foi interrompido.
Não há política econômica neutra. Ela sempre implica em ganhadores e perdedores. Há os que ganham mais e os que ganham menos. Em algumas situações, há os que perdem. A grande ganhadora da política econômica do PT é a base da pirâmide social, os mais pobres. Em particular, aqueles que moram no Nordeste. Foram eles que repetiram seu voto. A proporção de votos dados a Dilma no segundo turno de 2014 foi apenas um pouco maior do que no segundo turno de 2010. O eleitor do agreste ou do sertão nordestino, pobre, é tão racional quanto o eleitor de classe média alta que habita a Mesopotâmia paulistana, isto é, que, como eu, mora na estreita faixa de terra delimitada pelos rios Pinheiros e Tietê. A diferença entre é que os primeiros foram claramente beneficiados pelas políticas adotadas pelo PT e os últimos foram os grandes prejudicados, tal como é possível observar nas turmas de medicina da USP.

O Brasil segue em frente. Isso é a democracia. Eleições existem para manter ou mudar o governo. Desde 2002, a maioria do eleitorado vem escolhendo um determinado conjunto de políticas. Nada é eterno. É impossível dizer quantas eleições mais o PT vencerá. É impossível afirmar que o partido de Lula e Dilma perderá a próxima. Tudo depende, como sempre, do desempenho da economia e, sejamos repetitivos, da avaliação do governo no ano da eleição.

O fato é que nosso sistema funciona, e bem. Tão bem que as dores do parto vêm sendo ouvidas por todos. Tão bem que essas dores podem se revelar com toda sua crueza para uns, e com sua justiça para outros. Depende sempre do ponto de vista.

Passada a eleição, é hora de o governo governar e também é chegada a vez de a oposição fazer oposição. O sucesso do sistema político depende de governo e oposição. Neste momento, torcer pelo Brasil é desejar que os dois lados, o vencedor e o derrotado de 2014, cumpram seus respectivos papéis, realizem o que deles se espera.
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* Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida

O QUE ESPERAR DE DILMA?

 AP
 José Álvaro Moisés não afasta a possibilidade de uma crise institucional, "num Congresso muito mais fragmentado e 
com o PMDB, setor importante da base 
aliada, muito dividido"
A reeleição apertada de Dilma Rousseff contra seu opositor Aécio Neves foi o fechamento de um ciclo eleitoral cheio de reviravoltas e surpresas. Assumindo em meio a um quadro econômico difícil e com um Congresso mais fragmentado e mais hostil à situação, a presidente será obrigada a dialogar com a sociedade, o mercado e as forças políticas de um modo que contrastaria com seu primeiro mandato.

O Valor reuniu quatro especialistas em política brasileira para discutir os desafios que esperam o país nos próximos quatro anos e o legado deixado por um período eleitoral intenso e agressivo. A socióloga Fátima Pacheco Jordão, diretora da Fato Pesquisa; o cientista político Alberto Carlos Almeida, do Instituto Análise; o filósofo Renato Janine Ribeiro e o cientista político José Álvaro Moisés, ambos da Universidade de São Paulo, foram unânimes em apontar o descompasso entre o sistema político e as demandas da sociedade. Para eles, nem a situação nem as oposições conseguem responder aos anseios da população.

Em suas primeiras manifestações após a vitória, Dilma prometeu avançar no projeto de reforma política. Para os especialistas, a conjuntura econômica e os interesses dos partidos instalados tornam a reforma difícil. Além disso, os próximos quatro anos serão decisivos para os principais partidos, que terão de encontrar lideranças renovadas para participar da próxima eleição presidencial, em 2018.
Leia, a seguir, trechos da mesa-redonda realizada na redação do Valor, em São Paulo, que contou com participações dos jornalistas Maria Cristina Fernandes, Cristian Klein, Robinson Borges e Bruno Yutaka Saito:

Valor: Quais são os maiores desafios para o segundo mandato de Dilma Rousseff, tendo vencido com margem tão apertada?
José Álvaro Moisés: O próximo governo terá que enfrentar uma crise institucional, a dar crédito ao que a mídia tem dito sobre a delação do ex-diretor da Petrobras [Paulo Roberto Costa], que pode envolver cerca de 50 figuras importantes do sistema político. Não é uma situação muito simples para começar um novo governo. Como vai se formar a coalizão em um Congresso muito mais fragmentado, e com o PMDB, setor importante da base aliada, muito dividido? De certo modo, a divisão do PMDB reflete na prática a divisão do eleitorado. A expressão de que o país está partido ao meio é muito forte, mas a divisão foi muito além do que se podia imaginar. O PT perdeu parte da bancada: 18 deputados. Não é pouco. Não temos um roteiro de como vai ser o próximo governo. Qual vai ser a natureza da coalizão? Quais são as primeiras metas? Como vai ser feita a reforma política?

Renato Janine Ribeiro: A parte mais vocal da população, com mais acesso à mídia, mais condições de se projetar, votou majoritariamente na oposição. Vai ser difícil governar. Tenho um certo pessimismo, porque, embora considere Dilma uma pessoa de grande lisura pessoal e grande preocupação com as causas sociais, me preocupo com o pouco diálogo que ela sempre manteve. Ela vai dialogar com o empresariado, que se queixa tanto de não ter acesso à Presidência? Vai dialogar com os políticos? Vai dialogar com a sociedade?

Ribeiro lembra que a parte "mais vocal" da população, "com mais acesso à mídia", votou majoritariamente na oposição. Então, "vai ser difícil governar"

Fátima Pacheco Jordão: Foi uma eleição muito longa. Começou em junho de 2013 e teve várias etapas. Foi sempre um desafio entender o que estava acontecendo. Os movimentos de junho [de 2013] arrebataram o Brasil, mas a sociedade só entendeu quando conseguiu articular um slogan, a ideia de "saúde padrão Fifa", que desaguou nos protestos em relação à Copa do Mundo. É uma mudança importante no olhar da sociedade. Começou o protagonismo de uma nova face da cidadania, o contribuinte. Muito lentamente, essa tendência vem vindo lá de longe, desde a crise do Orçamento, no início dos anos 1990, quando se começou a discutir para onde vai o dinheiro público. O brasileiro foi educado com um padrão de consumo em que, quando um produto não presta, ele deve ser trocado, e são produtos que têm preços e impostos. As manifestações disseram: "Queremos melhores serviços, um governo mais eficiente". Não sei se os partidos entenderam. O que sintetizou esse movimento foi a percepção de que algum tipo de mudança era desejado por 70% do eleitorado, e mesmo assim não foi nem uma eleição de mudança, nem de continuidade. Ficou no meio do caminho, e hoje provavelmente o eleitor está um pouco perplexo: "Muito bem, mudou, mas não mudou tanto". O discurso de vitória da presidente foi um discurso de mudança, apesar de ela ser continuidade. Essa ambiguidade vai ser resolvida pelas crises que vierem, pela maneira como os políticos, em particular a oposição, se posicionarem.

Moisés: Concordo que haja ambiguidade. Isso aparece nos temas que cruzaram os últimos debates e a primeira manifestação da presidente. O subtexto do discurso é: depois de uma disputa tão agressiva, coisa que não é nada boa para a democracia, como criar condições de diálogo entre as forças políticas? O contexto de crise econômica vai exigir cooperação. E ela introduziu de modo surpreendentemente contundente o tema da reforma política, que apareceu marginalmente na campanha. Embora se falasse em "nova política" na campanha de Marina Silva, embora Aécio Neves brandisse a ideia de eliminar o instituto da reeleição, não apareceu com claridade o que seria a reforma política. No discurso de Dilma, é como se essa reforma fosse a primeira grande bandeira, e mesmo assim não estava bem definida. Também concordo que a campanha começou com as manifestações do ano passado. Acho que parte das oscilações que ocorreram na campanha tem a ver com o mal-estar com o funcionamento da democracia. Um mal-estar que aparece nas pesquisas que tenho conduzido há algum tempo. Não é que as pessoas não sejam favoráveis ao regime democrático, mas na percepção do funcionamento do regime há déficits importantes. O Congresso e os partidos têm mais de 80% de desconfiança. Muito disso decorre do fator corrupção. Quando as pessoas percebem que a corrupção é sistêmica, a desconfiança cresce.

Ribeiro: Muita gente está falando em mudança, mas o que se entende por mudança é muito diferente. O Brasil hoje é um país que se sente constantemente incompleto. Alguns acham que estamos no caminho certo; outros, no caminho errado. Mas ninguém está satisfeito, por exemplo, com os serviços públicos. A pessoa pode querer mudança sob um partido que considera bem-sucedido na inclusão social. Ou pode achar que a economia não está bem, que a corrupção não foi debelada etc. Houve um racha de interpretações do mundo. Não é questão de ter os fatos e divergir na interpretação. Os fatos que são narrados, de um lado e do outro, são diferentes. Temos isso na palavra "corrupção", na palavra "esquerda". E "ética". ". Ética poderia ter o sentido, que considero primordial, de acabar com a miséria. Isso é muito evidente em observadores estrangeiros, como Darwin, que visitou o Brasil e declarou: "Nunca mais passo em um lugar que tem escravidão". Até jornalistas contemporâneos estrangeiros, independentemente da visão política que tenham, dizendo que a nossa chaga maior é a miséria. No entanto, a tendência mais forte, recentemente, é colar a palavra ética à corrupção. Essas duas ideias de ética não são necessariamente contraditórias. Para tornar o país ético é preciso acabar com a miséria e também com a corrupção.

Alberto Carlos Almeida: A campanha explicitou um grande problema do nosso sistema político: a escolha dos candidatos. Várias fragilidades de Dilma e Aécio não existiriam se o processo de seleção passasse por primárias efetivamente abertas, sem que o peso de qualquer máquina pública interferisse na escolha. [Barack] Obama é o exemplo clássico. Foi escolhido contra a máquina, que estava a favor de Hillary [Clinton]. Hoje, Obama não tem o controle sobre quem será o candidato democrata para a sua sucessão. As primárias vão escolher o melhor.

Ana Paula Paiva / Valor 
“O discurso de vitória da presidente foi de mudança, apesar de ela ser continuidade”. 
É uma ambiguidade a ser resolvida, adverte Fátima Jordão 
 
Valor: Essa foi a sexta eleição polarizada entre PT e PSDB, em um sistema partidário fragmentado, que colocou 21 partidos no Congresso. Por que essa polarização não consegue nortear o Congresso?
Almeida: O PT perdeu deputados. O PSDB aumentou em relação ao fim da legislatura, mas não em relação ao que elegeu em 2010. Quem ficou mais forte foi o PMDB. É quase inevitável o fim do DEM. Pode até ser que muitos do DEM migrem para o PSDB, que teria chances de se tornar o maior partido da Câmara. Dilma vai ter que negociar, coisa que não fez no primeiro mandato. Vai ter que chamar os líderes partidários, perguntar o que querem. Fazer reuniões periódicas. Fazer o que todo político faz. Tem uma variável nova, que foi o PT conquistar mais espaço nos governos estaduais. Foi a primeira vez que o PT elegeu um governador no Sudeste [Minas Gerais]. Dos três Estados mais importantes do Nordeste, vai governar dois [Bahia e Ceará]. O PT, em 2010, elegeu governadores que abarcavam 15% da população. Hoje são 24%. O PSDB, em 2010, abarcava 47% da população. Hoje, 35%. A distância entre PSDB e PT caiu de 32 pontos percentuais para 11. O PSDB murchou nos governos estaduais, o PT se ampliou. Isso impacta na Câmara, porque os governadores vão negociar com as bancadas de seus Estados, independentemente de partidos. O governador petista de Minas pode induzir mesmo deputados que não sejam petistas a votar a favor do governo. Isso pode beneficiar o segundo mandato de Dilma. Mesmo assim, ela vai ter que aceitar o mundo político tal como ele é, negociar e ceder ao mundo político. Também não está fora do horizonte que a Câmara mande como recado para ela a escolha de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) presidente da Câmara. Ele é um franco favorito dentro do PMDB. Será necessário um enorme esforço do PT para reverter essa tendência. E para reverter, terá que ceder muito ao PMDB.

Ribeiro: O sistema político brasileiro é sofisticado. Mesmo quando produz resultados de que a gente não gosta, essas coisas não se resolvem com uma canetada, o que dificulta a reforma política. Chegamos a um ponto em que é o Executivo que nos salva do Legislativo. Isso é muito ruim. Temos uma tradição de só ver como decisiva a pessoa que escolhemos para comandar o Executivo. Quando vamos eleger o colegiado, não damos grande importância. O Congresso, apesar de ter regras mais democráticas de composição e eleição, também resulta disso. O incentivo ao parlamentar é votar, sobretudo em ano de eleição, agendas que tornem praticamente impossível governar. O Legislativo tende a ser irresponsável. É estrutural. Vai haver maioria a favor do governo. A maior parte dos projetos do governo vai ser aprovada. Os mais polêmicos dificilmente, como se viu no Código Florestal, quando foi aprovada uma legislação retrógrada, mas o veto presidencial evitou os piores males. Mais do que isso é difícil conseguir.

Moisés: Tenho dúvidas se só os parlamentares são irresponsáveis. O Executivo impõe a agenda ao Congresso. Isso tem um impacto enorme no funcionamento dos partidos. Os incentivos para eles funcionarem em relação com a sociedade, com os eleitores, com sua base de apoio, são muito pequenos. Os incentivos são muito mais para os parlamentares aderirem à coalizão majoritária do que para desempenharem o papel de representação, fiscalização e controle. Um segmento importante da sociedade não está identificado com a posição que venceu. Como esses segmentos estarão representados em um Congresso que tem pouca autonomia? Isso aumenta a crise de representação. Nosso sistema tem dificuldade de formar novas lideranças democráticas, capazes de interpretar os desafios desse momento como algo que tem consequência no futuro do país.

Almeida: A Presidência vai ser disputada pelo PT e pelo PSDB a perder de vista. O PSDB tem a base em São Paulo, o PT tem o Nordeste e agora Minas. Rio de Janeiro, Minas e Nordeste, versus São Paulo e o Sul. Isso assegura a existência dos dois. Vão competir sempre. Sobre a fragmentação, o responsável é o Supremo Tribunal Federal, que votou contra a lei que impunha uma barreira de 5% dos votos nacionais para a representação no Congresso. É um absurdo o que acontece no Brasil. Cada um agora tem um partido para chamar de seu. Quem não tem espaço em um partido funda um novo. Esses partidos não representam nada, só a si próprios. Não precisamos de tantos partidos assim para representar os diversos interesses da sociedade. Não há tanto interesse divergente, a política não é assim.

Ana Paula Paiva / Valor 
Ribeiro: “O Brasil hoje é um país que se sente constantemente incompleto. Alguns acham que 
estamos no caminho certo; outros, no errado”
 
Valor: 0 próximo ano será difícil na economia. Dilma vai ter que fazer cortes e tomar cuidado com onde a corda vai estourar.
Almeida: Dilma gosta muito de ler, mas não leu "Capitalismo e Social-Democracia", de Adam Przeworski. Se tivesse lido, ela já teria composto com os investidores. Ela quer melhorar a vida da população, mas a decisão do investimento está nas mãos dos investidores. Se não investem, piora a situação da população e você corre o risco de perder as eleições. Quase aconteceu agora. Se ela quiser continuar parindo a sociedade democrática e igualitária, paradoxalmente, vai precisar transferir renda dos de baixo para os investidores, nos primeiros dois anos, para que eles invistam e só depois volte o processo de transferência de renda. Tem um mandato de quatro anos. Arrochando os dois primeiros, ela pode liberar os dois últimos. Lula, como bom líder sindical, sabia fazer isso. Essa é a grande diferença entre Dilma e Lula. Ele aprendeu na prática. Ela, nos livros. Ela não compõe com os investidores, tem um ranço anticapitalista.

Moisés: Se ela fizer isso, o ônus vai ser da classe média. Uma das consequências é o imobilismo nessa área da sociedade, e muito dificilmente os partidos vão ter capacidade de mobilizar para fazer a reforma política.

Almeida: Não vai ter reforma porque não tem consenso no Congresso. Reforma política depende dos políticos. É a vida deles. Para o PMDB, é ótimo que tenha um monte de partidinhos. Ele tem poder de influência em todo mundo. A quantidade de pequenos partidos é tão grande que eles juntos têm poder de veto contra qualquer lei que os reduza. A grande reforma seria reduzir o número de partidos, para que os políticos disputem espaço dentro deles. A vida partidária brasileira é oligarquizada e a sociedade está cada vez mais competitiva.

Moisés: A oligarquização dos partidos é algo que temos tido ao longo do tempo. Provavelmente, o único partido que escapa em parte a isso é o PT, porque tem uma vida interna e debate constante. Ainda assim, tem o outro tipo de oligarquização, porque Lula não apenas escolheu sozinho candidatos, como descartou, desqualificou todas as lideranças que, dentro do partido, disputavam com ele. Ele sobrou sozinho. Mesmo o partido que está mais longe da estrutura da oligarquização ainda assim, não é propriamente democrático.

Valor: É possível continuar fomentando uma sociedade mais igualitária sem conflitos? Afinal, as condições econômicas são bem menos favoráveis à conciliação. A estratégia atual está atingindo seus limites?
Almeida: Muito do que se diz sobre o Bolsa Família é mito. Por exemplo, quanto mais Bolsa Família, maior a votação do PT. É mais honesto olhar o crescimento do PIB: o grande tópico sempre vai ser a economia. Nos lugares onde houve crescimento maior do PIB, o Nordeste se destacando, o governo foi mais bem votado. O crescimento foi assimétrico, beneficiou mais os mais pobres. E nos lugares, São Paulo se destaca, onde o crescimento do PIB foi menor, o governo foi menos votado. As pessoas querem mais e melhores empregos. Tanto para Dilma como para Aécio, bastava passar a campanha inteira falando em como gerar mais e melhores empregos. O eleitorado quer isso. O Bolsa Família é pouco significativo.

"Não vai ter reforma porque não tem consenso no Congresso. Reforma política depende dos políticos. É a vida deles", 
diz Almeida

Fátima: Já temos um estoque de leis, de políticas, não votadas, engavetadas, que estão prontas. Desengavetar é mais fácil que produzir. Talvez o conflito seja menor do que parece, tendo em vista que a sociedade tem Ministério Público, Justiça, todo um aparato de Estado. Muitas dessas políticas acontecem de baixo para cima e acho que vamos ver movimentos no estoque de bondades que estão parados no Legislativo e até mesmo no Executivo. Por exemplo, no tema da violência contra a mulher, há quatro anos existem propostas no governo sobre isso, e só nos últimos meses foram criadas as casas de atendimento à mulher. São pouco mais de 20, em todo o Brasil. Mas esse modelo já está dado e sabe-se que funciona. A Delegacia da Mulher existe há três décadas, foi um mecanismo inovador, basta dar vida aos projetos, mostrar que eles têm existência real. A sociedade tem mecanismos para sair da paralisia e dos impasses, tem dinamismo.

Ribeiro: Isso é um dos muitos problemas que o próximo governo vai ter e Aécio também teria, se eleito. A inclusão social não está completada, não está nem assegurada, porque, se vierem dois anos de represamento, como anunciado, pode até rebaixar o nível de gente que conseguiu uma pequena subida. O mundo político tem sido capaz de esterilizar as demandas que vêm de fora. Como fazer sangue novo entrar na política? Tem bloqueios sérios. Como se consegue passar além da redução da miséria, uma agenda em última análise negativa, para uma agenda positiva?

Ana Paula Paiva / Valor 
 “Dilma vai ter que negociar. Vai ter que chamar os líderes partidários, perguntar o que querem, 
fazer reuniões periódicas”, prevê Almeida
 
Valor: Aécio Neves, com essa votação, não é uma opção para 2018?
Almeida: Ele agora vai passar a dormir com o inimigo: José Serra. São dois senadores. Só que Serra tem uma capacidade de trabalho muito maior que Aécio. Já está na mídia dizendo como vai ser a oposição do PSDB, ou seja, já assumiu a liderança da oposição tucana no Senado. E a máquina, quem tem é Alckmin. Em 2006, Alckmin pegou um avião, foi falar com cada governador do PSDB, e foi indicado. Muito fácil fazer isso sendo governador de São Paulo.

Moisés: O grande desafio vai ser Serra e Aécio construírem juntos uma oposição consistente. Não apenas capaz de fazer oposição no Congresso, pressionar as posições do governo, mas também apresentar um modelo alternativo de desenvolvimento. Aécio se credenciou nessa campanha como uma liderança.

Valor: A agressividade da campanha denota algum problema na cultura política brasileira?
Moisés: É uma questão da cultura política que tem muito a ver com comportamento de lideranças. Nesta campanha, passamos além de uma linha que seria razoável. Tem na cultura brasileira um elemento de contrastes muito fortes, mas não chegam a ser confrontos de guerra. Em certo ponto desta campanha, os contendores pareciam estar em guerra. Será que é um traço permanente da cultura política? Não creio. Temos tido, pelo contrário, uma série de mudanças na cultura política dos brasileiros, no sentido de mais interesse, de mais participação, de buscar mais informação.

Fátima: O cidadão não está enxergando mecanismos de mediação. Ele não reconhece representantes partidários, desconfia e tem uma profunda crítica dos políticos. E está um passo à frente da percepção que partidos e analistas políticos têm de certos aspectos, como a corrupção. O eleitor a enxerga como uma forma de não realização, uma forma de drenar recursos que poderiam produzir serviços e bens, e de desequilibrar o que o eleitor tem como pagador de impostos. A mediação terá de ser trabalhada dentro de um sistema político já fragmentado. Mas também por um processo de entender a nova capacidade de informação que o brasileiro tem. A grande transmissão por novas mídias está dando um poder novo à sociedade. O sistema bloqueado como está, o discurso codificado dos políticos, a segmentação da forma como a informação é passada para a sociedade, precisa ser repensado.

Almeida: Isso é a dor do parto de uma sociedade igualitária e democrática. É a quarta vez que o PT elege um representante e a lógica é clara. Quem é mais pobre vota no PT, quem é menos pobre vota no PSDB. Por 16 anos, aqueles que votam no PSDB não se sentem representados pelo presidente. Além disso, está aumentando a igualdade social. O emblema maior é a empregada doméstica. O Brasil tem uma herança escravista e uma das maiores desigualdades do mundo, que vem sendo reduzida. Isso não se faz sem dor e essa animosidade tem a ver com isso.

Valor: Qual é a possibilidade de Dilma entregar a candidatura para Lula em 2018? Foi o primeiro nome que ela citou no discurso de agradecimento.
Ribeiro: Acho um desastre se isso acontecer. Significa que o partido não foi capaz de se renovar. Suponhamos que em 2018 Lula seja o melhor nome que o PT tenha. Suponhamos que ele seja a bala de prata para ganhar a eleição. Em 2022 ou 2026, o PT acaba. No fim do mandato, serão 40 anos da fundação do PT. Se um partido em 40 anos não saiu da mesma pessoa, ele está muito fraco. Essa renovação da liderança está dificílima. O PSB não tem ninguém fora Marina, o PT está entre dois Fernandos: Haddad [prefeito de São Paulo] e Pimentel [eleito governador de Minas Gerais]; e o PSDB, [Geraldo] Alckmin.

Valor: Até que ponto o eleitorado está atento às fraquezas da vida pessoal dos candidatos?
Almeida: A campanha explicitou um grande problema do nosso sistema político: a escolha dos candidatos. Se tivéssemos primárias, o PSDB jamais escolheria um candidato que seria atacado em questões pessoais. As pesquisas mostram que, pela primeira vez, o PT teve mais votos entre mulheres do que entre homens. Por quê? Porque o candidato do PSDB tinha um grande problema na sua biografia. Se o processo de seleção fosse aberto, teria aparecido antes. Primárias seriam melhores para os partidos. Quanto mais abertas as primárias, melhor o candidato escolhido. Mas os nossos partidos são oligarquizados.

Fátima: Essa questão parece submersa, mas está presente na mente das mulheres. O gesto de levantar o dedo contra adversárias no debate, por exemplo. Quantas mulheres já não passaram por isso dentro de casa! As mulheres já têm outro papel na sociedade. O PSDB não tem mesmo visão para a questão de gênero. Eu me lembro de Ruth Cardoso, uma feminista, que dizia: "Não adianta. Esse partido não tem jeito na questão da mulher."

Moisés: Dilma assumiu muito mais esse papel de identificação com temas que interessam às mulheres nesta campanha do que na de 2010. Isso pode ter sido uma marca importante.
Fátima: Na eleição passada ela ficou na defensiva. Com relação ao aborto, ficou silenciosa. Nesta eleição, adotou uma ofensiva forte.

Ribeiro: Parafraseando a Ruth, o PSDB não tem jeito. Não cria capilaridade, não se articula na área sindical, não ouve, não vai buscar os cientistas, os intelectuais, não senta para ouvir. Temos um problema com o principal partido de oposição, que não cria laços na sociedade.
Ana Paula Paiva / Valor 
Além de se mostrar “consistente”, a oposição terá o desafio de apresentar um modelo 
alternativo de desenvolvimento, afirma Moisés
 
Valor: Marina Silva perdeu capital político por ter sido oscilante e apoiar Aécio?
Fátima: Ela é muito resistente. Aumentou a capacidade de voto. Tinha 20 milhões, passou para 22 milhões. Não é pouco, sendo uma candidata improvisada, depois de uma tragédia. Ela representa uma ansiedade grande da sociedade, dessa mudança na forma de fazer política. Ela formulou uma mudança bem mais radical da política, da representação partidária. Mas não conseguiu sustentar, à luz do eleitor, essa capacidade de transformação.

Ribeiro: Ela não está liquidada. Pelo visto, sempre que alguém vai levar uma goleada, o sistema político que temos no Brasil dá uma sobrevida. Aécio poderia ter sido liquidado há um mês. As indicações de Lula poderiam ter tido um final catastrófico. Se Dilma tivesse perdido, essa imagem estaria acabada. Dos três indicados dele, nas três últimas eleições, [Alexandre] Padilha teve um desempenho pífio [na disputa para governador de São Paulo], Dilma teria perdido e sobraria só Haddad. Serra e Alckmin também poderiam ter sido liquidados por derrotas e não foram.

Almeida: Marina não fez nenhuma proposta clara durante a campanha. A proposta dela era: Banco Central independente. O que isso quer dizer para o eleitor? Nada. Banco Central é um meio para alcançar um fim. O que importa é o fim: gerar mais emprego.

Ribeiro: Marina é um caso clássico de fortuna sem virtude política. Ela não soube o que fazer com a fortuna que caiu no colo dela. Depois de ter 20 milhões de votos, não conseguiu montar o partido. Por mais que ela tenha raiva do PT por ter sabotado o Rede, não é possível entregar os documentos no Tribunal Eleitoral na última hora. O apoio a Aécio foi um erro. Quem é terceira via tem que ser terceira via.
Ana Paula Paiva/Valor 
José Álvaro Moisés, Fátima Pacheco Jordão, Renato Janine Ribeiro e Alberto Carlos Almeida durante 
o debate sobre questões que esperam o novo governo de Dilma Rousseff
 
Valor: Como fica o retrato político do Brasil nos próximos anos?
Moisés: Esta campanha deixa desafios que tocam em questões centrais do desenvolvimento político do Brasil desde a redemocratização. Mas estou pessimista com o modo como o sistema vai enfrentar esses problemas. Não sei se a vitória que Dilma teve vai ser suficiente para ela fazer essa correção de conduta, dialogar, ouvir, e até, em algumas questões nacionais, buscar pontes com a oposição. Não vejo sinais nessa direção. Vejo o mesmo problema no polo da oposição. Ela cresceu, mas isso não é suficiente para um desempenho que responda às questões mais urgentes. As oposições brasileiras vão precisar se reinventar. Será que isso vai ser possível com essas pessoas?

Fátima: A resposta vem da sociedade. Tem um consenso de desqualificação dos quadros eleitos, do parlamento conservador, diante de um Brasil muito dinâmico. Existe um crise, que exige resposta, e essas representações não estão conseguindo articular. A resposta virá da sociedade, sua organização em movimentos, sua articulação na capacidade de informar, não só ser informada. E da capacidade das lideranças que não estão dentro dos partidos, mas que fora deles estão tendo um protagonismo extraordinário.

Ribeiro: Estou tendo de rever várias convicções. O caráter agressivo da campanha pode ter sido bom. Foi a campanha que teve mais coisas descascadas. A discussão caiu de nível, mas isso não deixa de ter um aspecto positivo. A gente teve um certo avanço. A agressividade da campanha acaba fazendo sobrar só quem realmente tem resistência e consistência nas propostas. Nosso sistema de eleição presidencial tem um lado bom. As pessoas são bombardeadas. Isso que Dilma sofre há anos, que Aécio sofreu nos últimos meses. O aeroporto de Cláudio. O candidato apanha tanto que tem que ter consistência. Marina recebeu um presente, por triste que seja dizer isso: ela teve pouco tempo de bombardeio e mesmo assim não passou.

Almeida: Agora é pensar no futuro governo. Governo novo, ideias novas. Mudou a estrutura de incentivos. Quando Dilma foi eleita pela primeira vez, ela mesma teria de disputar a reeleição. Agora será outro. De onde virá esse outro? Tem Pimentel em Minas. O Nordeste vai votar no candidato do PT. O Rio de Janeiro também, se cuidarem dele direito. O futuro candidato também pode ser um ministro, dependendo da performance. [Aloísio] Mercadante? Jacques Wagner? Tudo depende da economia. Se ela não fizer a inflexão de política econômica agora, vai perder. E o PSDB também pode ter outro candidato. Não precisa ser Alckmin, nem Serra, nem Aécio. Alckmin tem a faca e o queijo na mão, porque tem a máquina. É tradição brasileira. Quem tem a máquina leva uma vantagem fenomenal. Se ele quiser ser candidato, esquece Serra, esquece Aécio.

Valor: As eleições permitem vislumbrar mudanças da sociedade civil como um todo?
Fátima: Houve uma aceleração muito forte da fluidez da informação. Há segmentos que conseguem, independentemente de partido, expressar novos horizontes para a sociedade. Além da votação das mulheres, a população negra votou massivamente em Dilma. No último momento, Dilma conseguiu captar entre os jovens um volume de votos que lhe garantiu a vitória. Esses segmentos, que não estão representados nos partidos e no Parlamento, vêm formatando políticas públicas ao longo dos últimos anos. São propostas que não encontram ressonância nos partidos. Quando Dilma foi escolhida por Lula, foi uma escolha também oportunista, se aproveitando dessa visão de que alguma coisa, nas frestas institucionais, está modificando a sociedade e tem que rebater na política. Dilma representou uma ansiedade de equilibrar a participação de gêneros.

Ribeiro: O repertório político relativamente pequeno da sociedade é um problema. Militantes e eleitores têm dificuldade de fazer uma tradução política dos problemas e equacioná-los politicamente. As questões da sexualidade, da igualdade feminina, da igualdade étnica, foram aparecendo no Brasil sem ter de imediato a perspectiva política. Não sei se essa transferência de pautas da vida para a política vai continuar. Os rolezinhos, no começo do ano, foram muito significativos, porque tinham um sentido político. Jovens excluídos que querem ter acesso ao templo do consumo, mas sem consciência política.

Moisés: Um dos grandes paradoxos é esse. Das manifestações enormes em cidades importantes não apareceram lideranças com capacidade de liderar e canalizar. É um paradoxo que está relacionado à crise de representação. Qual seria o perfil possível das reformar políticas propostas? Isso não ficou claro em nenhum dos candidatos. Marina falava de nova política de maneira muito genérica. Aécio, afora a questão da reeleição, não elaborou. A manifestação de Dilma tampouco foi clara. Isso pode levar a um novo ciclo de frustração, ao anunciar algo muito relacionada com a energia da mudança mas, com o Congresso dividido, chegar a um fim precoce. Dilma diz que a reforma tem que ser feita com plebiscito. Não dá para resolver os temas da reforma política em plebiscito.

Ribeiro: O PSOL, no fim das contas, talvez seja o único partido consistente ao invocar as manifestações. É o partido mais à esquerda com representação no Congresso.
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Reportagem Por DIOGO VIANA. para o Valor de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 31/10/2014

FILÓSOFO DO AMOR


Divulgação
Bruckner: 
"O Facebook simula relacionamentos"
 
 Mas hoje, numa distorção do iluminismo, somos forçados a ser felizes o tempo todo, 24 horas por dia, sete dias por semana. Ora, isso é impossível e só causa decepção. 
O sentido da vida não é a felicidade. 
É viver."
Até pouco tempo atrás, parecia impossível refletir sobre o amor e o prazer com seriedade. O assunto era considerado secundário e ultrapassado, algo com que os filósofos estoicos e epicuristas gastavam tempo durante a Antiguidade. Com os avanços da sociedade de consumo, porém, a busca pelo amor e pelo prazer, a amizade nas redes sociais e a compulsão pelo consumo de bens imateriais passaram a ter relevância. Esse novo "espírito do tempo" do início do século XXI ganhou o seu filósofo: o francês Pascal Bruckner. Ele esteve pela primeira vez no Brasil neste mês para proferir duas palestras na série Fronteiras do Pensamento. O tema da conferência foi a busca pelo prazer e a decadência do casamento por amor.

"Aristóteles dizia que somos felizes por intermitência", diz Bruckner em entrevista ao Valor em São Paulo. "Mas hoje, numa distorção do iluminismo, somos forçados a ser felizes o tempo todo, 24 horas por dia, sete dias por semana. Ora, isso é impossível e só causa decepção. O sentido da vida não é a felicidade. É viver."

Bruckner é cheio desse tipo de tirada. Não aparenta os seus 65 anos. Exibe cabelos longos e se veste como um "hipster" tardio. Fala pausadamente e gosta que o chamem de Pascal. Ficou famoso por participar do grupo dos "nouveaux philosophes" que se tornou moda na Paris de Maio de 1968 porque enfrentou temas até então desprezados pelo alto pensamento francês: a sexualidade e seus efeitos sobre as relações políticas e as trocas econômicas, por exemplo. Foi orientando do teórico literário Roland Barthes - que, no fim da carreira, se interessou por descrever a estrutura do discurso amoroso. Depois de se formar em filosofia e letras, Bruckner começou a carreira como professor e romancista. Seu primeiro romance, "Allez Jouer Ailleurs", saiu em 1976. Em 1981, publicou a segunda obra ficcional, "Lua de Fel", adaptada para o cinema em 1992 pelo diretor Roman Polanski.

"O Facebook simula relacionamentos íntimos, como amor e amizade. As pessoas não podem confundir isso 
com a experiência real", afirma

Apesar de continuar a fazer ficção (tem dez títulos no gênero) e a se aventurar por outras searas (lança sua autobiografia, "Un Bon Fils", no fim do ano - que ele jura que não terá nenhum resquício de autoficção), ele ficou famoso como ensaísta. Publicou 14 títulos, entre eles "A Tirania da Penitência - Ensaio Sobre o Masoquismo Ocidental" (2006), "O Paradoxo Amoroso - Ensaio Sobre as Metamorfoses da Experiência Amorosa" (2009) e "Fracassou o Casamento por Amor?" (2010), todos publicados no Brasil pelo selo Difel, da editora Bertrand Brasil. Ao tratar o amor e seus desdobramentos como coisa séria, Bruckner influenciou outros pensadores e romancistas, como o amigo e colega Luc Ferry e o romancista Michel Houellebecq. "Felizmente sou influente e faço sucesso", afirma. "Mas há uma vida depois do renome, assim como há uma vida depois do orgasmo. É preciso organizar as coisas."

O seu cotidiano explica muito sua forma de pensar. Casado, pai de três filhos, vive longe das conturbações amorosas que ele próprio denuncia, como o fim do casamento tradicional: "Sou um hedonista. Eu driblo a infelicidade a qualquer preço. Mas a felicidade não é o valor primordial. Tenho paixões que procuro satisfazer. Prefiro multiplicar as paixões em vez de ficar com a paixão da felicidade, e minha primeira paixão é meu trabalho, é escrever."

Se existe um lado repetitivo, ele é compensado pela descoberta de uma ideia e de uma fórmula. Ele se diz "um funcionário da escrita": "Sou disciplinado na minha paixão. Trabalho o tempo todo e sacrifico tudo à minha paixão. Quanto mais velho, me torno mais disciplinado. Meu método é escolar. Fui um bom aluno na escola e mantenho meus velhos hábitos. Leio, tomo notas, faço o plano de uma obra. Meus amigos fazem a mesma coisa. Luc Ferry trabalha até no avião." Mesmo assim, tenta harmonizar a vida pessoal. Bruckner orienta a filha de 17 anos, que começou a fazer faculdade de medicina. "Além disso, cultivo os amigos, vou a festas e encontros. Hoje somos herdeiros de época diferentes simultaneamente: dos libertinos, dos românticos, dos hedonistas. Somos resultados de épocas históricas diversas. Sou sentimental, libertino e hedonista, em dosagens diferentes."

De acordo com ele, o ideal do amor e da felicidade completa cegaram as pessoas ao longo dos últimos dois séculos. "O problema é que ninguém é capaz de definir o que é a felicidade. Trata-se de uma abstração. Os gregos diziam que o maior problema dos homens é eles desejarem ultrapassar os deuses. Mesmo os deuses têm paixão, cometem crimes e não são felizes o tempo todo. Seria uma pretensão ser feliz o tempo todo." As origens da nova ordem estão na Revolução Francesa: "O direito à felicidade que era uma ideia nova de Saint-Juste na Revolução Francesa", comenta. "Hoje, por um efeito da mentalidade coletiva, todo mundo é obrigado a ser feliz. A culpa não é do mercado, nem do estado, nem das pessoas. É o espírito do tempo. É a mentalidade de nossa época. Por isso é tão poderoso e tão forte. Mesmo eu, que analiso o problema, tenho vontade de agir assim e de parecer feliz e relaxado diante dos outros. No que diz respeito à felicidade, somos ao mesmo tempo vítimas e carrascos."

Bruckner diz que a mudança do padrão de felicidade ocorreu nos anos 60, por dois motivos: a passagem do capitalismo da produção para o capitalismo do consumo e a revolução individualista. "A partir de um certo momento, a economia de mercado não pôde mais defender o ascetismo e passou a defender o hedonismo, porque a superprodução de bens criava a necessidade de que as pessoas consumissem", afirma.

"Com a invenção do crédito, o capital foi colocado a serviço de nossa felicidade. E, assim, nossa felicidade alimenta o sistema. A revolução de Maio de 1968 fez que, pouco a pouco, a pessoa se descolasse da classe social e dos grandes sistemas políticos e se tornasse o centro de um grande sistema de valores. A partir de então, todos se tornaram responsáveis por sua felicidade individual. Se não há mais obstáculos - econômicos, políticos, filosóficos e morais -, sou o único culpado de não ser feliz. Me torno artesão da minha felicidade ou da minha infelicidade. Construir a casa da felicidade é uma tarefa impossível. Vira uma torre de babel. Daí o imenso mercado de felicidade que se desenvolve hoje", observa.

Segundo ele, a obrigação atinge as relações amorosas e é preciso estabelecer um novo contrato sexual, já que o conceito de amor de salvação popularizado pelo romantismo mostrou não ter vínculo algum com o real. "Não adianta imaginar que basta amar e casar para ser feliz", nota. "É melhor adquirir uma visão mais serena da relação amorosa." São incontornáveis, por exemplo, as ligações entre a paixão amorosa e o dinheiro. Não adianta varrer a realidade financeira para baixo do tapete. As relações amorosas se dão na realidade e não na ilusão."

Bruckner também percebe uma distorção nos outros tipos de relação, como amizade. "As redes sociais converteram a amizade em um instrumento de satisfação imediata", ressalta. "Assim, o Facebook é uma farsa - eu mantenho distância dele e do Twitter. O Facebook simula digitalmente relacionamentos íntimos, como amor e amizade. As pessoas não podem confundir isso com a experiência real."

Com base no realismo, ele defende a legalização da prostituição e a igualdade de consumo sexual para homens e mulheres. "A França tornou ilegal a prostituição, e isso vai de encontro ao que acontece em outros lugares, como a Bélgica, a Alemanha e a Holanda", afirma. "É preciso legalizar a prostituição para regulamentar o mercado e evitar o trabalho escravo. O mercado da prostituição é uma realidade. Hoje mulheres canadenses e europeias viajam à África e ao Brasil em busca de garotos de programa. Como impedi-las? Estabelecer um mercado do sexo é a solução." Da mesma forma, é a favor da legalização das drogas. "Hoje todo mundo fuma maconha e usa drogas nas cidades mais civilizadas do mundo", afirma. "Por que impedir isso? A solução menos pior é tornar o mercado de drogas legal. E tanto no caso da prostituição como no das drogas o Estado deve controlar e vigiar o mercado."

Se a felicidade é impossível, no caso de Bruckner até que ela tem algum sentido. Ele se despede com o sorriso de quem conquistou o sucesso e a felicidade. E não parece estar fingindo.
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Reportagem Por Luís Antônio Giron | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 31/10/2014

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

''Em vez de diálogo, é preciso um polílogo.'' Entrevista com Zygmunt Bauman

 
"Usar a palavra 'verdade', no singular, em um mundo polifônico é um pouco como tentar aplaudir com uma mão só... Com uma mão só, é possível dar um soco no nariz, 
mas não aplaudir." 

Teórico da sociedade líquida, Zygmunt Bauman, sociólogo de fama mundial, sempre foi bastante alheio a reflexões de caráter teológico. Mas, na venerável idade de 89 anos, ele ainda sabe surpreender: nestes dias, a editora Laterza manda para as livrarias o seu novo livro Conversazioni su Dio e l’uomo (176 páginas), diálogo com o teólogo polonês Stanislaw Obirek.

A reportagem é de Lorenzo Fazzini, publicada no jornal Avvenire, 29-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Embora sendo agnóstico convicto, no livro, Bauman gasta palavras positivas para algumas experiências de fé, por exemplo a do Solidarnosc. Ele conta sobre um artigo dele publicado no jornal católico de Cracóvia, muito próximo de João Paulo II, Tygodnik Powszechny, justamente sobre o movimento sindical de Lech Walesa.

Ao recordar essa página gloriosa da história, Bauman denuncia: "A nossa sociedade de consumidores totalmente individualizada é uma fábrica não de solidariedade, mas de suspeitas e concorrência recíprocas. Um produto colateral, mas extremamente comum, dessa fábrica é a depreciação da solidariedade humana que afunda suas raízes na atrofia do cuidado do bem comum e da qualidade da sociedade em que a vida do indivíduo se desenvolve".

Em suma, para recuperar a metáfora inicial, com uma mão, é possível também abraçar o outro, ajudá-lo a se levantar da pobreza e fazê-lo se encaixar na categoria dos humanos.

Eis a entrevista.
 
Professor Bauman, no seu novo livro, o senhor indica diversos tipos de pessoas dogmáticas: as religiosas, as marxistas, os dogmáticos da genética, do consumismo, da informação e do mercado. Qual dogmatismo é mais perigoso hoje?
Poderíamos acrescentar outros exemplos. Os dogmatismos são vários e diversificados, mas eu não saberia dizer qual é o mais perigoso. Eles têm em comum o pecado original de se taparem os ouvidos e de fecharem os olhos sobre a inalienável humanidade daqueles que vivem ao seu redor, por mais diferentes que possam ser. Todas as variedades de dogmatismos, no fim das contas, são a rejeição ou a não capacidade de comunicar e de se envolver em um diálogo: são essas duas as artes cruciais para sobreviver neste mundo marcado pela diversificação crescente e por uma diáspora que dá origem a uma crescente interdependência.

O que significa essa interdependência?
Significa que não podemos mais nos separar dos outros, sejam eles estrangeiros, crentes de outra fé em relação à nossa, ou defensores de modos diferentes de viver. Eles não estão distantes ou do outro lado em relação a uma fronteira controlada por algum guardião, mas se encontram no meio de nós, encontramo-los todos os dias no trabalho, nas escolas frequentadas pelos nossos filhos, nas ruas onde vivemos. A diversidade humana está ao nosso lado, até mesmo nos lugares mais próximos. Aprender e praticar a arte do diálogo deveria ser uma das opções a serem inseridas entre as tarefas mais urgentes com as que devemos nos defrontar. A alternativa a cuidarmos uns dos outros é atirar uns nos outros.

O senhor, não crente agnóstico, é muitas vezes convidado a ambientes católicos, como por exemplo, recentemente, na Universidade Católica do Sagrado Coração, de Milão. Um exemplo daquele diálogo autêntico que Francisco pede, um debate entre pessoas que pensam de maneira claramente diferente. Como o senhor reagiu a esse convite de Francisco?
Um diálogo genuíno e digno desse nome não consiste em falar somente com pessoas com as quais gostamos de discutir, negando o direito de intervir e recusando-nos a ouvir. O diálogo consiste em nos abrirmos, sem nenhum fechamento ou preconceito, ao fato da diversidade humana que possui muitas faces. Isso se explica em tentar entender as razões que estão por trás do apego de alguns a determinados assuntos; em aceitar a agir não desde já como um mestre, mas como um aluno; em assumir desde o início uma atitude cooperativa e não combativa, tentando alcançar alguns benefícios recíprocos em sabedoria e experiência, em vez de dividir os participantes entre vencedores e derrotados. Jorge Mario Bergoglio, mesmo antes de se tornar papa, foi para nós um luminoso exemplo da arte de tal diálogo genuíno. Ele fala e falou com a intenção de uma compreensão recíproca e da partilha do conhecimento do outro, e não com a vontade de fazer valer a própria superioridade pré-designada e indiscutível.

"Para que haja verdadeiro diálogo, devemos levar em conta a derrota", o senhor mesmo admitiu. Na sua carreira, o senhor viveu uma "derrota" do seu pensamento?
Isso é o que decorre do que eu dizia antes: o diálogo está destinado a se tornar uma série de monólogos – um exercício que significa falar ao lado de alguém, em vez de com alguém – até nos lembrarmos de que errare humanum est. E, portanto, estarmos prontos a nos pormos em discussão, porque são colocados à nossa frente posicionamentos melhores do que os nossos. Eu devo estar preparado para confessar a minha derrota, para admitir que eu estava errado e para agradecer àqueles que me tiraram do erro. Isso consiste em algo difícil: a maioria das pessoas preferem estar certas, em vez de erradas. Estar errado nos faz perceber um sopro doloroso sobre a nossa autoestima. Mas não aprendemos totalmente a arte do diálogo se não forem praticadas as suas condições mais difíceis. Olhando retrospectivamente para a minha história, eu posso dizer que a admissão de alguns dos meus erros de julgamento e a sua sincera admissão chegaram tarde demais em relação ao que eu queria, embora esperasse que, ao longo da minha longa vida, a distância de tempo entre ter cometido um erro e a sua admissão pudesse se reduzir.

No seu diálogo com Stanislaw Obirek, o senhor sugere um novo modo de dialogar, ou seja, implementar o "polílogo" entre posições diferentes.
É a extensão óbvia do monólogo e do diálogo, ou seja, de um debate que seja mais amplo do que só dois pontos de vista: trata-se de um evento que ocorre muito frequentemente em todas as cidades modernas ou nas ruas debaixo da nossa casa. Na realidade, toda discussão pública é, por definição, um "polílogo". O mundo em que vivemos não é nada digital. Poderíamos dizer que é um mundo analógico, com muitas divisões que se cruzam, algumas simplesmente justapostas, outras que se sobrepõem ou que emergem de maneira leve. Um verdadeiro debate público precisa levar em consideração o fato de ajudar a cristalizar os pontos de contenda e instaurar os potenciais testes de ponte entre a variedade de pontos de vista e de opiniões.

"A verdade é um encontro." O Papa Francisco lembrou várias vezes essa definição. O senhor concorda?
Sim. As verdades, assim como todo conhecimento e tipo de compreensão, são sempre e nada mais do que discursivas. Os encontros humanos são o seu lugar de nascimento e o seu habitat natural. Elas surgem e vivem, ao longo da sua duração e existência, dentro da comunicação inter-humana. Nós, humanos, somos, pela nossa natureza, sociais, interagimos, comunicamos com outros seres humanos. Ninguém pode reivindicar uma verdade como sua própria criação ou propriedade. Ela é formada e se sustenta através de negociações contínuas, mediante a solidariedade e a interação própria dos humanos. A verdade não tem outro lugar para habitar. Se esquecermos desse fato, ocorre aquilo que Martin Buber advertia, ou seja, o encontro se transforma em um encontro fracassado, ineficaz e, enfim, sem propósito.
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Fonte: IHU online, 30/10/2014
Imagem da Internet

Eleições acirraram a luta de classes no país, diz filósofo

O professor Marcos Nobre, doutor em filosofia pela Unicamp
 O professor Marcos Nobre

"A eleição acirrou a luta de classes. Estamos num momento em que a democracia brasileira tem que se decidir se vai se aprofundar ou se vai continuar patinando. As instituições até agora funcionaram para bloquear a diminuição da desigualdade no país. É a ideia de que todo mundo tem que andar em bloco para que todos fiquem mais ou menos onde estão." 

As ideias são de Marcos Nobre, doutor em filosofia pela Unicamp. Para ele, as eleições foram "uma guerra em torno da grade de classes do país": o que está em jogo é a manutenção ou não dessa grade.
Nobre participou na noite desta terça (28) de debate sobre eleições no 16º encontro nacional da Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação de Filosofia) que ocorre nesta semana em Campos do Jordão (SP). Para ele, "as revoltas de junho abriram um horizonte que parecia fechado, e essas eleições já são expressão de que alguma coisa mudou no sistema político".

Uma das coisas mais extraordinárias de 2014 "é que a direita trocou os blindados do Exército por blindados privados –esses carros enormes, que parecem militares, e que têm o adesivo do Aécio".
Sua fala arrancou aplausos e risos da plateia (mais de 350 pessoas) que lotou a sala. 

"Fico feliz que exista uma direita no Brasil que ache que a rua é dela. É um avanço democrático enorme, mas pode haver formas de convivência na rua menos brutais. A direita descobriu que a rua é dela também em junho de 2013, quando a esquerda também descobriu que pode ter mobilização de massa", disse. 

ÓDIO
 
Alguém perguntou sobre o ódio na eleição: "Estou contente que esse ódio tenha aparecido nesta eleição, porque não aguentava a pasmaceira de antes. É uma coisa que deve ser cultivada. Não devemos recuar de medo, dizendo que isso é muito perigoso. É preciso ver esse ódio como manifestação de uma sociedade que quer aprofundar sua democracia. Redemocratizar demorou 30 e poucos anos; democratizar espero que demore séculos. Mas junho de 2013 foi um bom começo". 

Nobre expôs sua tese sobre o peemedebismo, nome que dá ao bloco conservador no país. Reunindo múltiplas forças políticas e formando um bloco hipermajoritário no Congresso e na sociedade, o peemedebismo surgiu como forma de afastar golpes do início da redemocratização. O processo de impeachment, em 1992, reforçou a ideia da necessidade do blocão, sem oposição forte, para garantir a governabilidade –uma marca do governo FHC. 

Para ele, Lula ocupou esse bloco pela esquerda, desidratando a oposição: "O sistema político funciona num grande condomínio peemedebista: é sempre o mesmo bloco, o que muda é o sindico". Em 2014, porém, a polarização está de volta: "Voltamos a ter pelo menos a disputa, para valer, pelo posto de síndico". 

Do outro lado da mesa de debates na Anpof, visão divergente foi exposta por João Carlos Brum Torres, professor de filosofia em Caxias do Sul (RS). Ele está preocupado com a divisão do país. 

"Vejo duas derivas que seriam desastrosas para nós. Uma se o governo fizer uma deriva argentina ou bolivariana, de conflito com setores conservadores, a imprensa. Se for por esse lado, as coisas vão se agravar e gerar uma crise aguda. Espero que não ocorra. A outra deriva é ressuscitar o lacerdismo. Lula usou bem essa palavra." 

Para Brum Torres, esse risco de lacerdismo não viria das grandes lideranças do PSDB, mas da opinião pública: "Especialmente em São Paulo há uma voz de repúdio absoluto e completo. Aqui, no núcleo do capitalismo brasileiro, há uma profunda insatisfação com o sistema de representação política". 

Ele ressaltou que Aécio não é Carlos Lacerda, mas aponta radicalização nas redes e na mídia: "Especialmente nas revistas semanais há uma posição extremamente agressiva de deslegitimação e desmoralização do governo. Isso é um elemento de tensão muito agudo e vai criando um clima de insatisfação que é potencialmente ensejador de um agravamento da crise". 

Ele diz não ver possibilidade de ruptura agora, mas lembra que o Brasil "não tem tradição de resolver bem situações muito tensionadas". 

A seguir, Nobre alfinetou o centro econômico do país: "São Paulo tem que acabar com seu complexo de bandeirante". Brum Torres deu sua explicação para o oposicionismo paulista: "São Paulo sempre foi muito poderoso e nunca esteve propriamente mandando no Brasil. Isso desde 1930, quando se separou o centro do poder econômico do centro político. Dilma é intolerável para São Paulo por causa disso, porque acentua essa distância". 

Ligado ao PMDB gaúcho, ele divergiu de Nobre: "[Eles] Cumprem uma função estabilizadora no país, que é muito importante e vai continuar". 
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Reportagem por  ELEONORA DE LUCENA
DE ENVIADA ESPECIAL A CAMPOS DO JORDÃO (SP) 
Fonte: Folha online, 30/10/2014

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Soledad

 Gemma Morató*
soledad
Hablar de soledad no es afirmar una separación, ni mucho menos. La soledad es un estado que únicamente ha de pretender encontrarte contigo para poder dar más y mejor a los que nos rodean. Ser ermitaño no es pensar que seremos santos huyendo de los otros. Una vida de soledad “deliberada” sólo se justifica si se está convencido de que éste aislamiento servirá para amar no sólo a Dios, sino también a los demás, según Thomas Merton en una de sus obras. 
 
La verdadera soledad es el hogar de la persona, el interior de lo que somos nosotros mismos, es ahí donde encontraremos la soledad verdadera, la que nos dará sentido a la vida. Sino… es que intentamos vivir una falsa soledad, que es el refugio del individualista. El simple hecho de vivir entre las personas no nos garantiza que podamos vivir en comunión con ellas, ni siquiera que seamos capaces de comunicarnos con ellas. Es curioso pero a veces es el “solitario” el que tiene más que decir y compartir, no por sus muchas palabras sino por la profundidad de las mismas. Aunque diga muy poco, tiene algo que comunicar, algo real que dar porque él mismo es real. Con ello intento marcar la necesidad que tenemos de experimentar esa “soledad”, la verdadera soledad. Caer en la cuenta de quiénes somos… nos lleva a ver más de cerca la realidad y a no vivir en superficialidades que casi siempre nos ahogan. Por ello, no hay soledad más verdadera que la del interior. 

También podemos pensar en aquella soledad que experimentan algunas personas y que sienten en sus vidas algo clavado que produce dolor, porque es la soledad de sentirse solo, sin nadie, de vivir en propia experiencia la falta de amor… éste es otro tipo al que llamamos soledad, pero a diferencia esta soledad no la escogemos, ni siquiera pensamos en que pueda pasarnos, simplemente llega y se ha de asumir aunque nos produzca mucha tristeza. Hemos de saber separar y por supuesto en todas las soledades hemos de aprender a vivir las realidades que tenemos. Como en todo, muchas veces las cosas dependen de cómo nos situamos o cómo afrontamos lo que tenemos delante. Cuando hablamos de soledad, hay una que nos es necesaria y que deberíamos de experimentar todos, porque nos hace crecer interiormente, ser mejores, pero también conocemos aquella que humanamente nos hace mal, por eso creo que si nos trabajásemos por dentro, conscientemente, nos ayudaríamos a poder afrontar con un poquito más de fuerza lo que nos toque vivir.  
Texto: Hna. Conchi García. 
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*Es Dominica de la Presentación, periodista, teóloga moral y maestra de Educación Especial.

Comovente: a carta de despedida da iraniana que foi enforcada

 
Reyhaneh Jabbari foi enforcada no Irão por ter matado o homem que a teria violado. De nada valeram os apelos 
de clemência, ignorados pelas autoridades. 
Deixou uma carta comovente à sua mãe.
Reyhaneh Jabbari, detida desde 2007, quando tinha 
19 anos, foi enforcada no sábado
Reyhaneh Jabbari, detida desde 2007, quando tinha 19 anos, foi enforcada no sábado, acusada de ter matado o homem que a tentara violar. A sua confissão fora obtida sob ameaças e tortura e as organizações de direitos humanos mobilizaram-se, sem êxito, para que tivesse um julgamento justo. A carta que o Observador revela hoje (traduzida da sua versão em inglês) foi escrita em abril e entregue a militantes pacifistas, mas só agora foi revelada.

Nela dirige-se à sua mãe, Sholeh Pakravan, que tinha pedido aos juízes para ser enforcada em vez da sua filha. Na última semana antes do enforcamento, Sholeh só pode ver a filha durante uma hora, acabando por saber da execução com apenas algumas horas de antecedência e através de uma nota escrita.

Aqui fica a transcrição dessa carta que vale a pena ler:

“Querida Sholeh, recebi hoje a informação de que chegou a minha vez de enfrentar a qisas [a lei de retribuição do sistema legal iraniano]. Estou magoada por não me teres deixado saber através de ti que cheguei à última página do livro da minha vida. Não achas que tenho o direito a saber? Sabes o quanto me envergonha saber que estás triste. Porque não me deixaste beijar a tua mão e a do pai?

O mundo permitiu-me viver durante 19 anos. Aquela noite assustadora foi a noite em que eu deveria ter sido morta. O meu corpo seria atirado para um qualquer canto da cidade, e dias depois, a polícia chamar-te-ia ao departamento de medicina legal para me identificar e também saberias que fui violada. O assassino nunca seria encontrado pois nós não temos a riqueza e o poder deles. Tu irias continuar a tua vida em sofrimento e envergonhada, e poucos anos depois morrerias desse sofrimento e nada mais haveria a dizer.

No entanto, esse golpe amaldiçoado alterou o rumo da história. O meu corpo não foi atirado para um lado qualquer, mas sim para a sepultura que é a Evin Prison e as suas alas solitárias, e agora para a prisão-sepultura de Shahr-e Ray. Mas entrega-te ao destino e não te queixes. Sabes melhor do que ninguém que a morte não é o fim da vida.

Ensinaste-me que cada um de nós vem a este mundo para ganhar experiência e aprender uma lição e que cada pessoa que nasce tem uma responsabilidade depositada nos seus ombros. Aprendi que, por vezes, temos de lutar.
Lembro-me muito bem quando me disseste que o homem da carruagem protestou contra o homem que me estava a chicotear mas este acertou-lhe com o chicote no rosto e ele morreu. Disseste-me que, de modo a criar valores, temos de perseverar, mesmo que isso signifique morrer.

Ensinaste-nos que, na escola, devemos enfrentar as quezílias e os confrontos como senhoras. Recordas-te da insistência dos teus reparos sobre o nosso comportamento? A tua experiência estava incorreta. Quando este acidente ocorreu, os teus ensinamentos não me ajudaram. Quando me apresentei em tribunal aparentei ser uma assassina a sangue-frio e uma criminosa implacável. Não verti lágrimas. Não implorei. Não me desmanchei a chorar pois confiava na lei.

No entanto, fui acusada de indiferença perante um crime. Eu nem mosquitos matei e as baratas que tirei do caminho, levei-as pelas suas antenas. E agora tornei-me em alguém que assassina premeditadamente. O modo como trato os animais foi interpretado como sendo masculino e o juiz nem se deu ao trabalho de ver que, na altura do acidente, as minhas unhas eram grandes e estavam pintadas.

Quão otimista é o que espera justiça dos juízes! Ele nunca questionou o facto de as minhas mãos não serem grossas como as de uma desportista, em particular de uma boxeur.

E este país, pelo qual cultivaste um amor em mim, nunca me quis e ninguém me apoiou quando, perante as investidas do interrogador, eu gritava e ouvia as palavras mais obscenos. Quando o meu último indício de beleza desapareceu, ao cortar o meu cabelo, fui recompensada: 11 dias na solitária.
Querida Sholeh, não chores pelo que estás a ouvir. No primeiro dia na esquadra, um agente velho e não casado, magoou-me por causa das minhas unhas e eu percebi que a beleza não é desejável nesta era. A beleza das aparências, dos pensamentos e dos desejos, uma caligrafia bela, a beleza do olhar e da visão e até a beleza de uma voz agradável.

Minha querida mãe, a minha ideologia mudou e tu não és responsável por isso. As minhas palavras não têm fim e dei tudo a alguém para que, quando for executada sem a tua presença e conhecimento, te seja dado a ti. Deixo-te muito material manuscrito como herança.

No entanto, antes da minha morte quero algo de ti, algo que tens de me dar com todo o teu poder, custe o que custar. Na verdade, isto é a única coisa que eu quero deste mundo, deste país e de ti. Sei que precisas de tempo para isto.

Posto isto, vou-te revelar parte do meu testamento mais cedo. Por favor, não chores e presta atenção. Quero que vás ao tribunal e lhes faças o meu pedido. Não posso escrever tal carta, a partir da prisão, que fosse aprovada pelo diretor; mais uma vez terás de sofrer por mim. É a única coisa que, se chegares a implorar por ela, eu não ficarei chateada, embora te tenha dito várias vezes para não implorares por nada, exceto para me salvares de ser executada.
Minha mãe bondosa, querida Sholeh, mais querida para mim que a minha própria vida, eu não quero apodrecer debaixo do solo. Não quero que os meus olhos ou o meu jovem coração se transformem em pó. Implora para que, assim que eu seja enforcada, o meu coração, rins, olhos, ossos e tudo o que possa ser transplantado, possa ser retirado do meu corpo e dado a alguém em necessidade, como uma doação.
Não quero que o destinatário saiba quem sou, que me envie um ramo de flores ou até que reze por mim.

Do fundo do meu coração te digo que não desejo ter uma sepultura onde tu venhas chorar e sofrer. Não quero que vistas roupas pretas por mim. Faz o teu melhor para esquecer os meus dias difíceis. Entrega-me ao vento para me levar.

O mundo não nos amou. Não quis o meu destino. E agora entrego-me a ele e abraço a morte pois no tribunal de Deus eu vou acusar os inspetores, vou acusar o inspetor Shamlou, vou acusar o juíz e os juízes do Supremo Tribunal que me espancaram quando eu estava acordada e que não se absteram de me intimidar.

No tribunal do criador eu vou acusar o Dr. Favandi, vou acusar Qassem Shabani e todos aqueles que, por ignorância ou pelas suas mentiras, fizeram-me mal, passaram por cima dos meus direitos e que não tiveram em conta o facto de que, por vezes, o que aparenta ser realidade não é.
Querida Sholeh de coração mole, no outro mundo tu e eu seremos quem acusa e os outros, os acusados. Veremos qual é a vontade de Deus. Quero abraçar-te até que a morte chegue. Amo-te.”
Tradução da carta por Francisco Ferreira
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*  http://observador.pt/2014/10/28/

terça-feira, 28 de outubro de 2014

O ódio à democracia

Matheus Pichonelli*

Ódio à democracia
O antidemocratismo manifestado em ano eleitoral não é resultado de um sistema ainda imaturo, mas de um processo que se consolida e começa a incomodar
"Nordestino não sabe votar". "Pobres merecem o que têm". "Abaixo o Bolsa Esmola". "Vão pra Cuba". "Muda para Miami". "Os empregados deveriam ser proibidos de participar". "Paulista é uma raça egoísta". "Deveríamos nos separar do resto do país". Não, não é por acaso que as manifestações de ojeriza à política, ao contraditório e ao voto das populações mais pobres tenham se intensificado ao longo desta eleição, a sétima desde a reabertura democrática. A democracia brasileira é jovem, mas não é uma criança. Parte do ódio que ela provoca é antes o resultado de sua maturidade do que de seu ineditismo: quem vocifera não são os que desconhecem seu funcionamento, mas os que o conhecem muito bem – a ponto de, em pleno 2014, falarem em golpe, impeachment ou cegueira coletiva para deslegitimar um resultado adverso.

A polarização, cada vez mais acentuada entre os dois principais partidos do País, levou candidatos, eleitores-internautas, internautas-eleitores e parte da mídia a se comportar como torcedores de arquibancada nas últimas semanas, em especial no último domingo, 26 de outubro, quando a presidenta Dilma Rousseff foi reeleita. A tônica variava, mas tinha uma mesma base: não bastava expressar o voto, era preciso eliminar o concorrente e quem vota no concorrente – principalmente se ele não tem o mesmo repertório, a mesma escolaridade, a mesma (e suposta) independência material. Daí as agressividades identificadas tanto no submundo da internet quanto nas vozes de autoridades, personalidades e celebridades – que se engajaram na campanha atual, com apoio de um lado a outro, como nunca antes na história.

A essa altura, atribuir a um ou a outro a primazia do primeiro tacape será inútil. É preciso entender por que a agressividade se avoluma à medida que o sistema democrático se constrói – pois sua construção é um exercício permanente. Não é um fenômeno local: na Europa, onde o sistema é vigente há mais tempo, os intelectuais se batem há tempos sobre as contradições do chamado “reino do excesso” e das demandas pulverizadas (“mesquinhas”, segundo muitos) de um conjunto de indivíduos, muitos representantes de minorias – e não, para desespero das velhas oligarquias, de uma multidão uniforme.

Em um país como o Brasil, onde privilégio ao nascer e hegemonia política e econômica foram sinônimos ao longo da história, a ascensão de determinados grupos antes subjugados têm produzido todo tipo de ofensa ao chamado “individualismo democrático”. Sobram patadas sobre pobres, gays, lésbicas, negros, "comunistas", mulheres. Um exemplo foram as manifestações de ódio contra a população nordestina, onde o PT conquistou muitos votos. A repulsa chega com todos os disfarces, mas pode ser identificada, por exemplo, quando um ex-presidente da República atribui um resultado adverso (para ele e os seus) à cegueira coletiva dos “menos instruídos”.

No livro Ódio à Democracia, recém-publicado no Brasil pela Boitempo Editorial, o filósofo franco-argelino Jacques Rancière deixa pistas para entender este fenômeno. Um fenômeno que, a se fiar pela experiência europeia e pelos últimos embates, será cada vez mais comum por esses lados. A obra é uma crítica contundente à denúncia do “individualismo democrático” – que, segundo ele, cobre, com pouco esforço, duas teses: a clássica dos favorecidos (os pobres querem sempre mais) e das elites refinadas (há indivíduos demais, gente demais reivindicando o privilégio da individualidade). “O discurso intelectual dominante une-se ao pensamento das elites censitárias e cultas do século XIX: a individualidade é uma coisa boa para as elites; torna-se um desastre para a civilização se a ela todos têm acesso”, escreve. Para o autor, não é o individualismo que esse discurso rejeita, mas a possibilidade de qualquer um partilhar de suas prerrogativas. “A crítica ao ‘individualismo democrático’ é simplesmente o ódio à igualdade pelo qual uma intelligentsia dominante confirma que é a elite qualificada para dirigir o cedo rebanho”.

Qualquer semelhança com os últimos capítulos da eleição não é mera coincidência. No prefácio da mesma obra, o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de ética da USP, lembra que um número expressivo de membros da classe média ainda desqualifica os programas sociais consolidados nos últimos anos. “Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando a multidão ocupa espaços antes reservados às pessoas 'de boa aparência', uma gritaria se alastra em sinal de protesto. O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados?”, questiona. “A expansão da democracia incomoda. Daí um ódio que domina nossa política, tal como não se via desde as vésperas de um golpe de 1964, condenando as medidas que favoreciam os mais pobres como populistas e demagógicas”.

Em coro com Rancière, Janine Ribeiro lembra que a democracia não é um Estado acabado nem um estado acabado das coisas; ela vive constante e conflitiva expansão. “Porque a ideia de separação social continua presente e forte”.

Ao menos nas últimas semanas, esta ideia parece ter tomado proporções graves nas manifestações de ódio pelas ruas e redes sociais. Como se o mesmo país fosse pequeno demais para dois (para não dizer muitos) tipos de eleitores: um deve ser enviado a Cuba, o outro, a Miami; um deve ter o direito de voto cassado, o outro tem o direito apenas de calar. O não-diálogo é escancarado, sobretudo por quem costumava observar o espaço público como sua propriedade e hoje se rebela contra o "Estado protetor" e o voto "mesquinho" dos indivíduos. Mas a democracia, prossegue Rancière, longe de ser a forma de vida dos indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta contra essa privatização, o processo de ampliação dessa esfera. "Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da oligarquia no Estado e na sociedade”.
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 *Jornalista e cientista social, escreve sobre cultura e comportamento no site de CartaCapita
Fonte: Carta Capital online, 27/10/2014